Sobras do Som e da Fúria/ 1 , algumas notas para uma ecologia política

Daumier

Como os tempos estão tristes e, simultaneamente, descortino na melancolia um dos pecados mortais, um daqueles que mais combato em mim, lembrei-me de tecer algumas considerações políticas e uma proposta — ao jeito de uma elegia carnívora. Vai este lençol ser dividido em três partes para que o leitor cochile mas não durma de um modo irremediável. Boa sorte.

I

Como são tristes os tempos em que os loucos são guias dos cegos.

William Shakespeare, King Lear, IV, 1, 48

1.

Esta semana vi uma entrevista com o Ian McEwan, a propósito do seu último romance, que me encantou. Por dois motivos: é retemperador encontrar um escritor a quem a escrita concedeu, para usar uma expressão do Ruy Belo, algum «transporte na alegria», e isso era nítido no escritor inglês, depois porque às duas por três esclareceu com uma invejável clareza:

«Prefiro estar com cientistas a estar com intelectuais. Os cientistas quando deparam com um problema discutem-no minuciosamente para encontrar uma solução — esse é o motor da discussão. Os intectuais, não, quando encontram um problema gostam de chafurdar nele até à demência, mas não são tão ávidos a buscar uma solução!».

Parece-me este diagnóstico exacto e luminoso e constitui um dos acicates deste meu texto exploratório sobre algumas reformas que sugiro para uma rotação no modus vivendi da democracia. Porque estou farto de lamúrias, de inconsequências, asfixias e impasses, e porque o pedal da Esquerda convém voltar a funcionar e que o seu ritmo credibilize e seduza.

Como sou um escritor e não um político, não penso prolongar esta discussão para além dos limites da sensatez, isto é: apresento a minha proposta e depois vou à minha vida, isto é, volto aos romances e poemas, deixando os meus amigos e inimigos intelectuais a chafurdar na irrelevância do que apresentei e no debate sobre as carências ou o esgotamento vitamínico dos meus neurónios.

Estejam os meus amigos à vontade. E podem perfeitamente chamar-me idiota, até porque, como o sabia Macbeth «a realidade é efectivamente idiota» e «antes de significar imbecil, idiota significa simples, particular, único na sua espécie.» (Clement Rosset)

Entretanto, primeiro comentemos alguns estorvos e tropeços, depois passemos às propostas.

2.

Comecemos por citar o cidadão do mundo mais improvável: o Dalai Lama. Diz sua Eminência:

«O que é que faz fluir um rio? O facto das suas moléculas não aderirem».

Extrapolemos para a Democracia a qualidade que ele atribui ao rio.

Pois é, aderir torna inquinadas as águas, só a independência das moléculas, a sua autonomia, lhe garante a fluência. Eis o que explico às minhas filhas quando elas me perguntam o que é a democracia. E melhor não sei.

3.

O pensamento de René Girard ainda não foi objecto de extrapolação numa análise política séria porque esclarecer a inteira carga de energia com que as massas se entregam ao mimetismo (a incapacidade de contrariar o “pensamento colectivo” e que se converte em aderência e imitação) supõe um diagóstico muito duro sobre as ilusões e falácias de uma práxis política que enganosamente se imagina à Esquerda para afinal não ser mais do que uma modulação que pretende ocultar a imobilidade social e a lisonja ao poder, sob as mais variadas máscaras.

4.

Nos EUA continuam as marchas de protesto, contra a eleição de Donald Trump. O que é espantoso é que apesar do anterior e fragoroso exemplo de Al Gore, que obteve muitos mais votos populares que Bush para afinal perder o pleito, aliás, apesar desta derrota de Hillary constituir a oitava vez em que um candidato não é nomeado presidente tendo não obstante a maioria dos votos populares, nada se avançou para colocar em questão o método — o particular sistema eleitoral americano não corresponde a “um homem, um voto”, dá antes a cada Estado o mesmo número de mandatos para o colégio eleitoral; independentemente de, por exemplo, os quase 4 milhões do Arizona contrastarem com os 30 milhões da Califórnia, cada um destes estados elege dois senadores para Washington D.C.

