É o teu rosto fecundo entre bivalves

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
6 min readDec 19, 2017

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O poeta Alfonso Pexegueiro

Inez Andrade Paes

Para, SERÃO OS CISNES QUE VOLTAM?

de Alfonso Pexegueiro

No abandono a mulher assume o papel de Virgem. Na espera, na ausência, acorrentada a uma montanha de granito. Este abandono acorrenta-se a ela, e a espera, a espera. Como Penélope no “Nocturno” do Poeta.

À volta do Cisne, a Leda, figura casta, imaculada dos pintores da Renascença.

Dedica o autor este livro “a todos os que sofrem”.

O mar avança e bate, bate, bate. Cega qualquer molusco que sem olhos ali se prende. Assim há corpos que se apresentam nas fugas. Sem olhos. Presos.

Quando a Pega pousa e começa a andar, anda com um ar desinteressado.

O Poeta prepara o leitor.

Mas o que emerge é vida e em nada que se pareça deve ser comparado com desinteresse. (Matéria que nos sugere que nas generalidades de hoje o importante torna-se banalmente desinteressante).

Tal desinteresse não está no coração dos Poetas.

Uma carga sensorial, táctil, exegese intimamente forte, revela-se na escrita de Alfonso Pexegueiro.

Estão presentes os pássaros, conotados estes e as palavras, com a tempestade, a noite, o escuro, o entardecer, a morte, a dor. A Pega, o Mocho, a Coruja, o Corvo.

Com a liberdade que sugere aqui, a prisão.

O Cisne.

O Poeta quer encontrar não o vôo mas o chão. Os Cisnes que voam mas preferem estar mais perto das serenas vagas dos Lagos, chegando até ao Mar também. Mas o chão que é preciso sentir, nos pés, nas mãos, nos joelhos, depois da observação dada através de tanta morte e o corpo de quem observa tudo isso, sucumbe em posição fetal.

Cisnes, as belas figuras finas e serenas de tom alvo uns, de tom negro outros e os cinzentos que se perdem e se nublam com as forças energéticas que do ar e da água se turvam deles ficando só o bico solto navegando entre as neblinas e os nevoeiros.

Surgem a vida e a morte na figura mais amorfa. Mas surgem através da imagem de uma criança que do dorso do Cisne se completa e avança como um pequeno guerreiro, um pequeno príncipe, um pequeno ser, ainda intacto sem a mão do homem que o cega e o torna bivalve, o diminui em mais pequena e miserável figura. E os olhos e os olhos que dele são dois buracos fundos mas cheios de vida nessa morte pelo mar adentro entre peixes e algas. Trazem as algas até à costa, estas figurinhas que deviam andar só, no dorso dos Cisnes.

“sobre este corpo talvez de cansaço

sobre esta loucura de nos cobrirmos com os nossos corpos

….

nada há para dizer”

SERÃO OS CISNES QUE VOLTAM?

Duas crianças vão ter com um Cisne, entram no lago até meio corpo

O Cisne desliza suave, nas águas quase tranquilas até eles

O menino abraça a menina e une-se o Cisne a eles

A luz que emana da ave faz-se da inteira presença do corpo daqueles meninos

Imponência no lago de águas quase tranquilas

Cada pergunta traz uma armadilha consciente (no poeta). As perguntas. Dos Bichos.

São meandros quase ilegíveis (a não ser que se entre na mais selectiva e distinta unidade de ser de um completo segmento) que a plenitude nos pede. Altivamente o olhar pode erguer-se.

Diz o Poeta — “Apenas a Poesia nos pode tirar dos infernos que a Inteligência cria”.

Uma força que nos agarra e nos empurra mas na sua percepção deixa só uns gemidos finos e faces sugerindo horrores. E o poderoso amor na escrita de Alfonso Pexegueiro. Pássaros serão seus vôos de liberdade e até qualquer Ave que possa não saber voar traz no peito o tom de quem ama.

Uma leitura em folhas, estas de chá, que em gestos marcados e moldados com a unha em folhas de papel, surgem em escrita, em memória.

“perguntam desfeitos (cada um à sua maneira) / vozes — calados /a quem perguntam ingénuos e / lendários cadáveres irreconhecíveis?”

