Poesia: partícula elementar e derradeira utopia
Hugo Pinto Santos
A Poesia como Arte Insurgente, originalmente publicado em 2007 (mas cuja composição se iniciou em finais da década de 1950), compõe-se de três núcleos: «A Poesia como Arte Insurgente», propriamente dito, «O Que É a Poesia?» e «Premonições». Este último, por seu turno, subdivide-se em outros três sectores: «Manifesto Populista # 1» (de 1976), «Manifesto Populista # 2» (de 1978) e «A Poesia Moderna É Prosa» (de 1978).
A tradução de «Poetry is all things born with wings that sing.» (p.60) por «A poesia é tudo o que nasceu com asas a cantar.» (p.61) [itálico meu] evitou o sintagma «que cantam», não só porque este implicava a repetição do pronome relativo «que», mas também porque a opção eleita abre mais a dicção e o fluir daquela sequência. Considerações que voltam a provar que o melhor tradutor de poesia é sempre o poeta (que é bom e lúcido tradutor). Neste caso, comprovadamente, assim é. A tradução de Inês Dias — que se põe ainda mais explicitamente à prova numa edição bilingue — encara o ímpeto poético e panfletário (no sentido enobrecedor do termo) do original com a segurança de um discurso de chegada imbuído de uma eminente energia poética.
Nos textos aqui reunidos, que se recusam a pousar em definitivo no aforismo, no poema, ou no manifesto, todo o discurso é utópico. Essa utopia consiste, fundamentalmente, em conceber o poético como suprema rebeldia, acção erguida e reerguida em permanente vigor, «primeira língua antes da escrita» (p.51). A poesia como figuração directa, implacavelmente próxima do pulsar das coisas. É toda a indignação do poeta que aqui reage contra um mundo estagnado e estéril. Dirigida contra consciências e corpos parados que esperam a morte — «A poesia não é uma ocupação sedentária, não é uma prática do género “sente-se, por favor”. Levanta-te e diz-lhes o que pensas.» (p.15) Qualquer um destes textos forma um clamor de rebelião que procura na poesia a expressão mais capaz da liberdade e da afirmação mais plena — «Os poemas são notícias sobre os confins mais distantes da consciência, vindos da sua fronteira em expansão.» (p.53) A honestidade e a completude habitam na poesia enquanto dizer mais rente a tudo quanto é, uma geminação do eu e do mundo — «Se queres ser um poeta, escreve jornais vivos.» (p.13). Existe aqui algo como uma sobrevivência do romantismo, se o entendermos na sua vertente de movimento em direcção a certa noção de verdade e genuinidade — «A poesia é a Grande Memória» (p.49) –; mas a integração num panorama «evolutivo» das dominantes estéticas nada interessa a esta noção da poesia: antes o baque impressivo, o golpe a interceptar o sangue — «Se um poema precisar de ser explanado, é uma falha de comunicação.» (p.29) E no entanto, o legado romântico não é exactamente encarado de forma linear. Se, em «Manifesto Populista # 2», Ferlinghetti surge num alinhamento quase perfeito em relação ao credo romântico — «O subjectivo deve reconquistar o mundo» (p.99) –, é capaz de contrariar claramente o postulado wordsworthiano da poesia como «emoção recordada em tranquilidade», defendendo «a emoção recordada com emoção» (p.67) (em «O Que É a Poesia»). O que talvez nos pudesse fazer pensar numa espécie de super-romantismo. No sentido em que, como é óbvio a quem leia uma linha que seja do autor, tudo lhe interessará mais do que a escavação em busca de achados histórico-literários. É a centelha da liberdade, a busca incansável pela expressão desagrilhoada, o que realmente lhe importa. A poesia não é um clube exclusivista, mas o lugar onde se timbra a exigência temível do excesso que há em exprimir até ao fundo o sorvo humano. A poesia seria, segundo Ferlinghetti, a arte de dizer, de forma extravasada, poderosamente expansiva, a superação dos constrangimentos que o ser «civilizado» foi aplicando, em sucessivas e crescentes camadas, sobre o que é naturalmente caótico e vibra (e ao caos deve regressar?).
A acção poético-reflexiva de Ferlinghetti apenas a muito custo encontraria paralelos, quer na história cultural — Baudelaire e, talvez, Blake, Poe, uns quantos mais, eventualmente Coleridge –, quer nas práticas suas contemporâneas. Mesmo, em tempos não muito recuados, Pound parece merecer-lhe certas reservas, pondo, Ferlinghetti, por exemplo, em causa o cantabile de Os Cantos. Em «A Poesia Moderna É Prosa», que encerra A Poesia como Arte Insurgente, Ferlinghetti «acusa» a poesia moderna de ser «prosa poética». Marcando para a poesia uma posição de autonomia e emancipação discursivas, refere-se de modo escarninho a «esta estranha época que permitiu à poesia adoptar um ritmo de prosa e continuar a ser considerada poesia» (p.109). E nem mesmo um monstro sagrado da modernidade (ou sobretudo um monstro sagrado da modernidade) como Eliot escapa à sua irreverência. Como quando, a propósito dos Quartos Quartetos, escreve «que não [os] podemos tocar em nenhum instrumento e, no entanto, são a mais bela prosa do nosso tempo» (p.111) [itálico meu]. Lawrence Ferlinghetti não chega, exactamente a fornecer alegações muito específicas no âmbito desta sua acusação. Há que procurar em todo o livro as rubricas disseminadas da sua apologia de uma «poesia “poética”». São, como é óbvio, múltiplas as fórmulas propostas por Ferlinghetti. Uma entre tantas possibilidades postula: «Um poema deveria ascender ao êxtase, algures entre a fala e o canto.» (p.59)
A Poesia como Arte Insurgente,
Lawrence Ferlinghetti
Relógio D’Água
2017
Tradução de Inês Dias