Poesia é nostalgia do que não serei — para Nuno Júdice

Luís de Barreiros Tavares
Revista Caliban issn_0000311
3 min readMar 21, 2024

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“Atlântico” — © L. B. T. — 2023

Manoel Tavares Rodrigues-Leal

À memória de Nuno Júdice

“O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.” Nuno Júdice

“Como é possível que esta forma a que chamam poesia nasça das palavras?” Nuno Júdice

No Dia Mundial da Poesia (21/03/2024), dedico esta publicação à memória de Nuno Júdice, que me autorizou, circunspecto, a filmagem da sua conferência no Colóquio Eduardo Prado Coelho, na Fundação Calouste Gulbenkian (Novembro de 2012 — vídeo em baixo).

Seguem-se cinco poemas inéditos de Manoel T. R.-Leal, de 1976. Neles se alude ao poeta, ao poema e à poesia. O título deste artigo é o primeiro hemistíquio do último verso do terceiro poema: “Poesia é nostalgia do que não serei, angústia glacial, talvez de alma.”

I

Ah, as algas de um poeta

na finita praia periférica.

Consequente marinha

da abrupta vida que não foi minha…

Fortuita razão, talvez, no mapa,

questão eloquente e lírica.

Ah, a erosão dos espelhos é óbvia e adolescente…

Que digo, que ébrio escrevo. Bosque apaixonado,

boca que és. Acontece o que, imprevisto, me ensina dardo adiado.

Lx. 6–6–76 — caderno O Umbigo da Beleza

II

O ósculo queima, quando resvala

no lírico quarto e é poema.

Ou talvez seja mero esquema

do que foi ensejo aspirando ao pólen da flor.

Mestre, me dói singela dor,

ela talvez. As fontes alimentam o que singra, se cala.

Lx. 7–6–76 — caderno O Umbigo da Beleza

III

Comidos os queques, bebida a bica.

Consumo manhã, coisas vãs. Acorda-

me um cisne ou uma rosa banal de Lisboa.

Depois, perco-me: desejo corpos de sábado.

Uma rapariga resvala num vale de lume, e é linda e, como se diz, boa.

Há coisas que não compreendo e usurpam possível lírica

de loucura. O que vives, me perguntas, o que mordes na cama, perdoa….

Poesia é nostalgia do que não serei, angústia glacial, talvez de alma.

Lx. 19–6–76 — caderno Apresentação de Paula

IV

Lavro palavras, terra isenta urdida de rigor

poeta trabalha, seu palco é o real rigoroso, se escreve amor lavra

jamais o abandono, só harpas terrestres, verticais palavras,

quando inauguras o mundo, poeta, de suor e suor, na vida tua vida gravas.

Lx. 14–11–76 — caderno Fragmentos

V

Meu maior lume gelado és tu navegando

no rigor das tardes, quando…. te perdes, perfeita.

Cada seio uma maçã. Aspirando à carícia de uma manhã

lendária ou casta. Que já não me lembro do prazer

da tua concha concisa. A poesia de um Verão despojado.

Sento-me no desejo: há um perfil de praia perdida.

Finjo que me amas, amando como um barco. Porém, teu gesto despovoado

sabe-me a um universo de saliva. Bêbedo de mim-mesmo, nos jogos da maresia, não sou teu amado.

Lx. 31–5–76 — caderno O Umbigo da Beleza

Manuscrito do poema III — 1ª versão, à direita em cima.

“Para escrever o poema”, por Nuno Júdice. Leitura áudio do autor:

“Das Gedicht will zu einem Andern, es braucht dieses Andere, es braucht ein Gegenüber. Es sucht es auf, es spricht sich ihm zu.” [“O poema quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro, de um interlocutor. Procura-o e oferece-se-lhe.”] Paul Celan, Der Meridian [Agradeço a João Barrento o envio por e-mail da sua tradução deste passo]

“A poesia é o trabalho da palavra” anónimo

M. T. R.-Leal — © L. B. T. — c 2012 — Frequentou um dos cafés de Nuno Júdice, Eduardo Prado Coelho, entre outros: “Granfina”.

CELAN, Paul (2002). Le Méridien & Autres Proses. Éd. Bilingue. Trad. de l’Allemand et annoté par Jean Launay. Paris: Seuil.

CELAN, Paul (2022). Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Trad. João Barrento. Lisboa: Relógio D’Água.

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