Sete rosas para Eduardo Prado Coelho

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4 min readMar 29, 2024

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João B. Ventura

Nos antípodas dos escritores bartlebianos, Eduardo Prado Coelho sempre que instado a escrever algo, imediatamente o fazia. O seu percurso intelectual caracterizou-se por uma insaciável vontade de aparecer, uma quase incontrolável necessidade de testar e desafiar convenções através de uma escrita iluminante, fosse no sentido de abrir clareiras no universo da crítica e dos autores que nos foi dando a conhecer, fosse no sentido do brilho que a suas próprias palavras irradiavam.

Moderno nas convicções e na visão cosmopolita do mundo e pós-moderno na atitude arriscada e pouco ortodoxa como encarava a crítica, a ele devemos a divulgação em Portugal dos grandes debates intelectuais das últimas décadas, assim como um conjunto de ensaios incontornáveis para o estudo da literatura portuguesa. Da leitura desses ensaios, fica-nos, às vezes, uma sensação de excesso bibliográfico e de obsessão pela novidade, mas isso não diminui em nada a originalidade e, sobretudo, a espontaneidade crítica do “oficiante mais brilhante e ativo” da “pequena ou grande capela da cultura portuguesa”, como escreveu Eduardo Lourenço num elogio póstumo publicado no Público, em 2007.

A profusão bibliográfica, as citações que usava à maneira de Walter Benjamin ou de Jacques Lacan (“pego no que me serve, ali onde o encontro”), constituíam aberturas, fugas para outros livros, para outros autores que generosamente partilhava connosco. Os textos que nos oferecia eram sempre textos com muitos textos dentro. Ora “do pecado da generosidade ninguém se deve arrepender”, disse Eduardo Lourenço. Nem se queixar. Antes agradecer.

Intelectual “inorgânico”, Eduardo Prado Coelho foi à maneira musiliana um crítico sem qualidades num tempo onde já se intuía a desagregação do pensamento jornalístico desprezado em nome de uma retórica exclusivamente informativa e de uma ética de insustentável “objectividade”, que haveria de conduzir à sua rasura actual.

Foi um crítico capaz de se adentrar por qualquer território: do cinema à poesia e à ficção e da crítica literária à filosofia, quase sempre sob signo de Michel Foucault, Jacques Derrida, Roland Barthes, Umberto Eco ou Alain Badiou, entre outros, que enquadraram a sua rêverie pessoal fazendo reverberar a sua escrita luminosa.

E andou também pelos territórios movediços da política, porque a disposição do mundo sempre lhe impôs o exercício do juízo e do posicionamento cívico, recusando os lugares fixos e contemplativos do niilismo pós-moderno onde se fixam a maioria dos académicos.

Daí que na política, como noutros territórios, nada lhe fosse estranho, como provam as várias patologias de posição que a afeção pela novidade intelectual lhe foi sugerindo ao longo da vida, o que lhe valeu, não raras vezes, a incompreensão e mesmo a acusação de carreirista político, facto que pouco ou nada o incomodava, pois sentia “a mais soberana indiferença por quase tudo o que pensavam ou escreviam a seu respeito”.

E a ele se deve, ainda, a reabilitação da movediça crónica jornalística diária sobre temas mais ou menos mundanos que publicou no Público sob o título O fio do horizonte. Uma escrita que não falhava a oportunidade de agarrar o acontecimento, dando forma ao seu conteúdo: “Cenas da vida quotidiana, memórias envolvidas na nostalgia do tempo, transformações do mundo quotidiano, polémicas, movimentos de humor, análise política, inventário cultural”, tudo lá se encontrava graças à sua capacidade rara de apanhar o dia de modo expedito, respondendo à urgência da “atualidade”, na tentativa de “tornar mais puras as palavras da tribo”, como propusera Mallarmé num verso do poema “O túmulo de Edgar Alan Poe” (Poesias).

Dos dias que passavam caía-lhe sempre um tema, porque “a vida à nossa volta dá-nos inúmeras sugestões”, que transfigurava depois em matéria de crónica, umas vezes provocatória outras laudatória, umas vezes impertinente outras apaziguadora, mas sempre respondendo ao acontecimento através de uma tonalidade política que dava espessura a uma escrita jornalística onde ia acumulando os farrapos que se amontoavam no fio do horizonte e que generosamente distribuía depois em forma de crónicas breves que recusavam o refinamento dos “livros de estilo” e a ideologia da comunicabilidade.

Prado Coelho deixou-nos prematuramente. Tinha então 63 anos. Foi seguramente o intelectual português mais espontâneo e mediático das últimas décadas, uma espécie de “intelectual público” que tinha um sentido festivo da vida.

Da sua vasta obra ensaística destacam-se O reino flutuante (1972), Os universos da crítica (1983, versão da sua tese de doutoramento), A mecânica dos fluídos (1984), A noite do mundo (1988), os dois volumes do diário Tudo o que não escrevi (1992 e 1994), O cálculo das sombras (1997), A razão do azul (2004) e Nacional e transmissível (2006).

Eduardo Prado Coelho faria hoje 80 anos. Morreu num dia de Verão, deixando-nos as rosas que permanecem vivas onde rumoreja a fonte, tal como no poema “Cristal” (“Kristall”), de Paul Celan, cujos versos premonitórios tinha escolhido para título da sua nova coluna literária no Ípsilon, que já não chegou a publicar, e que bem poderia ser o seu epitáfio: “Não busques nos meus lábios a tua boca, / nem diante do portão o forasteiro, / nem no olho a lágrima. / Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho, / sete corações mais fundo bate a mão à porta, /sete rosas mais tarde rumoreja a fonte”[1] (Sete rosas mais tarde).

[1] Nicht an meinen Lippen suche deinen Mund,/ nicht vorm Tor den Fremdling, / nicht im Aug die Träne. // Sieben Nächte höher wandert Rot zu Rot, / sieben Herzen tiefer pocht die Hand ans Tor, / sieben Rosen später rauscht der Brunnen.

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