Pequeno retrato do tempo
Por Ruy Espinheira Filho e Salgado Maranhão
REFLEXÕES E LIRISMO
Se me perguntarem o que encontrei em Na pata do cavalo há sete abismos, responderei: reflexões e lirismo. Porque são as riquezas principais deste livro de Clarissa Macedo, vencedor do Prêmio Nacional de Poesia da Academia de Letras da Bahia de 2013.
Estamos, assim, diante de poeta de uma arte muito próxima da filosofia que medita sobre o mundo e a vida. E o que é ainda mais importante: a força da reflexão jamais compromete a leveza do estilo, o que os versos principalmente buscam (e encontram): a poesia.
Não conheço obras anteriores da autora, não sei se este é o seu primeiro livro — mas, sendo ela jovem, posso afirmar que já no início de sua vida literária mostra um grau de amadurecimento pouco comum. Se não explora meios diversos da expressão poética (canções, sonetos, baladas, versos livres de cadências mais abertas etc.), sabe manter bem firmes seus ritmos escolhidos.
Algumas composições se destacam mais pelas reflexões — como “Exercício”, “Poente” e “Escrituras”, por exemplo, enquanto outros nos atingem com a força que só o lirismo tem, como “Oásis”:
O deserto é uma janela aberta:
o que escapa de seus camelos,
forjados n’água de vapor e sal,
é o calcanhar de todos os desejos.
Nas areias feitas de mistério
conta-se de terras que jamais fui.
Lá, os fantasmas de meu rio seco.
Não há dúvida: quem escreve coisas com tamanha sensibilidade pode, mesmo, ser chamado de poeta. No panorama da atual poesia brasileira, é uma bela notícia. Porque nada tem Clarissa Moreira de Macedo desses tantos que vivem jogando no papel linhas que mais parecem flores murchas, murchíssima flores nascidas da falta de técnica e de inspiração. O que ela faz é pensado e sentido, sem qualquer diluição ou superficialidade. Enfim, poeta a que devemos ficar muito atentos e que certamente nos brindará com obras ainda mais enriquecedoras da poesia nacional.
Ruy Espinheira Filho
*
Desde a primeira vez que conheci seus versos, não tive dúvidas de estar diante de um talento genuíno: a poesia não é para quem a procura, mas para quem ela escolhe. E Clarissa Macedo é uma nobre escolhida dessa Deusa caprichosa. Seus poemas são rascantes, mas não amargos: brotam flores das rasuras. E não espere aqui, o leitor, uma poética ancorada em questões de gênero, porque ela universaliza seus conflitos. Trata-se de uma escrita que nos instiga e inquieta, como se as palavras tivessem farpas. O prêmio que a Academia de Letras da Bahia merecidamente concede a esta obra, é apenas uma sirene de alarme aos leitores, para essa jovem poeta baiana, que chega para fazer história entre as mais brilhantes de sua geração.
Salgado Maranhão
*
Pequeno retrato do tempo
.
Comovido, o seio levanta
ao sinal do primeiro cio.
Distante, aquela senhora sonha
a primavera cardíaca da rua;
a moça que compreende trapos
cogita a possibilidade de um
poema
e a tarde cede ao crepúsculo
sem novidade, sem ruído.
De cabelo sujo, o rapaz
engorda e se pesa na farmácia,
se pensa no peso do mundo –
os vitrais pincelam mais uma
multidão.
As cápsulas daquele antídoto
estão vazias
e as estrelas seguem calmas
céu abaixo,
desenhando uma nova solidão.
(Esparso)
*
Poente
.
O oeste do meu poema
está cansado.
Deseja navegar sem bússola
como a manhã triste,
triste como o voo dos pássaros.
Persigo o oeste do meu poema,
que permanece inalterado.
O oeste não é um lugar triste,
é só a ilusão de que mais
um caminho terminou.
*
Lavra
.
Hoje pode haver a hora
em que o espaço segue
o broto da última semente.
Lavra estéril,
emudece a muda não plantada.
Geógrafo do sêmen
e das palavras, percebe
caminhos e trevas
levando o mito
ao cerne do nada.
*
(Poemas de Na pata do cavalo há sete abismos, de Clarissa Macedo)