E a réstia do que fica, um pó quase ilegível mas aberto ao crescimento do ser e do que agora, se pode compreender entre a razão e o íntimo da palavra agnostus, força de mais não querer sentir. Aceitar. Ficando sempre na incrédula fórmula dos mapas, porque há mais montanhas por explorar.

As cidades, as grandes cidades dos homens. Ali se conjugaram todos os esforços. Desde a força motora, aos olhares e vozes esgares. A Europa segue o rumo das cidades antigas e parte-se e reparte-se num viciar constante, “onde o relógio deixa ver (apenas) dois dias iguais / e infinitos, enfrentados”

Sempre porque a busca é constante

“onde o coração é também uma cidade saqueada / como a palavra”

“não há nada dentro do sonho, Nev”

E a porta está entreaberta, a luminosidade do que pensam os homens velhos, ser a morte, ainda surge em vida poderosamente límpida e sem ruga, dentro do sonho ainda.

Lilith um ser frágil, de respirar fino mas de uma lucidez precisa. Surge o Poeta neste ser com o mar e o lago azul nos olhos de Lilith.

Entrega-se. É a carne una, a mão segura.

O Poeta trá-la bela embora a humanidade a castigue na vã e leviana figura.

(Lilith de trigo azul nos olhos)

ela novamente perseguida

ela cheia de gritos

ela com formas de vento

A primeira mulher, o primeiro rasgo de dor entre o amor e o castigo.

o sol dar-me-á nas costas…” e em frente um adágio.

As vísceras são postas à luz para que se vejam e entre elas há Corvos, Abutres e caras de fora.

Uno aqui ao Poeta um outro Poeta, Rimbaud, um esgar em si próprio, uma velatura.

Serão os Cisnes que voltam?”

A importância do abraço no crescimento da criança na madrugada e no vespertino Crepúsculo.

As faltas, omissões, as violências, as distâncias limites em que se formam crianças, moldadas por elas mesmas, porque dos progenitores as vísceras andam presas às vestes e são de ângulos primários e sem poder de alimento nem para os pássaros. — os que limpam -

As orgias capazes de misturar os gritos das infâncias mal tratadas entre homens e mulheres amando-se.

Vestida de mulher Atenas enfrenta animais marinhos que surgem como um réptil na areia branca, onde a mulher como louca, grita e deixa-se ficar entre finas películas.

Caberá a Atena a estratégia, a habilidade de uma civilização que nesta representação literária é crua má e ao mesmo tempo mostra uma certa bondade: a representativa arte. Porque a imagem em volta é de beleza mesmo quando o seu espírito se altera.

“calas, Atenas, ou escondes algum silêncio?”

O Poeta descreve-se ao leitor, como se ele o tivesse acompanhado em toda a sua vida neste penoso percurso da sua existência. As crianças e os Cisnes voltam sempre na madrugada em que a aurora se dissipa e traz luz aos mortais.

Há uma força poderosa que nos agarra a ficar em espanto a ouvir a história. E já adulta a chorar.

“não sei com tantas flores nos olhos pretos

(era uma roda demasiado pesada para uma bicicleta)

Se o dizem

no cristal a chuva enlouquecia

os pássaros não se ouviam lá fora

também não era inverno

não se sabia onde estavam as máscaras

por fim ataram-no e deixaram-no só”

Na força do amor a criatura de cabelos ruivos no pequeno corpo abandonado atenua a ausência no lugar ermo, porque de ermo é o sentir da noite para um menino com medo. No abandono as lágrimas, os medos a dor que apenas o silêncio escondido ouve. Na noite os pirilampos trazem esperança, na madrugada, serão a luz do sol e o cabelo de fogo que o acompanharão aos poemas que escreve.

“VI

nada podia ser visto porque tudo era levado escondido

Brota noutras pétalas a dor do Autor.

Nas menções selváticas o amor transcreve-se rigorosamente como o amor deve ser.

- Amor -

“Serão os Cisnes que voltam?”

Deixa-nos o Poeta a mensagem“(as abelhas levam escrito o seu destino nas asas)”

É pela sua vibração conjunta que os enxames se erguem.

Não se escreve a partir de um idioma ou de um país, mas sim a partir da linguagem e do centro humano”, aonde as aves concentram os seus vôos mais peremptórios, uma linguagem que se aproxima da morte abstracta.

habitar uma existência”.

A solidão obrigatória no Poeta.

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