Você me acusa de feitiçaria
Por Carla Diacov
eu te amo 1
deixei essa maçã na mesa
meu bem para que você notasse
maçãs existem fazem bem ao
sistema muito bem aos sistemas
a maçã que eu deixei na mesa para o
meu bem está ali há três semanas
uma intenção mofa e desaparece
porque outra intenção foi contemplada
*
eu te amo 3
você me acusa de te amar
me acusa de te atrapalhar com
meus barulhos de te amar me acusa
de feitiçaria porque preparo seus
alimentos com as mãos me acusa de
traição porque contorno com a língua outras pessoas
na rua me acusa de não usar a faixa de
pedestres me acusa de não deixar os
frutos verdes nas árvores me acusa de passar a
vassoura nos seus pés de socorrer as baratas
de não trocar as lâmpadas queimadas você
me acusa de amar o cheiro das suas camisetas
suadas de amarrar coentro com salsa de colher
as pedras de granizo e de colocar uma por uma
na sua nuca
você
me acusa
de te amar
mas nem sempre foi assim
bilhete 41
deixei mais um bilhete no seu portão
deixei por escrito que tentei gritar
e não consegui
deixei o bilhete enfiado obstruindo
a tranca do seu portão pode ser que
você tenha que pular as grades
para ir trabalhar amanhã pode ser
que sua calça fique presa numa das
lanças e pode ser que você se machuque
um pouco que tenha que pular de volta
cuidar a ferida trocar de roupa pode
ser que você tome mais uma caneca de
café vai saber pode ser que você
tropece e que na queda mate o gato pode ser
que o gato tenha roído o cabo da cafeteira
e pode ser que você tome um leve choque
solte um palavrão e pense que foi praga
minha vai saber imagine você querido o número
de rochas esperando um momento bobo
para deslizar na nossa
direção o tanto de crateras que podem
se abrir bem debaixo dos nossos pés
beijo
espero que seu dia
seja bom
percebe
percebe
com as pontas dos dedos
perceba a espera que me carrega até
seu rosto tenho uma cicatriz na boca
e é assim que sei quando vai chover
molha a mão ainda estranha na chuva
que puxo até os seus ombros
escuta os cães das madrugadas que
esperam comigo nota o silêncio
no boeing que desaba
ao lado do chafariz na praça
errando o pacto de vida que faço
com suas feridas
veja o pôr de marte no olho que já
simula o choro venha ver senhora
a primeira briga desenhada
no caderno de notas que fica na mesa
ao lado do telefone
de sal
é assim que sei quando
vai chover
Enquanto não
Enquanto não
que prevaleça a tua vida
sobre qualquer
outra
prevaleça tua cara tua mão
tuas roídas unhas
tuas canetas teus molares
tua brutal honestidade com o mundo
enquanto não houver paz e nunca haverá
que prevaleça a tua voz
sobre o nevermore
do corvo sobre o grito da égua da noite
que os transtornados morram à soleira do teu hálito
órfãos viúvas de guerra cachorros sequestrados
senhorios principalmente os senhorios
ursos ursos-panda e gorilas
enquanto não houver paz e nunca haverá
que prevaleça a tua vida
se bem que quando houver paz
apesar de que nunca haverá
igualmente igualmente
prevaleça tua a vida
oumuamua
falávamos de oumuamua
de como o mundo inclui em si
suas próprias maneiras de fim
falávamos sobre o imenso vazio espacial
fazíamos as mais cruéis comparações
falávamos de marte até cansar o punho
agora falamos de sorte ou de morte
tanto faz
quando o que sobra entre nós é
despejo de duração
cansaço e o preço das cenouras
quase lá
quase nada no mundo
explica a forma humana
na natureza as coisas têm harmonia
matemática química
a natureza é excêntrica
extraordinária apontável significante
o ser humano é uma bagunça que nem
o caos acolhe
é porém amável
é possível amar o ser humano
não como amar uma couve-flor a sequência
matemática perfeita em suas espirais
o pinto o próprio ovo o bico da galinha
suas penugens sob a lente de um microscópio
pequeníssimos soldados angelicais da geometria
um pedaço do couro humano não tem
¼ da elegância exata de um pedaço de shitake
quase nada no mundo explica a
forma humana o que significa
o quase existe está e permeia
a baba após o beijo
o silêncio após o choro
a linguagem anterior aos verbos
a tudo que se refere ao humano
bicho tão desnaturado
é ao quase que devemos
nos agarrar
e puxar para uma última dança
*
SOBRE A POETA
Carla Diacov, São Bernardo do Campo, 1975.
formada em teatro, escreveu uns livro, entre eles: Amanhã Alguém Morre no Samba (Douda Correria, 2015/Macondo, 2018), bater bater no yuri (Enfermaria 6, 2017), A Menstruação de Valter Hugo Mãe (Casa Mãe, Portugal, 2017/Macondo, 2020), A munição Compro Depois (Cozinha Experimental, 2018), : pescoço x sobreviventes (Garupa, 2021), ao marfim dos seus caninos (Editora Primata, 2022).
Carla Diacov realiza uma campanha de financiamento coletivo Poema põe mesa para divulgação de sua poesia, apontando o modo como a sociedade deveria saudar os poetas: lendo-os e adiquirindo seus livros — fabricando grandes circunstâncias com pequenos acontecimentos, uma vez que assim se constitui a própria poesia.
Link para acessar e apoiar a campanha:
https://apoia.se/poemapoemesa?fbclid=IwAR1wItd6jSlUT6LbuxBMauaMbFDqdD8D9-VxQtVM95zD77fAhL5n0-QQMIk