O poeta José Emílio-Nelson

Para Além do Belo e do Feio

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
13 min readSep 21, 2016

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Fernando de Castro Branco

José Emílio-Nelson tem vindo a levantar, de forma segura, um edifício estético e poético de rara individualidade e heterodoxa originalidade, que o impõe decisivamente como uma das vozes cimeiras da poesia portuguesa dos três últimos decénios. Após A Alegria do Mal (Obra Poética I), que coligiu um quarto século de poesia e cerca de duas dezenas de livros, e Ameaçado Vivendo (Obra Poética II), que reúne os posteriores quatro livros publicados, entre 2005 e 2009, eis Beleza Tocada (Obra Poética III), que recolhe toda a obra anterior mais os três últimos livros do autor, escritos entre 2010 e 2015, num total de cerca de vinte e sete títulos em aproximadamente trinta e seis anos de trabalho literário. Se ao título da primeira recolha (A Alegria do Mal) presidiu a ordem retórica do oxímoro — que, antiteticamente, concilia ou funde em si elementos semânticos incompatíveis na ordem lógica, desencadeando assim, dialecticamente, possibilidades expressivas infindas –, o segundo volume (Ameaçado Vivendo) abria sob o signo da metalepse, figura da ordem da metonímia que, explorando as relações lógicas de contiguidade semântica, designa o antecedente pelo consequente, a causa pela consequência, ou vice-versa. A ideia dessa recolha poética, na inversa da primeira, parecia não tanto estabelecer oposições vincadas, mas empreender uma continuidade entre elementos próximos; iterativa fluidez entre a condição da vida enquanto ameaça latente e a própria ameaça enquanto impulso vital, pulsional e estético. As consequências a retirar dessa opção retórica, que dava nome e rosto a esse livro, são múltiplas e de largo espectro expressivo, mas, conhecendo a poesia e a poética de José Emílio-Nelson, não será abusivo surpreender aí a própria relação ontológica entre espírito e carne, alma e corpo, que identifica e define o humano após o choque provocado pela modernidade. Relação a partir daí tornada volátil, incerta, isenta de fronteiras estanques. Não obstante, já Camões usava abundantemente essa figura de retórica, nomeadamente n’ Os Lusíadas. Também em Sonetos Glaucos (integrantes de Ameaçado Vivendo), a classicidade da forma imbrica-se indissoluvelmente com as temáticas, a arquitectura retórica e a linguagem, vertentes de cariz fundamentalmente neo-barroco, dando corpo a uma poética de tonalidades pós-modernas, que faz eco e dialoga, nesses poemas, com figuras marcantes da literatura portuguesa num hipertexto cuja marca mais nítida é a do satírico e do derrisório, em linha com toda a obra, de resto.

Estamos agora perante Beleza Tocada (esta monumental Obra Poética III) que surge sob a égide da alegoria tendencialmente de ordem estética e, pour cause, estésica e sensível. O sentido do tacto conduzido pela visão, sentido ordenador, na interiorização da Beleza enquanto movimento do corpo sobre os corpos, mas também acção do tempo sobre o homem e as coisas, assim as decompondo em sua entropia e perecibilidade. Acentua pois, implicitamente, essa imanência da Beleza Tocada pelo “Decorrer do tempo”, que a “ofende” [1], por contraposição a uma temporalidade mais larga e de contornos esbatidos incrustada numa “mão que desaparece e aparece por dentro de nós”[2], ou, na interrogativa, “é mão ainda a que desce sobre os versos?”, “a que se mortifica muda e confusa e nos consome?”[3], ou nessa imanência transcendental de raiz espinoziana de “um céu rente ao chão”[4]. Estamos ante um poeta em quase todos os momentos radical (seja na forma como essa poética agride o bom-gosto do leitor, seja na forma como mergulha nas raízes do humano) e por isso, em verdade, é nele “a língua, beleza tocada”, porque matéria tendencialmente durável, mas ainda e sempre perecível, em sistemática transformação, recomposição e decomposição. Traz esta recolha ainda até nós, como se disse, três livros novos, em simultâneo continuadores e inovadores da sua poética identitária. São eles: Pesa um Boi na minha Língua, Bacchanália seguido de como Falsa Porta e Amor Repugnante (livro inédito aqui integrado).

