OLGA SAVARY, O SILÊNCIO DE UMA POETA MAIOR

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
9 min readMay 21, 2020

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Álvaro Alves de Faria (*)

Delicada. Principalmente delicada. Assim era a linguagem poética de Olga Savary, uma mulher em muitas mulheres. Morreu no dia 15 de maio, em Teresópolis, Rio de Janeiro, aos 86 anos, vítima da Covid-19. Nasceu em Belém, no Pará, em 21 de maio de 1933. Mais uma vez, a literatura brasileira perde uma de suas vozes mais importantes. Especialmente em uma terra em que a poesia se transformou em quase nada nas mãos de muitos aventureiros. A poesia brasileira sente-se mais só. Costumava dizer que “no Brasil o poeta morre de fome. Mas sou apaixonada por um malandro chamado Literatura. Não posso viver sem ele”. A vida não foi fácil, especialmente agora, no final, nos últimos anos. Arrastava problemas financeiros, descuidou-se de si mesma, sua aparência era outra, não daquela bela mulher da juventude e mesmo já idosa, mas com seus traços de beleza perfeitos. Descuidou-se da vida e se deixou levar como fosse possível. Guardou muitos segredos, que contava só para os amigos íntimos. Trabalhou muito em favor da poesia, especialmente elaborando antologias de poetas brasileiros e os que traduziu. Uma mulher em muitas mulheres, com afazeres literários de toda ordem: poeta, escritora, contista, romancista, crítica de arte, tradutora e jornalista. E trabalhou nisso tudo até o fim da vida, mesmo enfrentando dificuldades difíceis de ultrapassar. A Convid-19 atingiu uma mulher já bastante frágil, física e psicologicamente. Olga Savary não gostava de ser chamada de “poetisa”. Não. Queria e exigia ser chamada de “poeta”. Era uma poeta e ponto final. