Os dois exílios de Mairéad Byrne

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
9 min readSep 25, 2016

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Famosa na Sua Cabeça, de Mairéad Byrne, org. e trad. Dirceu Villa, posf. Leonardo Fróes, São Paulo, Portal Editora, 2015

O exílio de Mairéad Byrne faz-se sentir em dois planos. Na deslocação geográfica a que a levaram as linhas biográfica, mas também no posicionamento assumido pela sua poesia, em face de um hipotético centro canónico. Este, por seu turno, é um constructo com tudo para falhar. Nada (ou pouco) tem que ver com uma centralidade literal, apesar de fazer ainda sentido levar em linha de conta a especificidade de coordenadas como Londres e o eixo de Oxbridge, ou o conjunto de cidades como Hull, Liverpool e outros quantos centros urbanos. E ainda que sejam vitais as realidades específicas das duas Irlandas, a Escócia e Gales, não é de um centro exactamente mapeável que aqui se fala. Sim de uma (des)centralização de processos e adesões, de linhagens e pressupostos. E apesar e tudo isso, um exílio, sim, e de dupla fronte. No espaço, atravessando o Atlântico e fixando-se na costa Leste dos EUA, e na construção de uma obra poética apenas alinhável — mesmo assim por liames subtis e nunca demasiado constritores — com determinados poetas e poéticas. Esse trânsito será mesmo tematizado num dos poemas recolhidos em Famosa na Sua Cabeça. Em «Os Irlandeses Descobrem a América», Mairéad Byrne recua à lenda do monge irlandês São Brandão, que, segundo a narrativa de Benedeit (A Viagem de São Brandão, Assírio & Alvim, 2005), teria chegado à América na Idade Média. Essa circunstância legendária não se encontra, aqui, ao serviço de uma hagiografia, mas é uma forma de fornecer espessura histórico-cultural ao próprio percurso do sujeito poético. E ao de tantos irlandeses. Os ecos de um passado mítico tornam o presente uma plataforma de análise e inquirição. A miscigenação de referências histórico-míticas e concretas, presentes — «barco de couro» e «Boeing» (p.16) –, fundem duas manifestações distintas da diáspora irlandesa. Por fim, o sujeito do poema e São Brandão têm de assinar um mesmo formulário, num momento de reparo à universalidade da burocracia e da opressão da máquina dos Estados. Um outro poema, «Carta para Casa», produz, na sua expressão elíptica, um resumo certeiro — «Não me tornei fluente na língua do dólar,/ ou em outra das línguas faladas aqui./ Neste envelope vocês acharão um poema.» (p.69) A América, país e continente, é território para sempre desconhecido, porque o eu responsável pelos poemas assume plenamente a sua condição de viandante ou de locatário em potencial trânsito.

A poesia da irlandesa Mairéad Byrne produz os seus sentidos não exactamente ao arrepio, mas sem dúvida em posição lateral relativamente a um núcleo — britânico e irlandês — que toma para si um determinado conjunto de tradições e modelos de representação, escrita e pertença cultural. Não cabe aqui escalpelizá-los, mas dir-se-ia que uma vastíssima generalidade dos poetas actualmente a escrever nas Ilhas acabam, inadvertidamente, por dar razão à estupidez do preconceito alheio e à ignorância dos juízos precipitados. Dessa forma, à suspeita de um conservadorismo estreme (e da manutenção de esquemas identitários e culturais tendencialmente imobilistas, opacos às facetas mais aceradas dos modernismos), correspondem práticas poéticas iminentemente condizentes com uma certa perpetuidade, como filha de certo espírito de curadoria. Certa continuação de modelos cristalizados, pela adesão à grelha fixa das formas clássicas, ou pela persistência de figuras próximas de um passado contra-revolucionário, ou, ao menos, conservador (Philip Larkin, Anthony Thwaite, Seamus Heaney, Andrew Motion, Simon Armitage, Don Paterson). Poetas, críticos e antologiadores que alinham por um mainstream que, sem deixar de produzir vozes sumamente válidas, contribui para a construção de uma imagem, acima de tudo, equívoca, ou uma permanente desfocagem de fundo. Esta, em última análise, deixa de fora toda uma zona de criação que é escamoteada, quando não redunda em total apagamento. É nessa área que se deve entender a poesia de Mairéad Byrne. Ao contrário da maioria dos poetas da República da Irlanda, de onde é originária, mas também da Grã-Bretanha, as suas adesões e percursos culturais reconstituíveis passam muito mais pela (pós-)modernidade europeia do que pelas propostas insulares. Acresce uma atenção muito peculiar às artes plásticas, uma apropriação, mesmo, de algumas das suas técnicas, como o «ready made», ou «as colagens» (p.7), conforme lembra o tradutor (o poeta Dirceu Villa) nas suas palavras iniciais. Algo que atravessa, igualmente, o que é muito menos tangível e consiste numa atitude de iconoclastia e insurreição perante esquemas de verosimilhança, propriedade e naturalismo.

