Isabel Cristina Mateus
Revista Caliban issn_0000311
10 min readDec 20, 2019

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Transfigurar a Fome ou o sentimento duma ocidental

A Transfiguração da Fome de Sara F. Costa, publicado pela editora Labirinto em 2018, foi a obra vencedora em Maio de 2019 do Prémio Literário Glória de Sant’Ana para o melhor livro de poesia em língua portuguesa. Um prémio de perfil internacional, aberto ao mundo lusófono, que desde 2013 distinguiu autores como o moçambicano Eduardo White (2013), a portuguesa Gisela Ramos Rosa (em 2014 e 2018), o galego Mário Herrero Valeiro (2015), os portugueses Samuel Pimenta (2016) e Maria João Cantinho (2017). Só por este motivo, a obra de Sara F. Costa mereceria já algum destaque. Mais ainda quando este Prémio é atribuído a alguém que, pertencendo a uma novíssima geração de poetas portugueses surgidos neste novo milénio, tem vindo progressivamente a afirmar-se no panorama das letras em língua portuguesa: A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos (Ed. Pé de Página, 2003); Uma Devastação Inteligente (Atelier Editorial, Prémio Literário João da Silva Correia, 2007); O Sono Extenso (Âncora Editora, 2012) e O Movimento Impróprio do Mundo (Âncora Editora, 2016) dão conta de um percurso que A Transfiguração da Fome vem confirmar. Um percurso poético assinalável se tivermos em conta a juventude da autora, que passa ainda pela participação em colectâneas internacionais de poesia (“Il gesto della memoria”, Ibiskos Editrice di A. Risolo, Empoli, 2005; “Air, Water, Earth, Fire. The long genesis of the Elements”, Ibiskos Editrice di A. Risolo, Empoli, 2006) e pela sua participação como autora convidada do Festival Internacional de Poesia e de Literatura de Istambul, em 2017. Ou ainda pela organização do Festival Literário de Macau, do Festival Internacional de Literatura entre a China e a União Europeia em Shanghai e Suzhou (China) e pela sua ligação ao colectivo artístico internacional Spittoon (sediado em Pequim), uma plataforma artística que pretende unir escritores e artistas chineses e de todas as partes do mundo.

O que o percurso de Sara F. Costa evidencia é desde logo uma abertura ao mundo, uma vivência multi e intercultural (a sua residência actual em Pequim apenas o vem reforçar), que conferem à sua voz poética uma maturidade precoce e um timbre invulgares. Sara F. Costa é já uma voz autoral na poesia em língua portuguesa, uma voz autónoma que atravessou fonteiras e à qual devemos estar atentos no futuro.

A Transfiguração da Fome é um título (duplamente) enigmático que se constitui como um desafio à interpretação, desafio acentuado pelo labirinto de imagens convocadas pelo conjunto dos poemas. Todavia, título e poemas não deixam de fornecer ao leitor o fio de Ariadne para a leitura. Ou, para utilizar aqui uma metáfora mais consentânea com a modernidade de um universo poético que fala de selfies, de instagram, de spotify ou de emails, que título e poema fornecem as coordenadas GPS ao leitor.

Trans-figurar significa etimologicamente mudar a figura, a forma, o corpo. Transformar uma coisa noutra coisa, o que nos reenvia para o poder da metáfora e da linguagem, afinal a matéria de que é feita a poesia. É este processo de mutação que encontramos desde logo no mythos, grego ou latino, nas narrativas da origem que atravessaram os séculos e chegaram até nós, narrativas onde os corpos mudam de natureza ou de formas, se transformam em pedras, nuvens, rios, ouro, pássaros ou árvores. “De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho/ a falar. Ó deuses, inspirai a minha empresa (pois vós/a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto/desde a origem primordial do mundo até aos meus dias”, diz Ovídio logo nos primeiros versos invocatórios do Livro I de Metamorfoses, ao mesmo tempo que pede aos deuses inspiração para o seu canto “ininterrupto”, desde o início do mundo até aos seus (e nossos) dias. Metamorfoses, uma das maiores criações literárias que a cultura latina produziu, é com efeito uma sucessão de transfigurações que alimentam a nossa fome de uma qualquer ordem, natural ou divina, o nosso desejo de sentido perante a instabilidade do tempo e a violência dos dias, devolvendo-nos à nossa frágil, mutável e humana realidade.

A Transfiguração da Fome é assim um livro que faz do trabalho de transformação ou de invenção da linguagem, da palavra resgatada do uso quotidiano, o ofício e o assunto da poesia. Da poesia como expressão intelectual e artística do homem enquanto animal de linguagem ou, de modo mais preciso, desse “animal raivoso” que é o poeta no dizer de Teixeira de Pascoaes. O poeta que amarrota com mãos insatisfeitas e arroja raivosamente ao chão os papéis escritos, na sua busca permanente da palavra.

