Os haiku e eu
António Cabrita
Estou a reler um clássico que navega no território do haiku, Fourmis sans ombre/le livre du haiku, de Maurice Coyaud, que o autor, com graça dedica A Diogène, à ses chiens, mas o que atrai de imediato é o haiku em epígrafe, que justifica o título.
O poema é de Seishi e reza assim:
No jarro de água flutua
Uma formiga
Sem sombra
É impossível condensar melhor o que a vida é, os seus limites e o que nela cede ou não cede ao espírito do tempo. Está morta, a formiga, e não tem sombra. Uma vida que é vida tem traço, imprime um resgate pessoal e uma responsabilidade social: não entrega a sua sombra. Se de um golpe falece é uma palha na água, inerte, em distraída glaciação.
É agora pura matéria, fantasmeou a sombra. Biologicamente, caiu da árvore, e não passa da ruína do nome que atribuímos à sua aparência, até nos esquecermos de o proferir. Pêsames. Estamos sós. A vida está só, tirita de solidão, aquém dos nomes, no âmago da tempestade em que os elementos combatem entre si.
Por agora verifica-se uma quietação na água que sustenta o cadáver da formiga, mas é temporária, um intervalo. Que serve para a morte passear nas artérias daquele corpo, que já incarnou o pulsar de uma energia que permaneceu para ele um mistério. Afinal, se a morte nos desfere o seu golpe é porque não acedemos à chave da vida, não é?
Acabei de estalar entre as palmas da mão a fuselagem de um mosquito. Outro para quem a vida era só um domínio fugaz mas não uma inerência.
Os haikus, fascinam-me e ao mesmo tempo desesperam-me, a sua clareza não é inata mas um resultado do processo de se entrelaçar (verticalmente — de momento, não o sei definir de outro modo) em três linhas vários níveis de realidade e de significação. Vejamos, por exemplo:
Todo o mundo dorme
Ninguém entre
A lua e eu.
Seifujo
Várias coisas diferentes, ainda que concomitantes, se entretecem aqui:
- o sujeito do poema vive num mundo em que é difícil estar só, ou, pelo menos, a sua condição social não lhe permite estar só e atento à escuta do mundo
- não existe separação entre homem e natureza, uma dualidade falsa e forjada que se desmancha assim que ficamos finalmente a sós
- que alguém nos pode estar a sonhar, “único” estado não-dual, etc., etc.
Sempre me atraíram os haikus, mas raras vezes fui capaz de os cometer, acho que por falta de humildade. Escrevo um haiku e não deixo que a redoma do silêncio poise sobre ele, penso de imediato que lhe falta algo, que lhe posso acrescentar x. Em dias de menor orgulho páro num soneto, mais vulgar é estragar um bom haiku (enfim!) com uma baba desmedida.
Angustia-me que me tomem por Satie, que não me acreditem como Rachmaninoff, porque uma das lições mais difíceis da vida é a que se estampa no haiku de Buson:
Para cantar
o rouxinol
só entreabre o bico.
Talvez aos oitenta consiga dizer com o Hokusai, mais dez anos e conseguirei desenhar com vida o voo de um moscardo. Até aí, cagança e manha.
Bom, a traduzi-los não acrescento, só lhes tento infiltrar um nico de aragem.
A técnica é só uma: não hesitar, fazê-los de um traço depois de observarmos a linha que vem do do cerne.
Sem pensar tecnicamente na coisa, se tem dezoito sílabas, se os seus tópicos obedecem ao entrosamento das estações, etc. Se penso muito, na tradução de um haiku fico como a centopeia da fábula a quem perguntarem que pata mexia primeiro: paralisado.
O tsunami não hesita e o voo do moscardo entre duas toranjas também não.
O mais garantido para transmitirmos alguma vida ao haiku, a vibração que ele intenta captar, é seguirmos o impulso e fazê-lo brotar de uma vez só, com cada palavra absolutamente encaixada no seu lugar na relação. A mudar uma palavra depois, que seja por questões de textura ou cromatismo, apenas.
Imediatamente a seguir à tradução dos haikus, que me ocuparam, esta manhã, das 10h às 11h30, saiu-me este num só talhe:
Tempestade,
encavalitam-se as cerejas
nas orelhas do vento!
O segredo, pois, é não tentear, meditar no que lemos e depois atacarmos de uma vez só, decididamente, como o funâmbulo, o arame. In my opinion.
Os primeiros doze haikus que se seguem em baixo (todos em versões minhas) são do Basho e os restantes de Yosa Buson.
Vão morrer não tardam
as cigarras; não tiramos daí a ideia
assim que as escutamos.
Um relâmpago:
na obscuridade brilha
o grito da garça-real.
A água é tão fria
que nela não consegue adormecer
a gaivota.
Sobre o toco morto
tamborila o corvo:
entardecer de Outono.
Cabana de pescadores:
misturados aos camarões
luzem grilos.
Que frescor;
os pés no muro
impelem a sesta!
De hábito detestado,
como é belo o corvo
na alba nevada.
Do coração da peónia
sai a abelha,
prenhe de desgosto!
À beira do caminho
florescia uma malva
que o sonso cavalo atraiu.
Um comilão de serpentes,
dizem-me do faisão. Terrível
me parece agora o seu grito.
Se até os javalis
são arrebatados na borrasca
pelas enxurradas de Outono!
Vergado pelas febres, na viagem,
erram os meus sonhos
numa extensa e nua planície.
Na pele do sino
poisou uma borboleta
que dorme tranquila.
Que alegria
atravessar a vau o ribeiro no Outono,
as sandálias na mão.
Pelos aguaceiros de Abril
vão, cavaqueando,
o chapéu de palha e a sombrinha.
Primavera: ao longo
de todo um dia
a onda cavalga o mar.
Aqui e lá
o fragor das cascatas
torna fresco o rumor da folhagem.
Como é divertido
soltar os pirilampos
debaixo do mosquiteiro.
Para cantar
o rouxinol
só entreabre o bico.
Na brisa da tarde
malha e malha a água
nas patas da garça encarquilhada.
Mas os haikus, não se encontram só nos hakus. Eis dois que capturei numa Canção do Mário Quintana. Ei-los, vão em itálico:
CANÇÃO MEIO ACORDADA
Laranja! grita o pregoeiro.
Que alto no ar suspensa!
Lua de ouro entre o nevoeiro
Do sono que se esgarçou.
Laranja! grita o pregoeiro.
Laranja que salta e voa.
Laranja que vai rolando
Contra o cristal da manhã!
Mas o cristal da manhã
Fica além dos horizontes…
Tantos montes… tantas pontes…
(De frio soluçam as fontes…)
Porém fiquei, não sei como,
Sob os arcos da manhã.
(Os gatos moles do sono
Rolam laranjas de lã.)
Se eu fosse o Mário Quintana, acabaria por transformar o poema em dois haikus, mas ainda bem que ele nos deu a alegria de me contrariar.
O que não é um haiku, apesar de escrito em três linhas? O poema que corre em baixo e que encontrei num caderno, sem saber se é meu ou não ( se for meu fico todo contente, se não for meu também):
ESTUDAR A NATUREZA
O girassol não delata.
Não há peças sobressalentes
para a polinização.
Por que não é um haiku? Porque um haiku de comum ilustra ora uma acção, ora um novo termo de relação, como neste haiku de Jack Kerouac:
Não mais que um segundo:
a lua teve um airoso
bigode de gato.
enquanto o poema de cima elabora uma espécie de declaração moral, o que um haiku não é.