Esta compilação assume-se também como um momento autotélico, de auto — reflexividade sobre toda a obra anterior. Nesse sentido, o poeta empreende sobre ela um minucioso e rigoroso labor, que passa por eliminação, cortes, ajustes; em poemas, versos, estrofes, que ele considera imperfeitos, redundantes ou superados pela obra posterior. Qual tesoura sobre os ramos dissonantes que perturbassem a harmonia global da sua árvore estética.

Com a queda do império do Belo no mundo do gosto, por efeito da turbulência barroca e das heterodoxias dos movimentos modernos, que abalaram decisivamente os imemoriais pilares fundados por Platão e seus continuadores, eis-nos perante a irradiação, a desaparição e o descentramento de múltiplos centros, que desconstruíram, na Arte, a trilogia essencialista do Belo, do Bem e da Verdade, para dar lugar a uma representação artística do mundo e do homem assente numa outra força centrípeta, libidinal, habitando na imanência dos seres. Essa situação é lapidarmente expressa no conceito de “representação bela”, ainda que do não belo, enunciado por Kant na Terceira Crítica, colocando assim em crise a tradição mimética da arte para dar lugar a um princípio representativo de ordem demiúrgica e imaginística.

Daqui deriva a genealogia estética do nosso autor. A posição de Emílio-Nelson enquanto poeta assenta fundamentalmente, embora o possa não parecer, numa plataforma ética de raiz estóica, que pairando sobre os básicos e comuns conceitos de ordem moral, civilizacional, comportamental e social, abre pelas veredas obscuras da ontogénese humana os indícios e sinais que lhe permitam mapear essa conjunção indiscernível de corpo e espírito que identificam o homem. A verdade primeira que dá a esta poesia uma inquestionável autenticidade, um nítido realismo, é a concepção de um ser corporal e carnal que no tempo se dissolve ou por este é irreversivelmente dissolvido. Há uma estranha, e de tão viva quase tocável, grandeza num criador que nunca cede aos efeitos dóceis e imediatos do gosto fácil, abrangente ou politicamente correcto, assim sacrificando os aplausos de um público leitor mais vasto, a que a sua exímia técnica poética de verdadeiro fabro facilmente acederia se o desejasse. Aliás, se observarmos bem, podemos descobrir inúmeros poemas que incorporam outras categorias estéticas digamos mais nobres, e que provam que, se essa fosse a sua vontade, o autor poderia trilhar outros caminhos certamente mais cómodos ou menos pedregosos.

O poeta fala de um ser para a morte, que começa a morrer no preciso momento em que nasce; e sabe que pelo corpo, pelos órgãos sensíveis, passam os instrumentos da vida e da morte, e que, vital e ontologicamente, vida e morte assentam numa totalidade que está para além do belo ou do feio, do agradável ou do desagradável, do bom ou do mau gosto, porque os supera na ordem última e plena do ser existencial. Humanos como “cadáveres sonámbulos”, “animais que se dobram para dentro”[5], são elementos figurativos dessa extraordinária máquina pinturesca que traça a intensas pinceladas a verdadeira natureza da condição humana. E se a beleza, a começar pela humana, poisa suave e labilmente à superfície da pele, enquanto decisiva marca distintiva e identificadora, como nos revela Hannah Arendt, uma estranha e irremediável semelhança e indistinção labora nos interiores dos corpos, como nos labirintos das almas, sem que nenhuma categoria de ordem estética ou moral aí, nesses lugares formadores e radicais, adquira rosto ou figuração.

Se seguirmos a lição de Merleau-Ponty, verificamos que também aqui o corpo se assume como o encenador da percepção, ou do agente perceptivo, ou ainda o lugar fundador sem o qual a nenhuma mente é dado perceber. Tenhamos em conta que sob a aparência da exuberância das formas, das metamorfoses por que passam as aparências, o que aqui lateja é a inexorável riqueza das imanências, das essências, da invisibilidade, uma escatológica fenomenologia do ser enquanto completude material e espiritual. Há a aguda consciência de que é o corpo encarnado que faz a ponte entre o ser e o mundo, mundo e corpo cuja realidade nada tem que ver com os véus puros e diáfanos de uma tradição etérea que cuidadosamente escondia numa discreta “caixa” essas supérfluas materialidades corpóreas, para continuarmos dentro de uma terminologia cara a Merleau-Ponty.