Desta vez, e ainda a contagem dos votos não chegou ao fim, e a candidata democrata já superou em mais de um milhão de votos os do candidato vencedor.

Contudo, confiando irracionalmente na bondade do sistema, aceitaram ir a jogo, legitimando as regras que permitia este tipo de desenlace, e agora protestam-no — quando as regras poderiam ter sido discutidas antes? Por que não o fizeram? Talvez porque essa questão não se colocaria se o seu canditato tivesse ganho.

Não fica plasmada nesta inércia uma manifesta falta de seriedade política? Com que sentido estrebucham aqueles que velaram pela manutenção do sistema? No fundo — e é esta a natureza dos compromissos que deitam tudo a perder, apesar da ilusão que possa carrear uma sucessão de vitórias de Pirro — queriam jogar em todos os tabuleiros.

Daumier

Há uma circularidade tão idiota nesta evidente incapacidade para ler as incidências e os remates da História — oito vezes, caramba — e de agir, preventivamente, em conformidade, que nos ocorre que, pelo menos politicamente, as sociedades são sonâmbulas ou seguem os preceitos do tema borgesiano de um homem que é sonhado por outro. Matrix?

Na prática, vai ser interessante observar as dinâmicas internas de uma democracia na qual a maioria nominal da população sente que padece de democracia (é como o drama de um “pai” que padece do “filho”), que tem o horizonte embaciado e sem saída.

Quando o homem sente que tudo o que o rodeia faz parte do seu cárcere, das duas uma, ou cai no ensimesmamento e deixa de participar (o absentismo), ou rebela-se pela violência.

Esse o resultado inevitável de uma democracia entendida como fagocitação dos “enfraquecidos” e não como perpétua negociação, como geradora de instâncias de mediação.

5.

«Quem ignora efectivamente que os lobos andam em matilha», perguntava Deleuze.

É em matilha que a liberdade se procura, ou se perde. Equivocadamente, porque em matilha só se propaga a cólera e o enlanguescimento, o discernimento não é uma propriedade colectiva.

Contudo, como devolver momentâneamente à acção política o discernimento, i. é, a vigilância na espontaneidade aos movimentos colectivos?

Como assegurar a sua eficácia? Estas são questões cruciais.

Zizek conta esta história de deprimente:

«Nos bons tempos do socialismo real, uma piada comum entre os dissidentes servia para ilustrar a inutilidade de seus protestos. No século XV, com a Rússia sob ocupação dos mongóis, um camponês e a esposa caminham por uma estrada poeirenta do interior; um guerreiro mongol a cavalo para ao lado deles e diz ao camponês que vai estuprar sua mulher, acrescentando: “Mas, como o chão está muito cheio de pó, segure meus testículos enquanto estupro sua mulher, para que não se sujem”. Depois que o mongol faz o que quer e vai embora, o camponês começa a rir e pular de alegria. Surpresa, a mulher pergunta: “Por que está pulando de alegria se acabei de ser violentamente estuprada na sua frente?”. E o camponês responde: “Ah, mas eu o enganei! O saco dele está todo sujo de pó!”. Essa piada triste revela a situação dos dissidentes: pensavam que estavam desferindo duros golpes na nomenklatura do partido, mas só conseguiam sujar levemente os testículos; enquanto isso, a elite dominante continuava a estuprar o povo…»

Andamos a segurar os testículos do inimigo.

Admira se a democracia vive hoje em estado de coagulação?

Urge uma diluição assistida — recuperar a iniciativa e marcar a agenda dos acontecimentos -, a fim de que possa suceder-se-lhe a reacogulação, isto é, um processo em que vejamos recompor-se por um período de re-definição de valores a sua transparência perdida.

Ondulam os fluxos e, apesar de vivermos no pico duma diluição selvagem dos fundamentos democráticos, é aceitável acreditar que «em certos momentos, por redes subterrâneas mas não menos vigorosas, uma energia inegável, percorre o corpo social» — aventa Maffesoli, que não cede ao niilismo que promete a saturação.