Stella Mc Cartney Monster Print

O próprio poema é um animal que respira e se move, tem fome e sede, metáfora que um poeta como António Carlos Cortez convoca, em títulos como Animais Feridos ou, mais recentemente, em Jaguar. Do mesmo que há, pronto a despertar, “um animal selvagem no fim da memória” (p. 19) do poeta. Nos poemas que compõem A Transfiguração da Fome há carne (corpo), sangue, sexo, sémen, desejo de procriar, de uma nova vida, de uma vida transfigurada.

Dois poemas, em particular, parecem fazer luz sobre o enigma do título. O primeiro, justamente denominado “Transfiguração da Fome”, onde a voz poética se dirige a um “tu”, dando conta do labor da escrita no corpo a corpo com a folha em branco (“escrevo ritualisticamente sobre as omoplatas da folha, /e há estrelas de solidão entre as palavras”), perscrutando a solidão e o fulgor que as palavras silenciam ou ocultam. O fulgor da palavra liberta da “impostura da língua” (na expressão de Maria Gabriela Llansol), a palavra poética como transfiguração da linguagem quotidiana, de um real esvaziado de sentido ou de luz, como transmutação da miséria e da fome que caracterizam os nossos dias: “perguntas-me se confio no furor do tempo,/quando sabes que a nossa glória/não passa da transfiguração da fome” (p.31).

O segundo poema, “Tabor”, reenvia de imediato o leitor para a montanha da Galileia onde, de acordo com o evangelho de S. Mateus, Jesus se transfigurou perante o olhar incrédulo de Pedro, Tiago e João: diz-nos o evangelho que o rosto de Jesus se tornou resplandecente como o sol e as suas vestes se tornaram brancas como a luz. A voz poética retoma a imagem da luz para afirmar o “divino” esplendor da fantasia ou da imaginação para lá da frágil humanidade dos poetas (“é completa a integridade da fantasia,/é amor que brilha/e prazer que sangra. o suor da miséria,/os ventos apertados/entre as pernas dos poetas.”), ao mesmo tempo que, com a marca da auto-ironia característica desta voz, se interroga sobre quem poderá testemunhar esta transfiguração: “a quem é que vou telefonar hoje?/Pedro, Tiago, João/a embriaguez percorre-nos as veias de prata/a música profunda/e as mãos enfiadas nas cavidades mudas.// é límpida a fome minuciosa da carne” (p.33).

Christ in Glory by Ivanka Demchuk

Estamos assim perante a urgência das imagens e do poder transfigurador, subversivo, da palavra liberta de uma função meramente comunicativa e referencial. Da palavra cortante como faca, urgente, da palavra-carne, da palavra-alimento, da palavra viva, sangue ou sémen, num mundo voraz e violento onde tudo é líquido, fugaz, incluindo o amor. Num mundo onde se tem fome de beleza, de afecto, de um modo de ver, de sentir (e de pensar) humanos, como de forma crua se dá a ver em About Last Night: “um bass forte no club,/traz-me um gin tónico frio/para o rio/riso que palpita das paredes,/os braços vazios/ onde espero receber o amor deste senhor/que não pára de me agarrar a cintura./ (…) se me queres conhecer,/é melhor seres leão./movimento e movimento e movimento repetido/quem é que me vai tirar o vestido,/rainha da alucinação/tenho o mundo na mão/ uma tatuagem no fim das costas/à espera da tua ejaculação” (p. 29)

A Transfiguração da Fome procura responder à interrogação de Hölderlin, formulada há quase três séculos, num mundo de onde os deuses foram proscritos e num poema cujo título (“Pão e Vinho”) é de algum modo um convite a saciar a fome que nos consome: “Para que servem poetas em tempos de indigência?” Hoje, como no tempo de Hölderlin, os poetas são a memória dos deuses, sacerdotes do deus do vinho e da desordem, guardiões da palavra e do desassossego colectivo. Servem para nos transfigurar de máquinas dóceis em humanos livres, para saciar a nossa fome de belo, de afecto ou de sentido. Servem para nos devolver um chão quando tudo ameaça ruir, para dizer a melancolia e inquietar o pensamento. Servem para nos aproximar dos outros, de nós mesmos ou dos deuses. O poema “Se os poetas são melancólicos” configura de algum modo uma resposta à pergunta de Hölderlin: “dá-me uma metáfora que me salve a vida”, pede a voz poética a um “tu” que com ela escuta a canção dos dias, essa “melodia infinita que se esvai em sangue/quando ligamos o spotify” (p.14). Talvez a poesia, a poesia de Sara F. Costa, seja essa metáfora.

