Renúncia e autoabandono em O peso do pássaro morto, de Aline Bei

Yasmin Nigri
Revista Caliban issn_0000311
3 min readOct 19, 2018

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Diz-se que o livro de Aline Bei, O Peso do Pássaro Morto (Editora Nós, 2017), é marcado por perdas. Esta é uma afirmação fácil e um tanto banal, tendo em vista que a narradora do livro, também personagem principal, é marcada desde a infância pela morte.

Na obra, somos conduzidos por uma voz poética que retrata um mundo interior denso, secreto e rico em imagens; este mundo é estorvado por uma realidade material pobre e um cotidiano tedioso, repetitivo e solitário. Durante a vida adulta, essa mulher que nos conta sua história leva a maior parte do tempo presa no trânsito ou a uma mesa de trabalho atuando como secretária. O oposto dos seus sonhos de juventude, quando ela ainda era tomada por sonhos.

Aos poucos, e a princípio de modo inconsciente e involuntário, a personagem vai se afastando de tudo e todos, especialmente de si. O abuso sofrido na juventude é abafado pela vergonha e o medo, como se não houvesse outra escolha a não ser o silêncio seguido da mentira, o que resulta em consequências trágicas. Soterrado, o episódio de abuso se entranha e corrói a personagem de tal forma que deixa de ser um episódio para se tornar sintoma marcado a ferro e fogo naquilo que convencionamos chamar de “eu”, sempre um outro. O que se evidencia no fato de todas as personagens ganharem um nome próprio, menos a narradora, cujo nome é usurpado e em seu lugar entram os significantes filha, mãe, avó, secretária e puta, por onde sua identidade escorre.

É esse o horizonte de lida com a perda que se descortina ao longo da narrativa. Não é um horizonte febril, tampouco inconformado. O que se abre e expande cada vez mais grave é o autoabandono, que se dá à maneira de um olhar perdido que verte uma única lágrima e, quando cai em si, sufoca o peito e volta a se ocupar com qualquer tarefa.

Apesar de o livro ser narrado em primeira pessoa, a narradora é ausente de si e da própria vida e, como nós leitores, observa tudo de fora, alienada na própria renúncia. Na obra, podemos acompanhar por toda a vida da personagem a evolução da marca indelével do patriarcado na identidade de uma mulher. A ela sequer é dado o direito de terminar a própria história, pois nas quatro últimas páginas do livro é substituída por uma voz em off.

Tão bem escrito quanto necessário, O Peso do Pássaro Morto é uma metanarrativa, visto que narra a importância de narrar, dando voz a um sujeito destituído da própria narrativa de sua vida. E vai além: porque nos mostra que é preciso narrar, mas o que de fato é imprescindível, se se pretende mudar o curso da história, é se apropriar da narrativa. Caso contrário, nós mulheres estaremos para sempre fadadas a seguir o curso de uma narrativa alheia onde cumpriremos o papel de observadoras impotentes da nossa própria história.

Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. É colunista do site cultural Livre Opinião — Ideias em debate e foi escritora convidada na Primavera Literária; Sorbonne Université, França 2018. O peso do pássaro morto, finalista do prêmio Rio de Literatura e do prêmio São Paulo, é o seu primeiro livro.

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