Working in progress/ Trespasse
Provavelmente para combater a exasperação e o dissabor que ontem nos tomou, hoje fui transportado de jorro para veios líricos que me são raros. Como me é menos frequente este registo, o melhor é não desdenhar. Logo vejo daqui a seis meses o que há a mudar:
1
Ainda corri à janela. Já só lhe apanhei a saia
plissada a entrar no autocarro,
fechava-se-lhe a porta
hidráulica nas costas.
E o telemóvel sem bateria,
como avisá-la de que se enganou
e levou a minha pele?
Revisto-me da dela, aguardo.
A sua nudez retempera-me.
Ponho um cd do john surman,
não há-de ser grave e de alergia
provámos esta noite estarmos vacinados.
Qual dos corações me pulsa
no céu da boca?
2
Trocar de pele
como quem muda de país?
O êmbolo que me assusta
a meio da tua cozinha,
enfiava a colher no iogurte,
é o do comboio da tua infância,
que ao fundo do quintal
sacudia o chão de que despontava
a sombra das graviolas?
Não há comboios num terceiro
andar, o mais próximo
é o elevador — que está avariado.
Trocar de pele e sentir tão justas
nas suas bainhas, as minhas unhas.
3
Tudo num ápice se
descontamina como a mordida
do cravinho na boca:
parecer-me-á tão áspera
a minha pele após
a lisa culminação da tua, a maciez
que te povoa as dobras,
o rugoso intumescimento dos mamilos,
o intangível ardor
dos pequenos lábios
entregues ainda à memória
da minha língua que ontem
te abriu postigos e lavrou cisternas
num lânguido fervor.
4
Sentir a massa dos teus seios
no meu peito liso,
inerme, sem polpa,
enlouquece-me. Imagino
que neste momento no autocarro
entre o Saldanha e o Marquês
sentirás que desponta a sombra de um lírio
branco no teu côncavo
túmido, o lúbrico
resgate com que
uma melodia
te salvou
do incêndio das sarças.
Adeus, mundo invisível.
5
Espanta-me que de lençóis
tão amarfanhados
haja nascido esta feliz sintaxe
da tua pele no meu corpo.
Nitidamente faltava-me
esta propiciatória troca acidental
que amolece os metais do dia
com os fluidos da noite.
Hesito se ficarei à tua espera
para te dissuadir
de desfazermos a troca,
este sabor a hibiscos
na minha boca
tonifica-me o sangue.
6
Deixar-te uma carta?
Descrever-te a alegria do Mozart
enfeitiçado pelos poros
da tua pele?
É meio dia. Tremo, imaginando-te
deitada ao meu lado, o teu indicador
pregado na minha fonte -
selada a troca. Masturbo-me
e o meu pénis floresce
para dentro enchendo de ravinas
escorregadias a felicidade
que se exala do teu anel.
Aves que atenuam
a escalda do azul.
7
Há seis horas que navego
na tua pele, a mão
remexendo no coração
enfeixado pelo fantasma.
O espelho mal deu conta
e até ao fundo mais íntimo
calou as suas dúvidas,
degolado o pânico
inicial. Ouço os autocarros
a abrandar na paragem,
como silvam as portas que fecham
fora da tua hora. Coço a tua pele
para lhe sentir a irritação,
o que há de outro em ti.
8
Nunca corrijas a loucura
tenaz que, afinal, te esfola,
a vida nao passa disso: um amontoar da lenha,
melhor se ela te acama, ainda que brevemente
na pele da amada — o que doravante
aconselharei aos indecisos,
moribundos de boca truncada
nas portas-rolantes da alma,
pois só no trespasse da pele
se me refaz a alegria dos ossos
e mudo em fugitivo,
enquanto ela, entre o Marquês e o Saldanha,
se abisma no animal que despertámos:
entre duas margens o rio.
Maputo, 10 de Novembro