Esta é por conseguinte uma poesia que levanta os véus diáfanos da quotidiana encenação humana. Avesso ao sentimentalismo, que não aos sentimentos enquanto habitantes vitalícios do seu vasto império dos sentidos, também o autor de Biblioteca Escatológica permanece distante da tradição hermética de uma poesia enquanto máquina intelectual ou metafísica, veículo de eventual acesso a zonas do transcendente, do inefável do ideal, do contemplativo[6]. O poeta age “sob o céu”, “sob o céu de águas sem caudal” [7], e nesse lugar terreno impera o efémero, o passageiro, o que se degrada, embora, na lição de Baudelaire, intentando, qual Sísifo, a plena eternização do instante vital: jubiloso ou escabroso. A luz que persegue avidamente, e que com igual avidez procura dar a ver, é a que se insinua nas zonas de sombra e da obscuridade, luz outra que surge na matéria e da matéria: treva que integra a carne com a sua consistência vital, ou “poética profunda”.[8] Diríamos de Emílio-Nelson o que Michel Foucault disse de Sade, um dos mestres do nosso autor: “esta obra incansável manifesta o precário equilíbrio entre a lei sem lei do desejo e a ordenação meticulosa de uma representação discursiva. A ordem do discurso tem aí o seu limite e a sua lei”[9].

Não deixa, uma vez mais, de se tratar de um problema de representação, onde o plano da linguagem se sobrepõe a todos os outros. E aí se expõe essa tela crua, plena de borrões, onde “não há brilho, vãos arrazoados”, mas “lacunas”, “manchas”[10]. Serve-se para essa demanda de uma “língua bífida”, uma “curiosidade bifacetada” ou “bifronte voz”[11] (boca bilingue, no dizer de Rui Belo). Voz ainda enquanto rio onde afluem vozes, plurívocas vozes de tantos outros aqui convocados, de práticas estéticas, poéticas, artísticas e filosóficas diversas, como diversos os seus ângulos de visão, que não esbatem a voz poética, antes a robustecem e a individualizam, transformando a influência em José Emílio-Nelson, cremos, mais numa alegria do que numa angústia.

A cultura e a erudição de arco trans-estético, permitem-lhe assumir decisivamente toda a tradição nacional, ibérica e europeia no sangue, como queria Eliot, numa sistemática elaboração de uma complexa e infindável teia textual onde se sucedem diálogos, ressonâncias, ecos, contaminações, envios e reenvios intertextuais, plasmando pela escrita não só a sua palavra e a palavra alheia — ou, melhor, a sua palavra integrando a palavra alheia — mas também todo um museu real e imaginário onde uma onda interartística e ecfrástica desagua no poema: Hesíodo, Catulo, Marcial, Eurípedes, Ésquilo, Quevedo, Cervantes, D. Dinis, Camões, Pessoa, Bocage, Sade, Shakespeare, Ginsberg, Stevens, Artaud, Ponge, Céline, Juarroz, Nerval, Montaigne, Rousseau, Victor Hugo, Appollinaire, Boileau, Loyola, Rabelais, Santo Agostinho, Kieerkegaard, Nietzsche, Bataille, Diderot, Caravaggio, Velásquez, Dürer, Monzoni, Nebreda, Dali, Warhol, Buñuel, Deleuze, Derrida, Lacan, Freud, Klossowski, Brecht, Piscator, entre tantos outros, formam essa imensa galeria, perpassam como rumores, reflexos, murmúrios, associados à voz central e ordenadora do poeta, que os interroga e dissemina. O unamuniano sentimento do trágico, inerente à vida, não está ausente, mas funde-se nesta escrita com os sentimentos do cómico, do irónico, do sarcástico e do burlesco que complementam e são inseparáveis desse trânsito vital do homem pela terra. Prevalece a representação cuja obscura beleza se mede pela finura, pela precisão, pela eficácia. De um fundo místico, alucinado e barroco, o poeta mexe no interior da linguagem em elaboração contínua, subtil e sofisticada, e nos diversos planos do sentido como se revolvesse o interior de si mesmo, de suas obsessões e alucinações; em simultâneo, agente da representação e representado. E desvenda trevas, obscuridades, movimentos submersos do corpo e da imaginação. Uma estética da verdade, da sua verdade, naturalmente, suporta a sua ética enquanto escritor, acedendo, pela análise, pela dissecação, pela ação gnosiológica dos sentidos a uma realidade perturbadora, mas inescapável.

