Working in progress/ Trespasse

Roberto Matta, etoile de jardin

Provavelmente para combater a exasperação e o dissabor que ontem nos tomou, hoje fui transportado de jorro para veios líricos que me são raros. Como me é menos frequente este registo, o melhor é não desdenhar. Logo vejo daqui a seis meses o que há a mudar:

1

Ainda corri à janela. Já só lhe apanhei a saia

plissada a entrar no autocarro,

fechava-se-lhe a porta

hidráulica nas costas.

E o telemóvel sem bateria,

como avisá-la de que se enganou

e levou a minha pele?

Revisto-me da dela, aguardo.

A sua nudez retempera-me.

Ponho um cd do john surman,

não há-de ser grave e de alergia

provámos esta noite estarmos vacinados.

Qual dos corações me pulsa

no céu da boca?

2

Trocar de pele

como quem muda de país?

O êmbolo que me assusta

a meio da tua cozinha,

enfiava a colher no iogurte,

é o do comboio da tua infância,

que ao fundo do quintal

sacudia o chão de que despontava

a sombra das graviolas?

Não há comboios num terceiro

andar, o mais próximo

é o elevador — que está avariado.

Trocar de pele e sentir tão justas

nas suas bainhas, as minhas unhas.

3

Tudo num ápice se

descontamina como a mordida

do cravinho na boca:

parecer-me-á tão áspera

a minha pele após

a lisa culminação da tua, a maciez

que te povoa as dobras,

o rugoso intumescimento dos mamilos,

o intangível ardor

dos pequenos lábios

entregues ainda à memória

da minha língua que ontem

te abriu postigos e lavrou cisternas

num lânguido fervor.

4

Sentir a massa dos teus seios

no meu peito liso,

inerme, sem polpa,

enlouquece-me. Imagino

que neste momento no autocarro

entre o Saldanha e o Marquês

sentirás que desponta a sombra de um lírio

branco no teu côncavo

túmido, o lúbrico

resgate com que

uma melodia

te salvou

do incêndio das sarças.

Adeus, mundo invisível.

5

Espanta-me que de lençóis

tão amarfanhados

haja nascido esta feliz sintaxe

da tua pele no meu corpo.

Nitidamente faltava-me

esta propiciatória troca acidental

que amolece os metais do dia

com os fluidos da noite.

Hesito se ficarei à tua espera

para te dissuadir

de desfazermos a troca,

este sabor a hibiscos

na minha boca

tonifica-me o sangue.

6

Deixar-te uma carta?

Descrever-te a alegria do Mozart

enfeitiçado pelos poros

da tua pele?

É meio dia. Tremo, imaginando-te

deitada ao meu lado, o teu indicador

pregado na minha fonte -

selada a troca. Masturbo-me

e o meu pénis floresce

para dentro enchendo de ravinas

escorregadias a felicidade

que se exala do teu anel.

Aves que atenuam

a escalda do azul.

7

Há seis horas que navego

na tua pele, a mão

remexendo no coração

enfeixado pelo fantasma.

O espelho mal deu conta

e até ao fundo mais íntimo

calou as suas dúvidas,

degolado o pânico

inicial. Ouço os autocarros

a abrandar na paragem,

como silvam as portas que fecham

fora da tua hora. Coço a tua pele

para lhe sentir a irritação,

o que há de outro em ti.

8

Nunca corrijas a loucura

tenaz que, afinal, te esfola,

a vida nao passa disso: um amontoar da lenha,

melhor se ela te acama, ainda que brevemente

na pele da amada — o que doravante

aconselharei aos indecisos,

moribundos de boca truncada

nas portas-rolantes da alma,

pois só no trespasse da pele

se me refaz a alegria dos ossos

e mudo em fugitivo,

enquanto ela, entre o Marquês e o Saldanha,

se abisma no animal que despertámos:

entre duas margens o rio.

Maputo, 10 de Novembro

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