Pintura de Arcângelo Ianelli, avô de Mariana Ianelli

Poemas de Mariana Ianelli

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
6 min readSep 21, 2016

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Fotografia de Petronio Cinque

ALMÁDENA

“Vive assim como quisera ter vivido quando morras.”

António Vieira

Almádena, ensina-me a voltar.

Já varri todos os mortos,

Não há restos no chão.

Um quarto branco, uma cadeira,

O meu tempo é o presente,

Não tenho do que me queixar.

Está feito, celebrado.

Janelas e portas abertas,

Na mesa a fruta matutina,

O lírio, o copo d’água.

Uma casa agradável,

Fosse isto uma casa.

Eu me traí, Almádena.

Agora chove,

É uma tal plenitude,

Império absolvido de história.

Quanta memória vencendo,

Cobrindo, cavando o rosto,

Quantos dias, quanto cinzel,

Quantas horas.

Está chovendo ainda.

Eu tenho um rosto sem marcas.

A lua do amarelo ao sono

E essa estátua que me olha.

Uma obra merecida, consumada.

Eu desapareci, Almádena.

Nada cumpre dizer

Tanto quanto dizem esses olhos.

Eu vivo como quem ama,

Eu consinto,

É só o que me cabe.

Dar e repartir, fazer que não sei,

No bronze ser o animal que dorme.

Há uma única lâmpada,

Há um violino

E a mão que o desata.

O vento de quando em quando,

O terço quadrante e a pedra rolada.

Há uma chave que nada guarda.

A terra esplandece,

Consorte de quem parte.

Agora amanhece.

Eu me perdi, Almádena.

Não há rumor nas coisas,

Elas são o que são,

Não desejam explicar-se.

A porcelana, a cambraia, a murta

E a falta de uma asa.

Aqui não existe o medo,

Eu planto e eu desbasto.

As paredes ardem,

A erva recende,

O sol vem do leste,

Tudo em perfeita ordem.

Está pronto, terminado.

Um rasgo, um passo em falso,

Uma sombra,

Agora é tarde.

As cartas não chegam

Nem são enviadas.

A mesa está limpa.

Eu me esqueci, Almádena.

As cores, como elas vibram,

As auroras.

O verde das baixas altitudes,

O vermelho, o azul,

Como entornam.

Eu desço e me arrebento,

Eu despenco, sou forte.

A natureza é forte.

Quatro pilares me suportam.

O céu sobre todas as torres,

Todas as luzes, exceto uma.

As nuvens se cruzam,

Juntam-se e se afastam.

Há uma brisa lá fora.

O corpo está servido,

O corpo está saciado.

Agora anoitece.

Protege-me, Almádena.

Almádena, ed. Iluminuras, 2007

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FLOR DO OFÍCIO

Emboscada no silêncio

Eu preparo a rosa inútil

Com as horas que salvei

Do desperdício.

Feito um verme

Decompondo ceticismo

Em força indômita,

Preparo e deito essa flor

No teu caminho

Para quando o teu corpo

(Tão quebrantável quanto o meu)

For sozinho pastorear

Seus demônios no vazio.

Quase dois mil anos

Guardado no deserto

Um salmo esperou

Para recobrar sua melodia –

E eu não te esperaria?

Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010

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EXTENSÃO DO MITO

Contam que ele desceu

Ao vale dos esquecidos

E cantou acima do suplício.

Que apaziguou o vento,

Estufou as vinhas,

De olhos fechados

Seduziu a serpente

Como se replantasse

O primeiro jardim.

Que foi odiado, despedaçado,

Lançado ao mar,

Para nunca mais

Uma voz se atrever à harmonia.

Mas não contam que uma mulher

Reuniu seus fragmentos

E encantou as mulheres da ilha,

Que assim Orfeu amou Eurídice,

Finalmente em corpo e lira.

Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010

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DESCENDÊNCIA

Sou o poema tresmalhado

Que um lobo traz à boca

Como prêmio

De um passeio ao campo.

Vive em mim

O irmão mais velho

Debruçado sobre o chão

Cavando, cavando com as unhas.

Aqui uma cidade se levanta,

Força e música,

Já a prostituta distribui

Os seus encantos.

Uma primeira espada

Deslizando

E há o deserto em mim,

Que seca todo pranto.

Morre aqui eternamente

O ladrão do fogo,

Morre Abel, a cada verso

A terra faz ouvir seu sangue.

O animal que há milênios

Me carrega

Tem a marca

Da educação pela sombra.

Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010

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NOITE ESCURA

Vou me deitar contigo

E fingir que não sei

Do teu olho amarelo

Engastado na treva.