E eis aqui uma extraordinária antologia. Além da qualidade da tradução de Dirceu Villa — especialmente notável no extenso poema «O Pilar», mas extensível à imagem abrangente que se oferece, de uma obra não exactamente caudalosa –, apresenta capazmente uma poeta peculiar, num panorama tudo menos escasso. Por extensão, permite, ainda, atender a um veio da poesia irlandesa (e britânica) que extravasa os limites mais previsíveis, exorbitando dessa espécie de esperteza saloia em que se transformou muito do conhecimento da poesia praticada nas Ilhas. Infelizmente, o cenário é quase tão deprimente dentro como fora daquele espaço. No território britânico e irlandês, o chamado mainstream tem uma implantação tão sólida, arraigada e «institucional», que tudo o que lhe escapa, é deglutido e expulso sem quase se deixar ver. Propor qualquer semelhança com o caso português será pura precipitação. Trata-se de realidades a tal ponto díspares (salvo os inevitáveis traços comuns) que analisá-los pormenorizadamente seria um exercício de masoquismo e inutilidade. Basta dizer que a suposta invisibilidade de alguns poetas, na paisagem portuguesa, é, salvas as devidas proporções, despicienda, em comparação com o caso britânico e irlandês. Há um silenciamento quase total, uma inexistência praticamente assegurada por certa máquina normalizadora. Mairéad Byrne é um dos poetas que se podia considerar pelos mesmos parâmetros. Não se pense, porém, num coro monocórdico de descontentes. Cada um por si, ou em pequenos núcleos de colaboração, estes poetas existem, publicam-se, divulgam as suas propostas, e têm alguma repercussão crítica. É quase ocioso mencionar nomes, mas talvez fosse avisado referir alguns: J. H. Prynne, Tom Raworth, Allen Fisher, Catherine Walsh, Gavin Selerie, Peter Finch, Maurice Scully, Sarah Hayden, Sean Bonney (publicado entre nós, recentemente: Cartas contra o Firmamento, trad. Miguel Cardoso, Douda Correria, 2016), Rhys Trimble, Rachel Warriner, Keston Sutherland, Calum Gardner. Afortunadamente, a presente enumeração peca por defeito; contudo, tem o mérito (porventura, o único) de nomear alguns (pouquíssimos, dado o panorama) agentes de uma clara disseminação geográfica (Inglaterra, Escócia, República da Irlanda e Gales) dentro das Ilhas, e uma enorme energia criadora — ainda que maioritariamente oculta e longe a ribalta.

