Entre a vida e o sonho da escrita: Manuel Teixeira Gomes

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
9 min readJan 19, 2017

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Manuel Teixeira Gomes

Em breve será publicada a Obra Completa de Manuel Teixeira Gomes, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Reúne os seus textos que se repartem entre a ficção e a poesia e, pela primeira vez, 66 anos após a sua morte, será finalmente resgatada a obra de um homem cuja vida teve tanto de aventuroso quanto de fascinante e controverso. Bon-vivant, livre, culto, mundano, esses são apenas alguns dos atributos daquele que foi Presidente da República de Portugal, entre 1923 e 1925.

Manuel Teixeira Gomes foi um homem polifacetado e a sua personalidade e vida (bem como a sua obra) são agora abordadas na magistral biografia escrita por José Alberto Quaresma e editada pela Imprensa Nacional- Casa da Moeda.

Como nos dá a conhecer o seu biógrafo, nasceu a 27 de Maio de 1860, em Vila Nova de Portimão, filho de José Libânio Gomes e de Maria da Glória Teixeira Gomes. O seu pai era um proprietário abastado, dedicado ao comércio de exportação de frutos secos e foi educado em França, tendo desempenhado o cargo de cônsul da Bélgica no Algarve. Teixeira Gomes passou a infância em Portimão, onde completou a instrução primária no Colégio de S. Luís Gonzaga e, aos 10 anos de idade, foi para Coimbra, onde frequentou o Seminário Diocesano da cidade, como era costume entre as famílias abastadas desse tempo. Foi aí que concluiu os estudos liceais e conheceu José Relvas, seu condiscípulo na instituição.

Foi precoce, pois aos 15 anos matriculou-se nos preparatórios da Faculdade de Medicina, seguindo os conselhos paternos que sonhavam vê-lo médico. É nessa época que conhece Eduardo Abreu e Eduardo Burnay, que também também eram alunos da mesma Faculdade. Todavia, passados dois anos, acaba por desistir do curso e opta por ir para Lisboa, atraído pela vida boémia e literária. Tornou-se um frequentador assíduo da Biblioteca Nacional e entrou na vida da boémia intelectual (1878), onde conviveu com o poeta João de Deus e com Fialho de Almeida, o que não agradou à família.

Após cumprido o serviço militar, muda-se para o Porto (1881), continuando a sua ligação ao mundo das letras. É deste tempo a sua presença nas tertúlias literárias, onde priva com os intelectuais do Porto: Soares dos Reis, Marques de Oliveira, Basílio Teles, Joaquim de Araújo, Queirós Veloso e Joaquim Coimbra, entre outros. Em 1881 fundou o jornal de teatro, juntamente com Queirós Veloso e Joaquim Coimbra e iniciou a sua colaboração literária no “Folha Nova”. Colabora, ainda, noutras revistas e jornais, nomeadamente naquele que era então uma referência, o “Primeiro de Janeiro”.

Em 1890 regressa a Portimão, reatando a relação com a família e passa a dedicar-se ao negócio paterno — o comércio de exportação de frutos secos. É encarregue, então, de procurar mercados estrangeiros, dando início a uma série de viagens, que incluem destinos como a França, a Bélgica, a Holanda, a Alemanha e, posteriormente, o Norte de África e o Próximo Oriente. Já antes, Manuel Teixeira Gomes havia visitado Argel (1885) e a Itália (Florença e Toscana, 1886), visitando monumentos, museus e galerias e usufruindo de uma cultura que não existia no seu país.

Em 1895 conheceu António Nobre, o caricaturista Celso Hermínio, os escritores Alfredo Mesquita, Luís Osório e Silva Pinto. Passa a promover encontros com Magalhães Lima e, num sarau literário ocorrido em casa dos condes de Proença-a-Velha, conheceu Manuel de Arriaga e Teófilo Braga. É entre os escritores com quem convive, nesse movimento da boémia literária, que se começa a falar de um livro que Teixeira Gomes quer publicar — Inventário de Junho (1900) — ao qual se seguirão posteriormente Cartas sem Moral Nenhuma (1903), Agosto Azul (1904), Sabina Freire (1905), Gente Singular (1909), entre outros.

