Sem título I

André Medeiros Palmeiro
Revista Caliban issn_0000311

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Quero dizê-lo mas não digo.

Quero senti-lo mas não sinto.

Quero pensar e penso

que não digo o que digo

que não sinto o que sinto.

Tudo é demasiado para mim

(roubo o verso ao Belo porque nele me implico)

e, ainda assim,

o que “Tudo” é?

A totalidade das coisas que me aconteceram,

os gestos terrivelmente angustiadamente importantes que lavramos

ou aquilo que gira à nossa volta e não possuímos.

Morrem as caras mas tudo continua a girar

na imperturbável desarmonia das impressões;

a apóstrofe gasta do vento

na ginástica localizada do poeta,

uma aragem calidamente austera

o cicio dos deuses minúsculos e engasgados da nossa era.

Sorvo as mensagens do ecrã do telemóvel

como lira seminal que fecundasse a

girl next door

dos anúncios da minha rua.

Deito tarde os sentidos

na estesia dos sonos (in)dormidos.

Naquela euforia da acção estática

marco um golo por entre as dobras de Morfeu

(o mais hábil imitador da figura humana)

Quem? Eu?

Dessorado na hora da plenipotenciária afirmação do eu rugidor,

escuto-os:

Acção afirmativa de yuppies de refugo,

um rebotalho sem massa passeando-se, flavo,

em avenidas de azul.

Nada.

Todo um programa de anulação simbólica acontece por aqui.

Ninguém anuncia o fim dos tempos.

O mundo é eterno,

sabe-se do alto dos guindastes;

o vento gemendo operários

os operários gemendo cidades.

A palavra é uma agulha tão fina,

tão perfeita na sua brevidade.

Um segundo a mais e é silêncio. Morte.

O que é o mundo?

Como pode findar o que nunca foi verdadeiramente?

Estado de desânimo.

Figura jacente.

Ó insensatas corolas,

casas murchas de verão.

Sei que irei com a inflação dos pés atapetados

num cortejo mudo de almas migrantes desaguadas

em mares idílicos de ousada perdição.

Em Deus amortalhados, insinuamo-nos.

Vida Morte

Vultos.

A penitente fixidez dos adiados.

Soubera eu administrar sabiamente

as pétalas que guardo cá dentro.

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