Os haiku e eu

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
6 min readJan 7, 2017

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António Cabrita

Estou a reler um clássico que navega no território do haiku, Fourmis sans ombre/le livre du haiku, de Maurice Coyaud, que o autor, com graça dedica A Diogène, à ses chiens, mas o que atrai de imediato é o haiku em epígrafe, que justifica o título.

O poema é de Seishi e reza assim:

No jarro de água flutua
Uma formiga
Sem sombra

É impossível condensar melhor o que a vida é, os seus limites e o que nela cede ou não cede ao espírito do tempo. Está morta, a formiga, e não tem sombra. Uma vida que é vida tem traço, imprime um resgate pessoal e uma responsabilidade social: não entrega a sua sombra. Se de um golpe falece é uma palha na água, inerte, em distraída glaciação.

É agora pura matéria, fantasmeou a sombra. Biologicamente, caiu da árvore, e não passa da ruína do nome que atribuímos à sua aparência, até nos esquecermos de o proferir. Pêsames. Estamos sós. A vida está só, tirita de solidão, aquém dos nomes, no âmago da tempestade em que os elementos combatem entre si.

Por agora verifica-se uma quietação na água que sustenta o cadáver da formiga, mas é temporária, um intervalo. Que serve para a morte passear nas artérias daquele corpo, que já incarnou o pulsar de uma energia que permaneceu para ele um mistério. Afinal, se a morte nos desfere o seu golpe é porque não acedemos à chave da vida, não é?

Acabei de estalar entre as palmas da mão a fuselagem de um mosquito. Outro para quem a vida era só um domínio fugaz mas não uma inerência.

Os haikus, fascinam-me e ao mesmo tempo desesperam-me, a sua clareza não é inata mas um resultado do processo de se entrelaçar (verticalmente — de momento, não o sei definir de outro modo) em três linhas vários níveis de realidade e de significação. Vejamos, por exemplo:

Todo o mundo dorme

Ninguém entre
A lua e eu.
Seifujo

Várias coisas diferentes, ainda que concomitantes, se entretecem aqui:

- o sujeito do poema vive num mundo em que é difícil estar só, ou, pelo menos, a sua condição social não lhe permite estar só e atento à escuta do mundo

- não existe separação entre homem e natureza, uma dualidade falsa e forjada que se desmancha assim que ficamos finalmente a sós

- que alguém nos pode estar a sonhar, “único” estado não-dual, etc., etc.

Sempre me atraíram os haikus, mas raras vezes fui capaz de os cometer, acho que por falta de humildade. Escrevo um haiku e não deixo que a redoma do silêncio poise sobre ele, penso de imediato que lhe falta algo, que lhe posso acrescentar x. Em dias de menor orgulho páro num soneto, mais vulgar é estragar um bom haiku (enfim!) com uma baba desmedida.

Angustia-me que me tomem por Satie, que não me acreditem como Rachmaninoff, porque uma das lições mais difíceis da vida é a que se estampa no haiku de Buson:

Para cantar

o rouxinol

só entreabre o bico.

Talvez aos oitenta consiga dizer com o Hokusai, mais dez anos e conseguirei desenhar com vida o voo de um moscardo. Até aí, cagança e manha.

Bom, a traduzi-los não acrescento, só lhes tento infiltrar um nico de aragem.

A técnica é só uma: não hesitar, fazê-los de um traço depois de observarmos a linha que vem do do cerne.

Sem pensar tecnicamente na coisa, se tem dezoito sílabas, se os seus tópicos obedecem ao entrosamento das estações, etc. Se penso muito, na tradução de um haiku fico como a centopeia da fábula a quem perguntarem que pata mexia primeiro: paralisado.

O tsunami não hesita e o voo do moscardo entre duas toranjas também não.

O mais garantido para transmitirmos alguma vida ao haiku, a vibração que ele intenta captar, é seguirmos o impulso e fazê-lo brotar de uma vez só, com cada palavra absolutamente encaixada no seu lugar na relação. A mudar uma palavra depois, que seja por questões de textura ou cromatismo, apenas.

Imediatamente a seguir à tradução dos haikus, que me ocuparam, esta manhã, das 10h às 11h30, saiu-me este num só talhe:

Tempestade,

encavalitam-se as cerejas

nas orelhas do vento!

O segredo, pois, é não tentear, meditar no que lemos e depois atacarmos de uma vez só, decididamente, como o funâmbulo, o arame. In my opinion.

Matsuo Bashô

Os primeiros doze haikus que se seguem em baixo (todos em versões minhas) são do Basho e os restantes de Yosa Buson.

Vão morrer não tardam

as cigarras; não tiramos daí a ideia

assim que as escutamos.

Um relâmpago:

na obscuridade brilha

o grito da garça-real.

A água é tão fria

que nela não consegue adormecer

a gaivota.

Sobre o toco morto

tamborila o corvo:

entardecer de Outono.

Cabana de pescadores:

misturados aos camarões

luzem grilos.

Que frescor;

os pés no muro

impelem a sesta!

De hábito detestado,

como é belo o corvo

na alba nevada.

Do coração da peónia

sai a abelha,

prenhe de desgosto!

À beira do caminho

florescia uma malva

que o sonso cavalo atraiu.

Um comilão de serpentes,

dizem-me do faisão. Terrível

me parece agora o seu grito.

Se até os javalis

são arrebatados na borrasca

pelas enxurradas de Outono!

Vergado pelas febres, na viagem,

erram os meus sonhos

numa extensa e nua planície.

Na pele do sino

poisou uma borboleta

que dorme tranquila.

Que alegria

atravessar a vau o ribeiro no Outono,

as sandálias na mão.

Pelos aguaceiros de Abril

vão, cavaqueando,

o chapéu de palha e a sombrinha.

Primavera: ao longo

de todo um dia

a onda cavalga o mar.

Aqui e lá

o fragor das cascatas

torna fresco o rumor da folhagem.

Como é divertido

soltar os pirilampos

debaixo do mosquiteiro.

Para cantar

o rouxinol

só entreabre o bico.

Na brisa da tarde

malha e malha a água

nas patas da garça encarquilhada.

Mas os haikus, não se encontram só nos hakus. Eis dois que capturei numa Canção do Mário Quintana. Ei-los, vão em itálico:

CANÇÃO MEIO ACORDADA

Laranja! grita o pregoeiro.

Que alto no ar suspensa!

Lua de ouro entre o nevoeiro

Do sono que se esgarçou.

Laranja! grita o pregoeiro.

Laranja que salta e voa.

Laranja que vai rolando

Contra o cristal da manhã!

Mas o cristal da manhã

Fica além dos horizontes…

Tantos montes… tantas pontes…

(De frio soluçam as fontes…)

Porém fiquei, não sei como,

Sob os arcos da manhã.

(Os gatos moles do sono

Rolam laranjas de lã.)

Se eu fosse o Mário Quintana, acabaria por transformar o poema em dois haikus, mas ainda bem que ele nos deu a alegria de me contrariar.

O que não é um haiku, apesar de escrito em três linhas? O poema que corre em baixo e que encontrei num caderno, sem saber se é meu ou não ( se for meu fico todo contente, se não for meu também):

ESTUDAR A NATUREZA

O girassol não delata.

Não há peças sobressalentes

para a polinização.

Por que não é um haiku? Porque um haiku de comum ilustra ora uma acção, ora um novo termo de relação, como neste haiku de Jack Kerouac:

Não mais que um segundo:

a lua teve um airoso

bigode de gato.

enquanto o poema de cima elabora uma espécie de declaração moral, o que um haiku não é.

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