Há muito tempo não chove,

Desconverso –

Em mim guardado o mistério

De amar sem ver –

Há muito que não chove

No jardim dos mortos,

Quisera dizer.

Que na aspereza da sede

O teu rosto encobre

O rosto de todos

Que já se renderam

À tua lírica estrela.

É gozo e merecimento

O rebento nascido no deserto.

– Ó pai, semeia.

Treva alvorada, ed. Iluminuras, 2010

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OS PATRIARCAS

Nós que enlouquecemos de orgulho

Produzindo ferro e fazendo música,

Com que despeito vertemos nosso nojo,

Nosso uivo, nossa dor de criatura

E o que dizer do prazer subterrâneo

De atravessar desertos farejando sangue,

Qualquer coisa que se mova e resplandeça,

Uma infância para extirpar do mundo

E quanto ainda pode valer nossa aliança

Com o demônio do sarcasmo, essa jura

De um dia pousar sobre a nossa cara

O hálito quente do destino feito um lobo

Uma cicatriz feito um brasão de família,

Todos marcados, condecorados pelo crime,

Tantos filhos, tanta fúria depois

De termos gerado em nós os assassinos.

O amor e depois, ed. Iluminuras, 2012

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CARTA DE CHANKAY

A partir de uma carta sem data de meu avô

Sobre as ruínas de Puruchuco, no Peru

Esse pouco roubado de uma urna

É quanto basta — esse pouco

Depurado de tragédia,

Um restante de partes desencontradas

Que produzem a saudade

Feito um cacho de uvas negras –

Fragmentos revolvidos, misturados

Ao prazer de ver nascer uma verdade,

A verdade de uma carta

Que escamoteia um século

E fantasticamente fala do presente

Como numa profecia desvendada.

Fala a carta de uma viagem a Chankay,

De um todo de areia e céu e, ao longe, o mar,

Fala de uma travessia no deserto

E do vaso de um túmulo violado

Por cujas fendas o vento silva num lamento

E nesse lamento um encanto mais potente

Do que a mágoa.

Arrepanhamos esses cacos magníficos,

Sem mais semelhança com o que morre,

Arrepanhamos de galerias profundíssimas

Um tempo já sem tempo de vaidades

E o sabor de roubar essa relíquia –

A saudade feito um cacho de uvas negras –

Nos ensina a gostar da nossa história.

O amor e depois ed. Iluminuras, 2012

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POTSDAMER PLATZ

“Não desisto enquanto não encontrar a Potsdamer Platz.”
(Asas do Desejo — Wim Wenders, 1987)

Novamente o mundo e tantos mundos,
Mais que um fundo de pântano e ruína,
A mandala dos anjos de Hildegard von Bingen
Sobre uma praça onde as distrações
Podem ser procuradas e conseguidas –

Aqui onde os caminhos se destrinçam,
Um mundo e a claridade do desejo
De alguém que muito longe e muito antes,
Recalcitrante entre os restos de uma guerra,
Tentado a desistir, não desistiu.

O amor e depois, ed. Iluminuras, 2012

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ANTÓNIO SALVADO, SUA PRESENÇA

“aunque nunca mis redes pescarán

la oculta pedrería

de tristeza inconsciente que reluce

al fondo de mi vida”.

Federico García Lorca

A noite é de água amarga nas valas,

Mas o mato grita mais alto,

Vem de longe o cheiro da fêmea,

Um loureiro busca o céu.

É como dizer: aqui houve um mundo

E ainda tudo se agita e pranteia,

Rumoreja de prazer, são louvores.

Se velho é o que já não nos acontece,

Não envelhece este amor, este cão

Com olhos de ocultas pedrarias

E ossos de calhandra.

Todos querem ver o corpo,

Com os olhos das palavras querem

Atestá-lo morto, mas apenas sobe

Um canto rouco, opaco, fingindo luto,

Palavras que não passam de palavras.

O cão que te povoa e me povoa

Na noite se regozija com a lua e fulgura.

É um canto que não se habitua a morrer.

Tempo de voltar, ed. ardotempo, 2016

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PARA UMA NOITE FRIA

Senhor

Senhor das horas

E do instante

Senhor das eras

Sempiterno medo

Do rosto no escuro

Senhor

Das novidades passadas

E futuras

Dos supostos acasos

Dos dez por cento improváveis

Senhor

Dos suores noturnos

Do grande silêncio

Dos espelhos

Nas águas súcubas

E nas que rugem

Que roem

Enormes estruturas

Senhor

Senhor

Dos jasmineiros

E do frio puro

Dos pequenos silêncios

Senhor

Do pêndulo mudo –

Tempo de voltar, ed. ardotempo, 2016

Leia a entrevista de Mariana Ianelli aqui.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.