Os poemas seleccionados de Mairéad Byrne intitulam-se You Have To Laugh: New + Selected Poems (Nova Iorque, Barrow Street Press, 2013). Algo que poderá formar uma imagem mais ou menos precisa do tipo de abordagens que autora leva em conta. Não se trata, nesta poesia, de um humor lúdico, nem escapista, mas de uma forma de reagir e de intervir. Um dos poemas em que essa dimensão — sobretudo assente na ironia e na desmontagem do aparentemente sólido e inquestionável — está mais presente é «Três Poetas Irlandesas»: «Editores de antologias & números especiais sobre poesia irlandesa anotem: estou disponível para inclusão nessas publicações em três facetas: poeta irlandesa, poeta irlandesa inovadora e, como o campo anda bem aberto, primeira poeta concreta irlandesa.» (p.73) Debaixo da capa do humor, decorrente da situação autoproposta, revela-se a tríplice questão vexada da categorização. A rotulagem dos poetas, no domínio da poesia britânica e irlandesa, é da ordem da paranóia. Convencional ou modernista, tradicional ou inovadora, conservadora ou inventiva, a taxação é ubíqua e surge quase automaticamente. Assim, uma situação derrisória, apresentada com uma aparente frieza de indiferença, traduz, realmente, um empenhamento que a poesia de Byrne mais não faz do que validar. Mais do que propriamente política, ou paralelamente a esse veio, a sua poesia é atenta aos impulsos societários, a sinais emitidos por estruturas como a família — «No sofá a família toda sentada/ Afivelando cintos de segurança» (p.67) –, enquanto realidade dinâmica e inseparável da sociedade em que pode existir. É ao tecido social, à sua estruturação, que a poeta vai buscar as tensões que conduz até ao poema. Escravidão audiovisual, estado morto-vivo das consciências, alienação generalizada. Mas a família e o universo doméstico podem, igualmente, constituir impulso para outro tipo de construções. É o caso (entre outros possíveis) de poemas como «Nós Gargalhamos»[i] (p.79) e «A Centopeia + O Laptop» (p.95). No primeiro caso, o poema aventura-se a entrar na província da domesticidade em pleno tempo de de Acção de Graças. Terreno minado, esse, não só o doméstico, como o celebratório e o oficial. Mas Mairéad Byrne transforma o comezinho em instrumento de corte, e golpeia à volta da banalidade para produzir vinhetas admiráveis que bebem na realidade do quotidiano, mas que se tornam emblemáticas — «Meus olhos, cerrados. Tudo escuro. Me sentia dura por dentro. Sentia o fecho das pálpebras como uma crista.» O que se consegue através da estranheza do vocabulário — «fecho das pálpebras» (o original tem «seams», «costuras», mas a opção de D. Villa ganha em concisão e ambiguidade), «crista» –, como através de uma sintaxe sincopada, quase numa elipse contínua, que está já no original. Por outro lado, em vez de se concentrar nos elementos mais evidenciáveis de uma celebração hipercodificada, Byrne escava, escurece ambientes, isola os seus objectos, redu-los a mínimos de expressão, a reacções quase exclusivamente instintivas. Perante um filme demasiado esquecível na televisão, o organismo reage com gestos naturais e irreflectidos. O riso, a sonolência, as produções do corpo opõem-se à artificialidade do calendário, criando uma terra de ninguém onde o poema se afoita. E o leitor habita, por momentos, aquele canto escuro numa sala de família. Um estranho entre estranhos. «A Centopeia + O Laptop» — em cujo título não é indiferente a aparência aritmética — constitui um retrato antinaturalista em que nenhum dos elementos é propriamente descrito, mas redefinido como espectro. Tudo é expectativa e iminência — «A centopeia está morta. Ou poderia estar.» As coisas não são apenas a sua realidade, mas todas as camadas possíveis em seu redor. Um pouco à semelhança do que sucede em A Paixão de G.H., de Clarice Lispector, onde a contemplação perturbad(or)a de uma barata ateia o lume prodigioso daquela escrita. O espaço do terror separa o eu que fala no poema, o artrópode e o computador, e todos coabitam com o «gigante segredo da cone[c]tividade» do portátil. Esse elemento secreto recobre todo o ambiente, qual um manto que deixasse adivinhar que há mais entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.

Famosa na Sua Cabeça apresenta ao leitor de língua portuguesa uma poeta irlandesa que não se deixa encerrar num cânone restrito. Uma autora que, caso se deixasse definir num só termo, teria «inventividade» como sua palavra-chave. Quer nas unidades mais reduzidas — palavra a palavra –, quer em âmbitos mais alargados — a estrofe, o poema –, a poesia de Mairéad Byrne segue um caminho de criação, mais do que de paráfrase ou reformulação. A tradução de Dirceu Villa repercute essa força: «os cisnes sinuosos» (p.50) respondem ao original «shaped like swans» (p.42). No que se replica a estrutura sonora do inglês, criando um sentido aproximativo e reformulador. Por vezes — «clamor/ e clangor dos sinos» (p.48) — as incidências sonoras e lexicais conhecem uma identificação perfeita nos dois idiomas, o que é aproveitado pelo tradutor e poeta, com ligeiras mas importantes deslocações no corpo do verso ou com o acrescento de uma copulativa («e»). Ambos os exemplos se encontram no poema «O Pilar», um desafio poético e linguístico dos mais árduos que Villa teve de enfrentar. E que venceu.

A poesia de Mairéad Byrne é uma «crítica da vida» (p.101), como (lembrando Matthew Arnold) diz Leonardo Fróes no seu posfácio. Extremamente atenta ao coloquialismo e ao organismo vivente que é a sociedade, a sua poesia faz uma apreciação do real, mais do que o retrata; pesa e analisa, mais do que descreve. Assim, o concreto é, na poesia de Byrne, um instrumento de aproximação e afastamento. Sem pretender uma pertença isenta de atrito, a poeta procura as asperezas — da língua, dos comportamentos, do que é humano e existe –, não para aplainá-las, mas para as cantar. Para exaltar a rugosa superfície do mundo, castigando com a sua na análise certeira a iniquidade onde ela contacta com as suas palavras. Seja ela a perseguição movida a certas franjas da população na sua Irlanda («A Irlanda Escondida», p.33), seja o capitalismo avassalador dos Estados Unidos, em que vive, país da «língua do dólar» (p.69).

[i] «gargalhámos» na norma portuguesa pré-AO90 (que preconiza a facultatividade da acentuação das formas de pretérito perfeito atinentes, uma entre inúmeras aberrações de um, assim chamado, «acordo».

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