6

A democracia (como a liberdade) não é uma coisa adquirida e a sua natureza é instável. Por isso o espirito democrático não se adquire por decreto, é fruto de uma incubação, que necessita de tempo e do exercício contínuo da reformulação dos seus processos e fundamentos.

Tal qual como acontece nos casais a democracia pressupõe uma refocagem constante, a discussão periódica e o renovar dos projectos.

Um dos mais argutos teóricos da democracia é o poeta trágico grego Ésquilo que, ao contrário de Heródoto, não fala de democracia propriamente como domínio das maiorias sobre as minorias mas sim como uma mediação entre os extremos: entre o rico e o pobre, entre o velho e o jovem, entre o são e o enfermo, entre o homossexual e o heterossexual, entre o empresário fabril e o ecologista, entre a discriminação rácica e as minorias, etc.

Deste ponto de vista não tem sentido autorizar a clivagem que com frequência crescente nas sociedades neo-liberais se estabelece entre uma democracia política e a económica, porque no sentido originário democracia significa exactamente relançar as pontes para a emergência de uma mediação.

Quando se cerceia essa possibilidade ou se fala em políticas pragmáticas para legitimar a prevalência do poder económico é porque já se escolheu um lado da barricada e não é o da mediação.

Daumier, Gargantua

Ao invés, repetiu recentemente o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grimsson, “a Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro”. E os islandeses mostraram que quando paga a orquestra deve escolher o regente e as pautas que a orquestra deve interpretar.

7.

Socializarmo-nos democraticamente implica o destemor de apresentar alternativas e de permitir interferências, dado que o fito não é o controle mas o exercício da multiplicidade e dos direitos, o que obriga a interiorizar o debate e a cidadania.

Neste sentido, a democracia, mais do que o exercício da alternância democrática, deve consagrar-se como a reserva do inigual, do diferente, e deve fomentar um sentimento de não-pertença e de distância analítica que se reforça pela persuasão com que direitos e sensibilidades emergentes ganham novos focos de mediação, novos intermediários. Só aí o movimento social se realiza.

Para definir movimento, apelamos ao filósofo Alain Badiou, de quem traduzimos os próximos dois parágrafos:

«Um movimento é a condição fulcral para toda a política. Porque se não há movimento, a única coisa que existe é a ordem — que abafa o movimento. Então, chame-se movimento a uma acção colectiva que obedece a duas condições: em primeiro lugar, esta acção não está prevista nem regulada pela potência ou o poder dominante e sujas leis. Logo, esta acção pressupõe algo imprevisível, que rompe com a repetição. Chamamos movimento a algo que rompe com a repeticão colectiva, social. É a primeira condição.»

Frise-se: o movimento, deve romper com a unanimidade mimética, é sua condição.

A segunda condição para um movimiento é «que se proponha dar um passo mais, adiante, no que respeita à igualdade. A consigna de um movimiento, o que diz, o que propõe, vai, de una maneira geral, no sentido de uma maior igualdade».

Para que exista um movimiento, então, é necessário que se reunam estas duas condições: o seu efeito é a emergência de um novo “intermediário”, de uma nova sensibilidade em relação à decisão política e às instâncias de mediação .

Nesta pequena nuance da mediação joga-se a superação de uma democracia representativa para uma democracia reencantada e este salto é vital.

Uma democracia é tanto mais autêntica quanto mais efectiva for a expressão das suas minorias. Corolariamente,

não é a suposta representatividade de um partido no governo ou na oposição ou o jogo da rotatividade, que sustenta a democracia mas, sobretudo, a estabilidade das instituições que favorece o incremento de paralelos organismos de intermediação cuja dinâmica reactualiza os programas sociais, os adapta às novas sensibilidades e fiscaliza os actos governamentais.

7.

Por que é que em vez disto assistimos a uma crescente anomização da Democracia?

Comecemos pelo primeiro sintoma.

