Reminiscências: a poesia de Guilherme Giesta

Lorraine Ramos Assis
Revista Caliban issn_0000311
4 min readApr 20, 2024

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Reminiscências: A poesia de Guilherme Giesta

“Daqui do décimo andar

Vejo 141 janelas vizinhas

Vejo praças e viadutos

E as baratas que acenam do esgoto”

Estes versos assinalam a percepção — ou talvez visão de mundo — da lírica memorialística que compõem a obra “Daqui do décimo andar” (Editora Folheando/2023).

A memória é parte constituinte de muitas histórias, que vão da literatura clássica até a contemporânea. Um mito famoso, o de Penélope, da Odisseia de Homero, evoca como que o ato de tecer um manto e suas tergiversações em torno dos relacionamentos caracterizam a mobilidade, o simbolismo com o qual a personagem vai desvelando sua identidade. E até mesmo esquecimento e cultivo de suas lembranças.

A proposta da obra é desencadeada a partir não somente da memória, mas das andanças, ou melhor dizendo, do flaneur (andarilho), haja vista o constante movimento do eu lírico em relação à estrutura da cidade moderna e suas reflexões, que vão desde praias, galerias, cafeterias ou a permanência de um corpo atravessado por janelas, apenas visualizando as ruas e sua gente. Giesta entra em diálogo com autores tais quais Lispector, em particular no texto “Amor” (não bastando essa ligação, o amor também faz parte da obra de Guilherme), criando uma rede metafórica a partir das frases, anunciações dos atos de quem escreve e fala nos poemas, indo de estrofes curtas até longas em fluxo de consciência.

“Existe amor depois do amor

Existe também rancor

Existe um cigarro

E uma escarrada da sacada da janela

Existe a luz do poste que invade o quarto”

Os versos incitam um olhar de questionamento sobre a configuração ficcional: seria uma autoficção do próprio autor, ou uma criação de sequências ordenadas dos afazeres? De todo modo, o transcurso do olhar de um transeunte, um observador, está presente, como se estivesse no mundo jogado às traças. Ou, talvez, tivesse uma missão em anunciar esses acontecimentos.

Além desse deslocamento flaneur, Giesta acena para outra esfera de organização literária: o poema protesto. Nele, as características mais notáveis são a reivindicação político-ideológica e a subjetividade do indivíduo entrelaçada a ela, sem, necessariamente, tornar-se panfletário. Afinal, a literatura é um território povoado de representações e de vozes, como afirmava Alfredo Bosi em seus escritos.

“A biblioteca é um dos caminhos para a transformação social.

Ler é revolucionário. Mas ler não deve ser uma ação solitária.

Ler deve ser exercício social.”

Acima temos a última estrofe do poema “Á mestra com carinho”, na qual uma biblioteca de universidade é o espaço caracterizador dos versos. É uma afirmação: ler pode ser solitário, mas não deve estar descolado de uma realidade social.

Na verdade, há um teor mais humanístico, intimista na escolha de todos os seus poemas estarem na primeira pessoa. Não é uma condição metafórica, mas uma sinalização da vida cotidiana e como que o eu lírico canaliza suas sensações, dialógica por assim dizer, uma vez que a voz poética sempre está a refletir em si mesma, igualmente com os outros. É assim em outro excerto, agora no poema “Instantânea”.

“Rodo nas curvas da tua boca

E vago pelo infinito instante fugaz

Que demora alguns segundos

E eu me perco em seu sorriso

Que me interrompe e cruza esse instante

Feito faca rápida…

Não sobra tempo para descrever mais

Você é rápida feita sombra que passa

E você passa sempre por aqui

Em cada batida

Que ainda espero que seja,

Dos futuros momentos dançantes.”

É uma atribuição de circunstâncias, mas acima de tudo, um ode à nostalgia, ao devaneio, isto é, um ciclo de antecipação de uma novidade, um constante anseio provocado pela memória. A oração “Que me interrompe e cruza esse instante/Feito faca rápida” simboliza, também, o início de um sentimento dilacerador, apesar de aparente felicidade. Como se houvesse não só a ternura, mas um sentimento do sujeito lírico que ainda necessita ser processado por ele.

Por fim, a obra se encerra novamente no fluxo da memória, em tom existencial, característico de sua poética, traçando, assim, caminhos indeterminados pela constância de pensamentos que permeiam o trânsito pessimista, contudo esperançoso.

“Numa obliteração sistêmica tão enojada nos cantos desse ser, você

expressará o que quiser, então

terá coragem para anunciar qualquer fim do mundo”

Uma final triste, talvez, — como a Odisseia de Homero -, mas que ainda assim se insere em uma quase epopeia da poesia de Giesta, sempre a perambular entre as tessituras das esferas privada e coletiva, tornando a memória fruto de uma organização humana, sempre a espreitar pelas janelas do seu décimo andar. “Daqui do décimo andar” faz jus ao que a memória tem de mais profundo em termos de adjetivos: crucial, podendo ser tanto confortável quanto desconfortável. Entretanto, crítica, rebelde e realista.

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Escritora, crítica literária e editora. 26 anos. Colaboradora: São Paulo Review e Revista Caliban.