A partir de 1899, o escritor passa a viver com Belmira das Neves, filha de pescadores locais, de quem tem duas filhas e com a qual nunca casou. Foi a união com Belmira das Neves e a morte dos seus pais (1903) que o levaram a fixar-se em Portimão, onde passou a administrar as suas propriedades.

José Alberto Quaresma dá-nos conta da sua ascensão política, aquando da implantação do regime republicano e das suas viagens enquanto Ministro Plenipotenciário de Portugal em Londres, substituindo o Marquês de Soveral a partir de 7 de Abril de 1911, bem como das suas posições políticas e diplomáticas.

É, no entanto, em 1923 que, apoiado pelo PRP, é eleito Presidente da República, na sessão do Congresso de 6 de Agosto de 1923 contra Bernardino Machado. Teixeira Gomes ascendeu ao cargo com a firme intenção de criar o almejado governo nacional, contando sempre com Afonso Costa, que era o seu amigo pessoal.

Em Fevereiro de 1925, de acordo com o que o seu biógrafo nos vai dando conta, na sua escrita escorreita e fluída, o caos social, político e económico está instalado com os breves e sucessivos governos provisórios, e ocorrem, em Lisboa e no Porto, grandes comícios unitários que são organizados pelas forças políticas e sindicais de esquerda — as “jornadas de Fevereiro”. Estas tentam denunciar o perigo iminente de instauração de um regime ditatorial de direita, exigindo a concretização de medidas que resultem na melhoria das condições de vida das “classes trabalhadoras”. Este período de instabilidade política é também marcado por insubordinações militares, enquanto Teixeira Gomes tenta, em vão, entregar o poder a Afonso Costa. A crescente instabilidade política resulta numa crescente simpatia por soluções autoritárias e as tentativas de golpe de estado sucedem-se, a um ritmo alarmante.

As eleições legislativas de Novembro de 1925 deram nova maioria parlamentar aos democráticos. Foi neste conturbado cenário político, constantemente atacado pelos nacionalistas, que Manuel Teixeira Gomes, profundamente desgostoso com o rumo da política e dos sucessivos governos fracassados e inoperantes, nunca tendo conseguido chamar Afonso Costa ao governo para constituir um governo que pacificasse as várias facções e diante da ameaça de um regime ditatorial, renunciou à Presidência da República a 10 de Dezembro de 1925, alegando razões de saúde.

No dia 12 de Dezembro de 1925 abandonou Belém e alguns dias depois, a 17 de Dezembro, embarcou no cargueiro holandês Zeus, em Lisboa, rumo ao Norte de África e votando-se ao auto-exílio. Dele se despediram alguns populares e meia dúzia de personalidades, entre as quais o ainda presidente do ministério Domingos Pereira.

Cena do filme “Zeus”, que retrata a estadia de Manuel Teixeira Gomes em Argel

Durante 6 anos, finalmente liberto das suas obrigações, Teixeira Gomes percorreu a França, a Itália, a Holanda, Marrocos, Argélia e Tunísia. Foi, no entanto, a 5 de Setembro de 1931, que chegou a Bougie, na Argélia, onde decidiu fixar residência. Numa cidade belíssima, junto ao mar e que hoje se encontra desfigurada, dedicou-se então à escrita. Pertencem a este período os livros Cartas a Columbano (1932), Novelas Eróticas (1935), Regressos (1935), Miscelânea (1937), Carnaval Literário (1939), Ana Rosa (1941) e Londres maravilhosa e outras páginas dispersas (publicado em 1942, postumamente). Nem sequer o casamento de uma das filhas constituirá razão para o fazer regressar a Portugal, ainda que sempre tivesse mantido os contactos com a família e os amigos.