Retomando a linha analítica de Foucault, podemos dizer que a obra de Emílio-Nelson incide sobre os sedimentos mais profundos do humano, numa arqueologia que se age num primeiro momento sobre o sensível e o carnal, por contiguidade transita igualmente ao território do espírito que o conduz. A espessura da linguagem acompanha a espessura do sujeito, a realidade vivencial do corpo acompanha as sombras da voz poética, não obstante tantos momentos de uma claridade de halo neo-clássico que se tem acentuado com o decurso da escrita. Segue a lição e o ponto de vista do pintor, entidade omnipresente quer na inspiração quer na composição: “a invisibilidade profunda do que se vê talvez seja solidária com a invisibilidade daquele que vê”.[12] Poeta da suspeita, garimpeiro do dizer não tanto o indizível mas o proibido, trazendo à superfície o que sempre foi da ordem do submerso, seja no plano dos órgãos do corpo e dos abismos do ser, seja no plano da escatologia da linguagem.

A criação de matriz barroca, “quevedesca”, enforma primordialmente esta escrita: auroral, espaço geológico de fendas e grottas de onde o homem surge e para as quais se dirige por decisivo instinto vital. Multiplicam-se e dispersam-se em contínua metamorfose as formas, cabe ao poeta a reconstrução, a restauração, a reintegração ainda que pela anamorfose. Não está aqui presente tanto um mundo humano contaminado e fundido com o vegetal, ou o animal, como elemento identificador da categoria grotesca ao longo dos séculos, mas o próprio humano deformado e disformizado, enquanto identidade ontológica cómica e trágica, ridente e melancólica, perfeita e monstruosa. A proliferação animalesca e caricatural das formas em Emílio-Nelson mais do que em metamorfose funciona, portanto, enquanto anamorfose, isto é, uma espécie de regresso à forma inicial, radical diríamos, através de um processo de reconversão, recomposição, recombinação e fusão de elementos humanos dos planos do material, do existencial, do vital e do espiritual: “Falem da anamorfose, cruamente”[13], o que em última análise não deixa de ser uma espécie de fenomenologia do regresso às origens, à pura essência humana despida dos véus da educação, da aculturação, da socialização.

Mais do que escrever com a intencionalidade primeira da encenação e da irradiação do feio, o que parece surgir da escrita deste autor é um direccionamento da acção, da análise e da escrita para os planos não desvendados da vida. Na lição de Bakhtine, a matéria do corpo também aqui parece universalizar-se pela sua humanidade crua, onde o corporal, o animal, o social e o espiritual se fundem rumo a uma totalidade estranha, disforme, desagradável, mas espantosamente humana na sua descomunal e ontológica imperfeição. Processo poético e ético que ao incidir sobre a aparente e frágil ordem do mundo, a submete à dura prova da verdade, da autenticidade, da naturalidade. Não filtra, não selecciona, não elege em função de pré-conceitos; toma para si como material de experiência o homem na sua plena incompletude, na sua humana demasiado humana humanidade. Simplesmente limita-se a expor de forma cirúrgica a viva autópsia do ser em sua unidade, através de um trabalho incessante sobre a linguagem.

