Ricardo Gil Soeiro, poeta e ensaísta

Ricardo Gil Soeiro: uma poética do Inacabado

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
6 min readJan 19, 2018

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Num país que teima em ignorar os jovens e em fazer rasura de uma geração, como assinalava há dias António Guerreiro numa crónica do Ipsílon, intitulada “A Geração Delapidada”, ensaístas e poetas são provavelmente os mais ignorados, por duas razões: o facto de a poesia ser lida por meia dúzia de «eleitos», e isso pode também aplicar-se ao ensaio, onde ainda é mais rarefeita a sua leitura. Além disso, as faculdades portuguesas fecham cada vez mais as portas aos jovens, mantendo-os numa área (e a uma distância) muito confortável: a de investigadores que trabalham para os Centros de Investigação sem qualquer garantia de futuro, e hipotecando-o em nome da incerteza, independentemente do seu mérito.

Poderia citar aqui uma boa mão cheia de casos que teimam em ser ignorados, mas que nem por isso deixam de ter obra sólida e profícua. Mais ainda quando são avessos a exposição mediática, o «típico fulgor» que está na ordem do dia, ou a um certo tipo de crítica literária que vê no escândalo e na maledicência a fórmula justa para singrar, confundindo crítica com ataque ad hominem ou outras tantas falaciosas formas de chamar a atenção sobre si. Todavia, não faltam em Portugal jovens escritores, ensaístas, poetas e ficcionistas, que, não sendo reconhecidos pela sua presença constante nos eventos literários e afins, vêm construindo uma obra sólida e um pensamento que perdurará contra os modismos. Se teimo no nome de um ensaísta como João Pedro Cachopo ou João de Mancelos, por exemplo, é preciso frisar outros que vão aparecendo e que só aparecem nas margens do visível. E não é de hoje, sabemo-lo, que tal acontece, foi sempre assim.

Falemos então de Ricardo Gil Soeiro, doutorado — e pós-doutorado — pela Universidade de Lisboa, essa figura discreta, ensaísta prolixo, poeta com várias obras publicadas, como O Alfabeto dos Astros (2010), Caligraphia do Espanto (Húmus, 2010), Labor Inquieto (2011), Labor Inquieto (Edium, 2011), Da Vida das Marionetas (Húmus, 2012), Bartlebys Reunidos (Deriva, 2013). Especialista em George Steiner, pois o seu doutoramento incide precisamente sobre este autor, Ricardo Gil Soeiro coordenou obras sobre o autor, tendo traduzido ensaios seus, como os que se encontram num volume intitulado As artes do Sentido e que foi publicado recentemente na Relógio d’Água.

Premiado em 2010 pelo PEN Clube Português, pela sua obra a Iminência do Encontro: George Steiner e a Leitura Responsável (2009), é autor também de Gramática da Esperança (2009), O Pensamento tornado Dança (Roma Editora, 2009), A Alegria do Sim na Tristeza do Finito (Apenas Livros Editora, 2009), e foi, novamente, nomeado como finalista do Prémio PEN em 2016, pelo seu ensaio A Sabedoria da Incerteza (2015).

Como nos explica o autor, o conceito de Sabedoria da Incerteza foi formulado por Milan Kundera e o presente estudo tem por objectivo reflectir sobre uma «Poética da Obrigação», a qual, na óptica de Kundera, procura sempre esse «descaminho» relativamente à verdade absoluta, rejeitando-a e propondo a relatividade das verdades, na esteira do pensamento de John Caputo e de uma tradição que remonta a Cervantes. É também uma perspectiva que se abre às várias possibilidades de leitura e a uma dimensão ética reconhecível em autores contemporâneos e de obras paradigmáticas, como são o caso de Hermann Broch, autor de A Morte de Virgílio, de 1945 (mas também de ensaios estéticos densos, ainda não traduzidos entre nós), de Elizabeth Costello (2003), de J.M. Coetzee, de Água Viva (1973), de Clarice Lispector, de Lisboaleipzig I. O Encontro Inesperado do Diverso (1994), de Maria Gabriela Llansol e de Bartleby e Companhia (2000), de Enrique Vila-Matas.

