Tempos

Luís de Barreiros Tavares
Revista Caliban issn_0000311
3 min readMar 18, 2024

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“O Enigma da Hora” (1911) — Óleo sobre tela — Giorgio de Chirico

«Enfin cette idée du Temps avait un dernier prix pour moi, elle était un aiguillon, elle me disait qu’il était temps de commencer si je voulais atteindre ce que j’avais quelquefois senti au cours de ma vie, dans de brefs éclairs, du côté de Guermantes, dans mes promenades en voiture avec Mme de Villeparisis, et qui m’avait fait considérer la vie comme digne d´être vécue.» (Marcel Proust, Le temps retrouvé)

Quinta-feira — 08/02/2024

À partida, a situação em que nos encontramos no momento (aquele que é o presente que decorre como todos os dias) tende a impedir-nos de nos vermos de fora, quer num acompanhamento do momento, quer num virtual tempo outro (como se o presente fosse visto como outro tempo a que assistíssemos).

Hoje, antes de acordar, tive um sonho absurdo e estranho. Como, aliás, todos os sonhos. Neste aparecia alguém com quem estou aborrecido. Mas este sonho parecia deixar-me o seguinte aviso: reconciliar-me com essa pessoa. O sonho tinha, assim, algo de realidade, como todos. Lembrei-me de Freud. No entanto, desta vez, despertou-me mais intensamente para a ideia de que também a realidade (ou o real), é uma forma de sonho. Calderón de la Barca diz que a vida é sonho (La vida es sueño). Shakespeare diz-nos que os homens são feitos com a matéria com que se fazem os sonhos. E o grego Píndaro: «O humano é o sonho de uma sombra».

Terça-feira — 13/02/2024

Temos a ideia disto (por exemplo, «este átrio aqui presente»). Temos a ideia dele, enquanto tal, na ausência de X (alguém que por lá passou, mas já partiu, já morreu). Enfim, alguém já desaparecido. Mas, temos também a ideia dessa pessoa X (já desaparecida), imaginariamente enquanto tal, tenuemente aparecida. Porque a ela nos referimos e, assim, supomo-la na ausência disto (este átrio aqui presente). A língua e a linguagem estão aqui implicadas.

Ver isto, este presente, neste momento, como se já tivesse sido. Então, por contraponto ao presente que, de facto, é, o tempo recebe um reforço. Sem dúvida que a língua e a linguagem encontram-se aqui também implicadas, inscritas.

Sexta-feira — 16/02/2024

Mote: imaginar um tempo passado. Por exemplo, Shakespeare escrevendo Hamlet (To be, or not to be, that is the question). Ou um ambiente aldeão de Bruegel, o Velho [e temos outras pinturas, etc.; e o cinema também busca isso]. Estes contextos e cenários também foram presentes.

Nas áreas do saber, o homem, sempre preocupado com as origens mais remotas, até as suas. Curiosamente, quanto mais recua, mais sente que avança.

A impressão de viver o que se nos depara ou o que presenciamos como algo já de fora. Espaço e tempo parecem cruzar-se aqui. Ausência temporal e ausência espacial. Recordamos algo ou alguém, enfim, ou um contexto que já não existe, ou que já não acontece (o espaço de um café, suas mesas, etc.). Contrapomos isso, enquanto era existente — enquanto ocorria, recordando-o –, ao inexistente: a isso enquanto já não existente, enquanto já ausente. Comparamo-lo com algo que ocorre agora (o espaço de um café, suas mesas, etc.). De facto, o espaço de um café é algo que, na história, já vem de algum tempo atrás.

Segunda-feira — 19/02/2024

Mas, de repente, notamos algo em comum entre esses dois contextos de espaço de café. Absolutamente distintos, na singularidade de cada um, e também no tempo e no espaço. Todavia, algo faz com que o presente que se está a viver no momento actual — diverso do passado (a outra sala de um café), e na medida em que este presente tem algo em comum com aquele passado — se afigura, também ele (no momento presente), como um filme e como algo que parece já ter sido.

PS:

Cheirando as páginas do livro de Proust, do qual recolhi a epígrafe, senti-me mergulhar numa antiga visita a um alfarrabista no Bairro Alto.

Marcel Proust, A la recherche du temps perdu — Le temps retrouvé, Paris, Gallimard, 1959.

© L. de B. Tavares — c 2000

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