A gritante hegemonia da comunicação social americana, que panicamente se posicionou a favor da candidata democrata Hillary, não se executou simplesmente como uma marca de repúdio, fóbica, a roçar a exclusão, ergue-se igualmente como sintoma da degeneração previsível em todo o “pensamento da unanimidade”:

a parcialidade cega que foi trucidada na votação em Trump ilumina a evidência de que, cem anos depois de Freud a comunicação social não entendeu ainda que tudo o que é recalcado volta com o dobro da força. Reduzir Trump ao silêncio e à caricatura foi empossá-lo. É caso para perguntar, seria, afinal, esse o verdadeiro objectivo não-declarado: “celebrar” a derrota?

Neste caso, perguntam-me havia outra solução, dada a manifesta truculência do candidato republicano e a sua acostagem aos ítens da extrema-direita?

O sucesso de Trump resultou como “efeito desejante” do que não se falava, do lixo que se mandava para debaixo do tapete. O frívolo conforto da unânime em relação ao que não se queria ver é que o catapultou: houve o sanguinolento baldeamento da Realidade sobre o parquet ideológico.

A República, Daumier

9.

Uma supremacia de longa duração de um pensamento “políticamente correcto”, que em nome de “um não-dito conveniente” dispensa a incomodidade de reflectir sobre os problemas, os miasmas comunitários, e com isso vai sonegando, sem os discriminar, focos anómicos e os saudáveis gérmenes da biodiversidade social, degenera facilmente num dogmatismo estéril e ancora-se em esquemas de pertença e de protecção que só apodrecem as supostas “boas intenções” de partida. Torna-se uma sociedade dependente do vício.

Um dos vícios não declarados é acreditar que um regime é democrático porque é nele vigente, e de forma horizontal, o direito sazonal a executar o exercício mimético de apontar-se os dedos àqueles que, a bem ou a mal, rompem a norma e são escolhidos como bodes expiatórios (- sendo de somenos importância, aqui, a natureza de quem se escolheu excluir). Isso é confundir o linchamento com a “liberdade de imprensa”.

O que faz a efectividade da liberdade de imprensa é o modo operativo da reciprocidade (- e não existe o recíproco sem o múltiplo e o assombramento do inesperado), que a sua força como alavanca de reversão na dinâmica social produza a inscrição e os seus efeitos na identificação dos problemas e no poder judiciário. Se eu escrever para um saco roto, i.é, unicamente para confirmar o bode expiatório da minha comunidade de pertença, ou para acrescentar ruído ao muro da indiferença, a liberdade é como aquela mãe sem braços que quer retirar o filho do rio.

Um bom exemplo disso é o alinhamento dos jornais por estratos ideológicos: eu posso à partida, com uma confiabilidade de 90%, adivinhar tudo o que posso encontrar no Observador, como no Expresso, ou no Correio da Manhã, por exemplo. O mistério — para mim — é que esses jornais continuam a ser sucesso de vendas.

Talvez se comece a descortinar uma explicação se atentarmos no que lembra Sousa Dias, em “Marx, Zizek e Beckett”: « Nietzsche previu, no século XIX, a vinda do “último homem”, do “homem chinês”, como tipo antropológico universal. Chamava-lhe também o “supermacaco”, antítese do “supra-homem”: em vez do homem para lá do homem por auto-superação espiritual, um infra-homem, o escravo “livre”, por auto-satisfação material: “um pequeno prazer para de dia e um pequeno prazer para de noite” (cito, de cor, o Zaratustra). Um homem medíocre massificado, transversal a todas as classes, culturas e raças, desprezador de qualquer sentido de grandeza, como forma final, finistórica, do homem. Os Estados ditos comunistas, os Estados marxistas-leninistas, esforçaram-se por dar razão a Nietzsche, através da figura do “homem novo” socialista, do universal proletário: um povo de iguais. Pergunto-me se aquilo a que assistimos hoje à nossa volta não é a realização, mas numa versão “democrática” muito mais cínica e eficaz — porque operando por ilusão de livre auto-afirmação individual — , da profecia nietzschiana.».

