Poemas de Mariana Ianelli
ALMÁDENA
“Vive assim como quisera ter vivido quando morras.”
António Vieira
Almádena, ensina-me a voltar.
Já varri todos os mortos,
Não há restos no chão.
Um quarto branco, uma cadeira,
O meu tempo é o presente,
Não tenho do que me queixar.
Está feito, celebrado.
Janelas e portas abertas,
Na mesa a fruta matutina,
O lírio, o copo d’água.
Uma casa agradável,
Fosse isto uma casa.
Eu me traí, Almádena.
Agora chove,
É uma tal plenitude,
Império absolvido de história.
Quanta memória vencendo,
Cobrindo, cavando o rosto,
Quantos dias, quanto cinzel,
Quantas horas.
Está chovendo ainda.
Eu tenho um rosto sem marcas.
A lua do amarelo ao sono
E essa estátua que me olha.
Uma obra merecida, consumada.
Eu desapareci, Almádena.
Nada cumpre dizer
Tanto quanto dizem esses olhos.
Eu vivo como quem ama,
Eu consinto,
É só o que me cabe.
Dar e repartir, fazer que não sei,
No bronze ser o animal que dorme.
Há uma única lâmpada,
Há um violino
E a mão que o desata.
O vento de quando em quando,
O terço quadrante e a pedra rolada.
Há uma chave que nada guarda.
A terra esplandece,
Consorte de quem parte.
Agora amanhece.
Eu me perdi, Almádena.
Não há rumor nas coisas,
Elas são o que são,
Não desejam explicar-se.
A porcelana, a cambraia, a murta
E a falta de uma asa.
Aqui não existe o medo,
Eu planto e eu desbasto.
As paredes ardem,
A erva recende,
O sol vem do leste,
Tudo em perfeita ordem.
Está pronto, terminado.
Um rasgo, um passo em falso,
Uma sombra,
Agora é tarde.
As cartas não chegam
Nem são enviadas.
A mesa está limpa.
Eu me esqueci, Almádena.
As cores, como elas vibram,
As auroras.
O verde das baixas altitudes,
O vermelho, o azul,
Como entornam.
Eu desço e me arrebento,
Eu despenco, sou forte.
A natureza é forte.
Quatro pilares me suportam.
O céu sobre todas as torres,
Todas as luzes, exceto uma.
As nuvens se cruzam,
Juntam-se e se afastam.
Há uma brisa lá fora.
O corpo está servido,
O corpo está saciado.
Agora anoitece.
Protege-me, Almádena.
Almádena, ed. Iluminuras, 2007
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FLOR DO OFÍCIO
Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei
Do desperdício.
Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.
Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia –
E eu não te esperaria?
Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010
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EXTENSÃO DO MITO
Contam que ele desceu
Ao vale dos esquecidos
E cantou acima do suplício.
Que apaziguou o vento,
Estufou as vinhas,
De olhos fechados
Seduziu a serpente
Como se replantasse
O primeiro jardim.
Que foi odiado, despedaçado,
Lançado ao mar,
Para nunca mais
Uma voz se atrever à harmonia.
Mas não contam que uma mulher
Reuniu seus fragmentos
E encantou as mulheres da ilha,
Que assim Orfeu amou Eurídice,
Finalmente em corpo e lira.
Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010
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DESCENDÊNCIA
Sou o poema tresmalhado
Que um lobo traz à boca
Como prêmio
De um passeio ao campo.
Vive em mim
O irmão mais velho
Debruçado sobre o chão
Cavando, cavando com as unhas.
Aqui uma cidade se levanta,
Força e música,
Já a prostituta distribui
Os seus encantos.
Uma primeira espada
Deslizando
E há o deserto em mim,
Que seca todo pranto.
Morre aqui eternamente
O ladrão do fogo,
Morre Abel, a cada verso
A terra faz ouvir seu sangue.
O animal que há milênios
Me carrega
Tem a marca
Da educação pela sombra.
Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010
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NOITE ESCURA
Vou me deitar contigo
E fingir que não sei
Do teu olho amarelo
Engastado na treva.
Há muito tempo não chove,
Desconverso –
Em mim guardado o mistério
De amar sem ver –
Há muito que não chove
No jardim dos mortos,
Quisera dizer.
Que na aspereza da sede
O teu rosto encobre
O rosto de todos
Que já se renderam
À tua lírica estrela.