Apesar da linguagem moderna, onde o mundo digital e as novas tecnologias marcam presença em muitos dos poemas, A Transfiguração da Fome surge fortemente ancorada na tradição poética ocidental e, em especial, na tradição poética portuguesa com destaque para a poesia modernista, surrealista ou experimental. Não é por acaso que a epígrafe convoca os versos de Herberto Helder de “Para o leitor ler de/vagar” (poeta que Sara F. Costa confessadamente admira) ou “Lugares”, poema de abertura e pórtico do livro, é um aviso de navegação ao leitor, um guia de leitura: “o lugar deste texto é entre a insónia e Cesariny” (p.9). Modernismo, onirismo, humor e (auto)ironia cortante, cruzam-se na poesia de Sara F. Costa, deixando transparecer tanto a lição de Cesário como a desconstrução lúdica ou paródica de Adília Lopes, confirmando a íntima ligação que a escrita poética estabelece com a memória cultural e o convívio com a leitura dos poetas de todos os tempos. Todavia, em qualquer dos casos, esta relação com a tradição é sempre sujeita a mudança, subversão, transfiguração.

A Dark Spark of Light by Akis Goumas

Importará notar que A Transfiguração da Fome se inscreve ainda na linhagem de um Baudelaire, o poeta da modernidade que, num dos projectos de epílogo que escreveu para As Flores do Mal, afirmou (traduzo livremente os versos) ter “transfigurado a lama em ouro” (“j’ai pétri de la boue et j’en ai fait de l’or”). Mas também na tradição de Eliot, na sua visão desencantada da cidade (em particular, The Love Song of J. Alfred Prufrock) ou na concepção de poesia de um Wallace Stevens (The Man with the Blue Guitar), entre outros, para quem “o assunto da poesia é o próprio poema”. A poesia de Sara F. Costa não se esgota na relação que mantém com a tradição poética ocidental, antes dialoga com a concisão verbal e o fulgor imagético da tradição poética chinesa (com incursões na imagética coreana), como testemunham vários poemas ao longo do livro (Haiku existencial; Haiku elegíaco; Ni Hao!; Hanok; Há um templo em Busan; O Centro do Universo. “Confúcio”, entre outros, confronta-nos com o retrato do mundo capitalista em que vivemos, imagem da solidão a que nos condena um progresso que esqueceu a lição de Confúcio: “a solidão empurra as multidões/para dentro do metro./temos vísceras de plástico/por isso somos descartáveis./vamos causar um desastre ambientalista/em breve./ de todos os sotaques estrangeiros/temos aquele que mais se decompões/faz-me uma massagem cómica/um relato sem ansiedade porque/hoje bebo em homenagem a Confúcio” (p.78).

Convocando ainda outras linguagens artísticas ou as novas tecnologias, a poesia de Sara F. Costa recusa tanto o lirismo português suave, o confessionalismo romântico quanto a “poesia da experiência”, de retorno ao real e ao referente, quando não o biografismo dominante a partir dos anos 90 do século passado. Os poemas de A Transfiguração da Carne apresentam-nos um mundo em mudança permanente, corpos e identidades em trânsito, solidões declinadas em todas as formas de gadgets, modernidade high-tech ou de amores ocasionais, culturas e geografias em diálogo, sonhos, desejos, angústias, ilusões e desilusões, vazio, a carne do silêncio transmutando-se em palavra capaz de dizer o exílio de viver num mundo dominado pela linguagem dos mercados e do consumo. Como ironicamente nos dá conta o poema “Gosto do Iate”: “faz-me falta o teu abraço/mas faz-me mais falta o novo modelo/ da Louis Vuitton./às vezes queria fugir/com o canalizador de tronco largo/pegar nele e levá-lo/a fumar erva numa praia da califórnia,/apanhar sol/mas depois sei que prefiro/a casa de três andares em Cascais”. (p. 30)

Mais do que um olhar europeu ou o sentimento duma ocidental, A Transfiguração da Fome é uma viagem que encerra em si uma busca identitária, confirmando que “a ideia de movimento, deslocação, viagem e mundo, relativo ao espaço em que esse movimento se dá”, constituem um dos eixos temáticos estruturantes da poesia de Sara F. Costa, como sublinhou Nuno Júdice a respeito de O Movimento Impróprio do Mundo. Uma viagem que vai dos lugares do país ocidental que somos (Lisboa, Cascais, Furadouro) até aos lugares do oriente (China e Coreia).

A Transfiguração da Fome é um modo de olhar e de ler o Ocidente a partir do outro lado do mundo. Mesmo se o outro lado do mundo é uma “vila com mais de dez milhões de habitantes”, uma vila como Pequim, com “vidas de néon”, “respirações poluídas” e “carros e gente e bicicletas/num caos perpétuo”. O outro lado do mundo é afinal o lugar onde se descobre que “o outro lado do mundo é igual ao outro lado do mundo” ((p.71).

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