Façamos agora um link: na sociedade ocidental esta figura do «homem novo» tem um decalque no abstracto «gosto médio» imposto pelos mercados, sujeição a que todos os média — reféns da publicidade — se submetem. Vimos assim como a comunicação social se torna a primeira vítima do «despotismo mercantil de que falava Bensaid» (Sousa Dias) e que devido a isso se condenam a multiplicar periodicamente os seus tratados da vulgaridade inconsútil.

A razão porque se fidelizam os leitores a um determinado órgão de comunicação que vive sobretudo das suas “marcas de reconhecimento” está explicitamente associado à forma como a grande maioria das pessoas encara a cultura: como um princípio, uma reserva, de identidade.

Enquanto para mim, pelo contrário, a cultura é o “ground” que nos permite assumir as diferenças, aplacando em si mesmo o atrito produzido pelas nossas escolhas. A cultura seria, neste sentido, esse espaço generoso que nos permite a liberdade de chegar à não-referencialidade, de afrontar o desconhecido. O “molde” ideal para o diferimento e não para a celebração do mesmo.

Daí que liberdade precise de ser confirmada em actos, o respeito mútuo necessite de ser reiterado, o silêncio dependa do tumulto da palavra; urge sancionar a diversidade dos pontos de vista e a qualidade analítica.

Uma comunidade onde, por omissão, se abafa a reciprocidade (o outro discutir o que eu penso dele e vice versa) ou que estigmatiza a presença das sombras no manto social sem curar de indagar porque se produziram essas sombras e como atenuá-las, rapidamente perde o discernimento e fica incapaz de reconhecer as latências, as marcas do diverso ou da qualidade.

E, em nome de convenções momentâneas ou de interesses corporativos, remerge uma sociedade doente e que não autoriza as mediações. Apesar de sustentada por uma famigerada liberdade de imprensa.

Daumier, Repouso da França, (ou “repouso da democracia?”)

10.

Baudrillard, que tinha algo de irritante apocalítico-pronto-a-vestir, de “profeta social”, infelizmente acertou em alguns dos seus diagnósticos. Como ele explicou, com o fim do comunismo acreditou-se que a história recomeçava. Porém, o que se lhe sucedeu foi «uma colagem dos resíduos da história. Os dois sistemas (o socialismo e o capitalismo) trocam os seus resíduos segundo uma contaminação perversa, no espaço homoestático da nova ordem mundial (…) Os dois sistemas contaminam-se. Um transmite ao outro as suas tecnologias, os seus mercados, o outro transmite-lhe a sua poluição, os seus vírus, a sua angústia. (…) O que triunfou não foi o capitalismo. É o mundial (assim designava Baudrillard a globalização), se o quisermos, ao preço do desaparecimento do universal em termos de sistema de valores. Bem vistas as coisas assistimos a uma espécie de excrescência dos direitos do homem e da democracia, mas na medida em que, simultaneamente, a sua eficácia se esboroe. Não estamos mais diante a uma relação de forças entre dois sistemas, mas numa espécie de competição negativa a ver quem rapinará mais, ao arrepio dos seus próprios valores, no intuito de os liquidar — é uma corrida para a liquidação».

Os instrumentos residuais que claramente foram vertidos do bloco socialista para o bloco capitalista são a burocracia e a corrupção, dois males congénitos e evidentíssimos para quem como eu habita num país que transitou de um socialismo de opereta para um capitalismo cru.

De que é que, deprimentemente, verificamos padecer hoje a UE, nos corredores de Bruxelas e na sua anemia política? De burocracia e de uma camuflada corrupção.

E nos “países desenvolvidos” onde a paisagem social é dominada pela mediocracia — que aliás paradoxalmente imita os mecanismos de reprodução das sociedades que para manterem intacto o seu status quo camuflam o seu “socialismo de ontem” -, não é hoje nítida que a idolatria do igual e da doxa corrrompe a inteligência, obstruindo a valorização das competências; o que acarreta uma quase invariável promoção da mediocridade e o impedimento do juízo?

A prazo, como acontece nos países pós-socialistas, o corolário é o espírito de “fusão” alargado aos “pequenos poderes” da administração, na hieraquia das empresas, ou nas células partidárias, com o consenso a silenciar a assertividade, a autonomia de opinião.

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