Ripley, o (talentoso) homem sem qualidades

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3 min readApr 9, 2024

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João B. Ventura

Ontem à noite, fazendo zapping na plataforma de streaming Netflix com moderada expectativa de encontrar algo que valesse a pena ver, voltei a cruzar-me com Tom Ripley, o vigarista e sinistro assassino que vira no thriller psicológico de Anthony Minghella, O talentoso Mr. Ripley (1999), interpretado por Matt Damon, e antes, por Alain Delon, na adaptação cinematográfica de René Clément (1960). Em ambas as versões cinematográficas, a personagem à qual Patricia Highsmith deu vida em cinco romances entre 1952 e 1991, surge um ar de demónio angélico, uma figura tocada pelo encanto da dúvida, amante da arte e da boa vida, mas, ao mesmo tempo, um psicopata capaz de assassinar a sangue-frio.

Nesta versão em oito episódios, escrita e realizada por Steven Zaillan — argumentista dos filmes de Martin Scorsese, Gangs de Nova Iorque e O irlandês, e vencedor de um Óscar com A lista de Schindler, de Steven Spielberg -, Ripley surge quase como uma peça fora da caixa das séries da Netflix, em que, mais do que o enredo romanesco, o que brilha no claro-escuro em que foi rodado o filme, são os movimentos da personagem.

Tom Ripley, interpretado por Andrew Scott é um vigarista que vive da intercepção de correio alheio e da falsificação de identidades para extorquir pequenas somas; é contratado por um magnata dos transportes marítimos para persuadir o filho Dickie Greenleaf (interpretado por um magnético Johnny Flynn) a regressar a casa. Dickie vive em Atrani, uma pequena cidade costeira próxima de Nápoles, com a sua namorada Marge, onde os dois levam uma vida boémia e despreocupada. Falhada a tentativa de o convencer a regressar, a natureza manipuladora de Tom Ripley vem ao de cima, derivando numa imitação impossível de Dickie, improvisando à medida que avança, removendo cada obstáculo que surge e assassinando friamente quem se atravessa no seu caminho.

Contrastando com a exuberância de cores nas versões cinematográficas anteriores, marcadas pelo azul do céu e do mar, pelas cores garridas dos vestidos e das gravatas, pelos tons de néon cintilante do bar de jazz napolitano e pelo vermelho vivo do sangue, a esplendorosa fotografia a preto e branco da série serve na perfeição minimalista a atmosfera decadente e sofisticada da costa amalfitana — escadarias, sombras e recantos –, e corrobora a ausência de cor no mundo interior de Ripley, simbolizado no fascínio que sente pela pintura de Caravaggio. “A luz, sempre a luz”, comenta Ripley enquanto observa numa igreja um quadro de Caravaggio.

Steven Zaillan resgata o preto e branco do clássico filme noir, estendendo-o desde Nova Iorque, onde a história começa, para as praias e cafés ensolarados da costa amalfitana e, depois, para Nápoles, Roma, Palermo e Veneza, lugares de uma geometria construída em profundidade, com algo de labiríntico, filmado com um realismo encantatório e vertiginoso, cinematográfico.

Tal como a personagem criada por Patrícia Highsmith, a série mostra-nos um Ripley com um requinte quase florentino, educado, ambicioso, manipulador e completamente amoral, um homem sem qualidades morais, em que a nuance entre o herói e o vilão é invertida: o herói é o assassino tocado por uma ligeira auréola de tristeza, um certo niilismo, que faz com que o espectador se deixe levar por uma ambiguidade moral, sentindo empatia com a personagem.

Por isso, foi com alívio que depois de ter visto de seguida, mas vagarosamente, os oito episódios da série, no final fiquei aliviado ao ver Ripley, graças ao seu talento para mudar de identidades, regressar momentaneamente a ele-mesmo, iludindo o inspector da polícia a ponto de descartar qualquer suspeita sobre ele, para logo voltar a criar uma nova existência, ou, melhor dizer, uma inexistência vivida unicamente como persona ou máscara, desprovida de qualidades éticas e morais, mas cheia de talentos para a vilanagem.

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