Parece-nos que a escrita de Emílio-Nelson também não foge, em muitos momentos, à associação que Wolfgang Kayser faz entre grotesco e surrealismo; apresenta-se como uma espécie de surrealismo barroco ou de barroco surreal, com sua imagética distorcida, alucinada, surpreendente, espantosa. Convocando pelo símile sistemáticas realidades díspares, Emílio-Nelson dá razão ao teórico alemão quando este apresenta o grotesco como categoria estética onde a sátira e a caricatura não estão de maneira nenhuma desligadas do pathos vital, da tragicidade incontornável da vida. Mas também, como Kayser demonstra abundantemente, o grotesco, como aliás qualquer outra categoria estética, é sempre um problema de recepção, ou de percepção. Não obstante, a preocupação com o plano dos efeitos perante o público leitor passa ao lado de um criador que concentra todas as suas forças nesse acto criativo. O chocante e o sinistro que caracterizam o grotesco exposto e historicizado por Wolfang Kayser partem sempre de algo que ao receptor é estranho, pouco familiar; ora nada há de mais intrínseco e familiar à condição somática, biológica e psíquica do homem que a matéria humana exposta por Emílio-Nelson. Se ela resulta estranha e distante é porque véus justapostos por diversos tipos de ordens morais se encarregaram pudicamente de os cobrir e consequentemente esconder ao olho humano em sua real claridade.

Em concreto, a imaginação de Emílio-Nelson, como na paleta dos seus pintores de eleição (Goya, Velasquez, Caravagio e tantos outros), é a imaginação do corpo vital em suas deformações, distorções, aberrações, flagelações, perversões, desproporções. O grotesco, o burlesco, o disforme, o informe, o desconforme, o imundo, o monstruoso, o tosco, o degenerado ou qualquer destas categorias estéticas expulsas do céu platónico e do gosto da Pólis é pois, qual partícula quântica, sempre uma questão do que observa, do que percepciona e percepcionando o afecta; mas ainda e sempre o homem em sua frágil e humaníssima representação. “Em que balança pesas o belo?”[14], interroga-nos o autor a propósito.

A verdadeira força do grotesco em Emílio-Nelson não derivará ainda assim tanto do realismo backtiniano, onde os tipos são arrancados do quotidiano e do Real, mas como defende Wieland, da própria energia imaginativa do cérebro do artista. Não está em causa uma imitação visando um qualquer efeito de real, mas sobretudo uma intrínseca força criativa e energética de ordem estética, que não obstante contém em si uma elementar força desconstrutiva do comummente aceite.

“Rien n’est beau que le laid”; esta corrosiva paráfrase de Polin à conhecida máxima de Boileau, “rien n’est beau que le vrai”, serve de epígrafe a “Exórdio”, último poema de Bibliotheca Scatologica. Realmente, a modernidade estética e filosófica superou na ordem da criação artística, como se disse, esta dicotomia para situar a obra de arte no patamar superior da representação enquanto recriação e reinvenção, embora desde as mais arcaicas manifestações artísticas essa linha paralela (heterodoxa, degenerada e inestética) esteja presente no labor de um número incalculável de criadores; a essa premissa e genealogia é fiel Emílio-Nelson enquanto poeta e esteta, ao procurar uma ordem outra, um patamar ético e estético da ordem da plenitude existencial, do verdadeiro, num nietzschiano para além do bem e do mal, do belo e do feio.

Em Beleza Tocada, edifício poético de toda uma vida mergulhada na literatura e na arte, se fixa uma voz, uma atmosfera, uma linguagem, um trabalho de reinvenção e reelaboração da sua língua enquanto material de criação; uma pintura barroquizante do mundo em formas exuberantes em sua transitoriedade metamórfica. Todo este incessante e meticuloso labor resultante de uma questão definitiva presente no poema precisamente intitulado “Enquanto contemplamos / aqui a interrogação”: “Do que deciframos, / o que nos abala?”[15].

[1] José Emílio-Nelson, Beleza Tocada, Lisboa, Abysmo, 2016, p. 495.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Idem, p. 579.

[5] José Emílio-Nelson, Ameaçado Vivendo, Porto, Edições Afrontamento, 2010, p. 43.

[6] Cf. Luís Adriano Carlos, “Fisiologia do Gosto Literário”, Introdução a Alegria do Mal, p. 27. Neste ensaio fundador, fixa-se de forma definitiva o essencial do programa estético e poético do autor de Polifonia.

[7] Ameaçado Vivendo, p. 177.

[8] Idem, p. 31.

[9] Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, p. 255.

[10] Ameaçado Vivendo, p. 139.

[11] Idem, p. 132.

[12] Maurice Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, Lisboa, Veja, 1992, p. 70.

[13] Ameaçado Vivendo, p. 44.

[14] Idem, p. 137.

[15] Beleza Tocada, p. 482.

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