Do conjunto das suas obras destacam-se as suas rememorações de episódios eróticos ou de viagens, sobretudo as que escreveu sob a forma de novela. Alguns dos seus livros, como a sua obra magistral Maria Adelaide (1938), são censurados durante o Estado Novo, devido à ousadia das suas descrições, cuja liberdade, sensualidade e erotismo assumido entram em choque com um país asfixiado pela moral católica. Apenas em 1939 Norberto Lopes publicará no Diário de Lisboa as entrevistas que havia feito a Manuel Teixeira Gomes em Bougie, em Janeiro do ano anterior.

Uma das cenas do filme “Zeus”, onde o realizador cruza o registo biográfico do autor com o romance “Maria Adelaide”

A 18 de Outubro de 1941, Manuel Teixeira Gomes morre, no quarto número 13 do Hotel l’Étoile, onde havia residido nos últimos 10 anos. No filme Zeus, sobre a vida e a obra do escritor, o realizador contou com o apoio do seu biógrafo na escrita do guião, apresentando sobretudo os últimos anos da vida do escritor na cidade argelina, onde nos dá a ver a sua vida no hotel onde viveu e a sua tocante amizade com um dos empregados, Amoukrane, que o acompanhou até ao fim. Foi sepultado no cemitério cristão da vila, no jazigo da família Berg, que era a proprietária do hotel. A pedido da família, os seus restos mortais foram transladados para Portimão, a 18 de Dezembro de 1950.

Para escrever a sua biografia, da forma mais exaustiva possível e afrontando a dificuldade de pouco se saber sobre o período em que o escritor viveu fora do país, José Alberto Quaresma pesquisou durante vários anos o espólio de Teixeira Gomes, que se encontra na Biblioteca Nacional («50 caixas com milhares de documentos»), assim como mergulhou no espólio do Museu da Presidência, da Fundação Mário Soares, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Museu de Portimão e do Arquivo Distrital de Faro. Foram oito anos de trabalho intenso, que conhecem agora a luz do dia. Numa entrevista que concedeu a 17 de Outubro de 2016, o autor da biografia afirmou:

José Alberto Quaresma

Fui à vida pessoal dele, à vida íntima da correspondência com a Belmira, a mãe das suas filhas, e à sua correspondência com as próprias filhas», sublinha Quaresma. E o autor salienta uma contradição que salta à vista depois de analisar essas cartas: «ele era um homem de esquerda, muito voltado para a emancipação das mulheres, mas depois há uma grande contradição nos conselhos que dava às filhas, muito conservadores.

Tal como o reconhece, a sua preocupação não era tanto a de escrever para o leitor académico, mas essencialmente para o grande público, dando a conhecer as múltiplas facetas do homem e procurando trazê-lo para a actualidade, resgatá-lo para um tempo presente e procurando captar a vida pulsante e a paixão que animara o homem, já que José Alberto Quaresma é, também ele, poeta. Por isso, a biografia extravasa em muito o estadista, revelando o viajante fascinado que embarcou no navio Zeus, rumo à Argélia e de onde nunca regressou.

(…) Boémio, negociante, melómano, viajante, escritor, diplomata e Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, nascido em 1860, atravessou, como testemunha e protagonista, os grandes momentos da história portuguesa do início do século XX: o advento e a afirmação do regime republicano, a participação na I Guerra Mundial, a ascensão e queda do sidonismo, as intrincadas negociações do pós-guerra e a voragem política e social da I República.

Participou intensamente na vida pública e viveu intensamente a sua vida privada. Colecionou experiências, saberes, objetos, arte, amores, amizades e viagens, e tudo nos devolveu através de uma admirável produção literária — cartas, livros de ficção, ensaios e crónicas. Correspondeu-se e relacionou-se com as principais figuras do seu tempo, da literatura à filosofia, da política à arte. Amigos que preservou e que o admiraram mau grado o tempo e a distância». (contracapa do livro)

Por várias razões, a leitura desta biografia é imprescindível, sobretudo pelo carácter irrepreensível, paciente e (a)moroso da investigação que José Alberto Quaresma levou a cabo para reconstituir com fidelidade a vida e a obra de um homem, cuja ousadia e arrebatamento apaixonado pulsa intensamente na sua escrita.

Leia também a entrevista com Paulo Filipe Monteiro sobre o filme Zeus, na Caliban.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.