É gozo e merecimento
O rebento nascido no deserto.
– Ó pai, semeia.
Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010
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OS PATRIARCAS
Nós que enlouquecemos de orgulho
Produzindo ferro e fazendo música,
Com que despeito vertemos nosso nojo,
Nosso uivo, nossa dor de criatura
E o que dizer do prazer subterrâneo
De atravessar desertos farejando sangue,
Qualquer coisa que se mova e resplandeça,
Uma infância para extirpar do mundo
E quanto ainda pode valer nossa aliança
Com o demônio do sarcasmo, essa jura
De um dia pousar sobre a nossa cara
O hálito quente do destino feito um lobo
Uma cicatriz feito um brasão de família,
Todos marcados, condecorados pelo crime,
Tantos filhos, tanta fúria depois
De termos gerado em nós os assassinos.
O amor e depois, ed. Iluminuras, 2012
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CARTA DE CHANKAY
A partir de uma carta sem data de meu avô
Sobre as ruínas de Puruchuco, no Peru
Esse pouco roubado de uma urna
É quanto basta — esse pouco
Depurado de tragédia,
Um restante de partes desencontradas
Que produzem a saudade
Feito um cacho de uvas negras –
Fragmentos revolvidos, misturados
Ao prazer de ver nascer uma verdade,
A verdade de uma carta
Que escamoteia um século
E fantasticamente fala do presente
Como numa profecia desvendada.
Fala a carta de uma viagem a Chankay,
De um todo de areia e céu e, ao longe, o mar,
Fala de uma travessia no deserto
E do vaso de um túmulo violado
Por cujas fendas o vento silva num lamento
E nesse lamento um encanto mais potente
Do que a mágoa.
Arrepanhamos esses cacos magníficos,
Sem mais semelhança com o que morre,
Arrepanhamos de galerias profundíssimas
Um tempo já sem tempo de vaidades
E o sabor de roubar essa relíquia –
A saudade feito um cacho de uvas negras –
Nos ensina a gostar da nossa história.
O amor e depois ed. Iluminuras, 2012
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POTSDAMER PLATZ
“Não desisto enquanto não encontrar a Potsdamer Platz.”
(Asas do Desejo — Wim Wenders, 1987)
Novamente o mundo e tantos mundos,
Mais que um fundo de pântano e ruína,
A mandala dos anjos de Hildegard von Bingen
Sobre uma praça onde as distrações
Podem ser procuradas e conseguidas –
Aqui onde os caminhos se destrinçam,
Um mundo e a claridade do desejo
De alguém que muito longe e muito antes,
Recalcitrante entre os restos de uma guerra,
Tentado a desistir, não desistiu.
O amor e depois, ed. Iluminuras, 2012
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ANTÓNIO SALVADO, SUA PRESENÇA
“aunque nunca mis redes pescarán
la oculta pedrería
de tristeza inconsciente que reluce
al fondo de mi vida”.
Federico García Lorca
A noite é de água amarga nas valas,
Mas o mato grita mais alto,
Vem de longe o cheiro da fêmea,
Um loureiro busca o céu.
É como dizer: aqui houve um mundo
E ainda tudo se agita e pranteia,
Rumoreja de prazer, são louvores.
Se velho é o que já não nos acontece,
Não envelhece este amor, este cão
Com olhos de ocultas pedrarias
E ossos de calhandra.
Todos querem ver o corpo,
Com os olhos das palavras querem
Atestá-lo morto, mas apenas sobe
Um canto rouco, opaco, fingindo luto,
Palavras que não passam de palavras.
O cão que te povoa e me povoa
Na noite se regozija com a lua e fulgura.
É um canto que não se habitua a morrer.
Tempo de voltar, ed. ardotempo, 2016
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PARA UMA NOITE FRIA
Senhor
Senhor das horas
E do instante
Senhor das eras
Sempiterno medo
Do rosto no escuro
Senhor
Das novidades passadas
E futuras
Dos supostos acasos
Dos dez por cento improváveis
Senhor
Dos suores noturnos
Do grande silêncio
Dos espelhos
Nas águas súcubas
E nas que rugem
Que roem
Enormes estruturas
Senhor
Senhor
Dos jasmineiros
E do frio puro
Dos pequenos silêncios
Senhor
Do pêndulo mudo –
Tempo de voltar, ed. ardotempo, 2016
Leia a entrevista de Mariana Ianelli aqui.