Se A Sabedoria da Incerteza (2015) já confirma um ensaísta de fôlego e intuição, contribuindo para um diálogo com a literatura contemporânea e alargando as possibilidades de uma crítica literária que ameaça desaparecer, por não comparecer na Imprensa, é com a sua obra Poéticas da Incompletude (2017) que Ricardo Gil Soeiro afina esse instrumento crítico, aplicando-o a vários autores portugueses contemporâneos. O autor alarga aqui o espectro da sua análise, passando pelas poéticas de António Franco Alexandre, Ruy Belo, Herberto Helder, mas dedicando também a sua atenção a autores alemães como Hölderlin, Rilke, Paul Celan e Aby Warburg, entre outros.

Como o próprio o diz, ao referir-se a essas poéticas:

a palavra literária desliza, assim, secretamente; inventando novas possibilidades de vida. Tarefa sempre inacabada, gesto messiânico que traça as vertiginosas linhas de fuga de um devir imperceptivel.

Veja aqui a crítica de Victor Oliveira Mateus ao livro

O ensaísta confronta-se (e entrelaça-se) aqui com o o poeta que é Ricardo Gil Soeiro, autor de Palimpsesto (Editora Deriva, 2016) e de A Rosa de Paracelso (Coisas de Ler, 2017), convocando esse olhar inimitável para auscultar o incêndio da palavra, a «iminência do sempre», derradeiro refúgio que permite a união entre aquilo que a razão analítica separa. Poética, ainda que incompleta, é a capacidade de devolver à palavra a sua magia, a do impensável, do indizível, ampliando, não apenas o dizer, como também o espanto daquele que olha, sempre inquieto diante do enigma da vida. Como o próprio autor o disse recentemente numa entrevista que deu, em Escritores Online:

Prefiro falar em obsessões que polarizam os meus sentidos e que se repercutem depois na poesia que escrevo. Há coisas que me interessam pensar e das quais tenho plena consciência e há outras que se insinuam naquilo que vou escrevendo sem que eu dê conta. Mas há pontos luminosos, para utilizar a formulação de Pound, que me alumiam o caminho: o enigma, o tempo, a morte, a metamorfose, a interrogação sobre a palavra…

Desde o primeiro livro que acompanho a sua obra. Não apenas o seu trabalho poético, o qual promete grandes surpresas, como a sua obra ensaística. Ricardo Gil Soeiro, na sua entrevista aos escritores online, fala como se esses livros já existissem, ainda que não estejam publicados. Como, por exemplo, a obra poética Magma:

A verdade é que não sei muito bem definir este livro estranho. Gosto de dizer que este é o meu ovni: objecto-verbal-não-identificável… O próprio título — Magma — aponta para essa mistura inextricável de diferentes matérias discursivas. Desde muito cedo, tive a percepção de que seria algo intersticial, um emaranhado de diferentes géneros: prosa poética, aforismos, ensaio, poesia, ficção… Cheguei a pensar em vários termos para dar conta dessa hibridez formal e da escrita de fronteira que preside à pentalogia (são 5 tomos).

Reconhecíveis no seu percurso estão esses núcleos ou nós que o polarizam, em torno de umas quantas categorias que, por si só, concentram (e configuram) a imensidão do seu universo, poderíamos dizer, como o diz Benjamin numa carta, que é a arte que salva a noite pelas estrelas que a iluminam. Formam esses conceitos — essas estrelas — determinadas constelações que salvam o poeta da sua noite, esse abismo insondável das significações. Mais uma vez cito-o, para se compreender o modo como tais prefigurações se apresentam, se não de forma programática, de outra forma, ou seja, como «obsessões» da sua escrita:

Hibri-dicção, contra-ficção, contra-dicções: são decerto formulações um pouco infelizes, mas parece-me que salvaguardam essa ideia de uma fluidez formal, de uma radical abertura textual ao informe; por outro lado, manifestam a minha desconfiança perante a diegese linear, a narratividade clássica.

Para Ricardo Gil Soeiro, não apenas o fragmento e o aforismo — um dos seus temas de análise — constituem matéria de reflexão, mas igualmente esses modos de fazer da literatura que se abrem à literatura multímoda, ao arrepio do «era uma vez», da «narratividade clássica», que se encontra subjacente numa concepção mais convencional do literário. Por isso, a estrutura textual, a escolha da linguagem e dos seus dispositivos, constitui apenas a via escolhida para se chegar àquilo que, a meu ver, a literatura guarda de mais essencial: um modo privilegiado de captar o que irrompe da fissura e do assombro.

Veja/Leia a entrevista de Ricardo Gil Soeiro na Caliban.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.