Presentes… diga “presente”…

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René Magritte — Year 1953 — Medium: Oil on canvas — Dimensions: 81 cm × 100 cm (31.9 in × 39.37 in) — Location: The Menil Collection, Houston, Texas

“O que existe, já existia; o que existirá, também já existiu. Deus faz voltar de novo aquilo que já passou.” (Eclesiastes, 3: 3)

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“Cada dia que passa vamos estando

mais perto do lugar

aonde ver coroa o repousado

modo de ser. Ou a atenção de estar

brandamente encanece pelo halo

de se ir a idade esclarecendo em paz.

E cada dia havermos coração

nos torna tão antigos

que, quando vemos, só

vemos aquilo

que em cada ser levanta a solidão

à sua irredutível paz de sítio.

E, de irmos vendo assim,

cada dia mais funda a transparência

a ver virá. Até que ver em si

de tal modo envelheça

que os animais jubilem no jardim

onde os nomeia a sua paz intensa.”

(Fernando Echevarría)

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Terça-feira — 26/03/2024

Não julgues que o teu presente ou que qualquer presente quando dito actual, enquanto vigente, é o presente mais presente de todos. O presente vigente não é mais presente que os presentes passados e os presentes futuros.

O presente salta à vista na sua evidência estabelecida e cega, e quase nos foge. Chega a fugir-nos, mesmo.

Há sempre uma tendência subconsciente a fugir ao presente, porque ele nos foge. Mas também porque temos inscrito em nós, ancestralmente, a percepção de que o presente desaparecerá com a morte. Assim, no subconsciente ou, mesmo, no inconsciente humano (ou “inconsciente colectivo”, Jung), digamos assim, há esse nosso movimento espontâneo de lhe escapar. Porque, mais uma vez, ele nos escapa. O presente escapa-se-nos. Não damos conta dele.

Mas, no fundo, ele é esse próprio movimento de escapatória que o constitui. Enquanto tal, enquanto presente que passa.

Não será a chamada aceleração, de que tanto se fala hoje — no dito presente — , uma corrida ou uma fuga perdida para o futuro?

O cansaço está lá, naquela lentidão subjacente ao indivíduo acelerado. Subjacente às multidões aceleradas. Para o desastre.

Sexta-feira — 29/03/2024

“Così per pensare il tempo, che da sempre ha messo a dura prova la mente dei filosofi, nulla è più utile che affidarsi — come fanno i poeti — a degli avverbi: «sempre», «mai», «già», «subito», «ancora» — e, forse — di tutti più misterioso — «mentre». «Mentre» (dal latino dum interim) non designa un tempo, ma un «frattempo», cioè una curiosa simultaneità fra due azioni o due tempi.”

“Portanto, para pensar no tempo, que sempre pôs à prova a mente dos filósofos, nada é mais útil do que confiar — como fazem os poetas — em advérbios: «sempre», «nunca», «já», «imediatamente», «ainda» — e, talvez — o mais misterioso de tudo — «enquanto». «Enquanto» (do latim dum interim) não designa um tempo, mas sim um «entretanto», ou seja, uma curiosa simultaneidade entre duas ações ou dois tempos.”

https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-mentre

Estamos sempre na condição de já não estarmos cá. Porque passa sempre já para os vindouros. E, com estes, o mesmo se passa. Mas, por outro lado, e paradoxalmente, é isto que constitui a nossa condição de estarmos cá.

É interessante que na estranha corrida da investigação das origens, quanto/quando mais se recua, mais se avança. E ao contrário.

Quinta-feira — 04/04/2024

“Suprimir o envelhecimento é imaginar a vida como presente dilatado”

Jonathan Crary

Crary refere um artigo na Time sobre a superação do envelhecimento pela Google:

“[…] na capa da revista Time, formulava-se […] a pergunta «Consegue a Google Resolver a Morte?». O artigo citava um grande executivo a proclamar que, partindo de todos os triunfos da Google, «conseguimos por fim enfrentar o envelhecimento» e será possível chegar a uma esperança de vida de quinhentos anos. É irrelevante se a Google alguma vez conseguirá pôr no mercado produtos para a longevidade. O que importa é a admissão explícita, por uma empresa mediática de enorme visibilidade, da financeirização neoliberal bem mais lata da vida biológica, pois a Google não passa de mais um actor na reconceptualização em curso da vida humana num modelo computacional para processamento de dados e acumulação de capital.

Suprimir o envelhecimento é imaginar a vida como presente dilatado, suspenso no tempo e resguardado da degradação e da mudança. Durante milhares de anos, tem sido a finitude da vida a dar sentido, entusiasmo e propósito à existência, e à maneira como amamos os outros e deles dependemos. Aviltar a finitude humana propondo que a longevidade individual se torne produto biotecnológico de grande procura pelas pessoas abastadas é parte da extinção de quaisquer valores ou crenças que transcendam a voragem do capitalismo.” (Terra Queimada)

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“Presente”, do latim praesens (de prae+sum): o que está à frente, o que é antes; ou, como disse um dia Carlos H. do Carmo Silva: “o que vem antes”…

Referências

Bíblia Pastoral, Tradução, Introduções e Notas: Ivo Storniolo — Euclides Martins Balancin.

ECHEVARRÍA, Fernando (2006). Obra Inacabada. Prefácio de Maria João Reynaud. Porto: Afrontamento.

CRARY, Jonathan (2023). Terra Queimada — Da era digital ao mundo pós-capitalista. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Antígona.

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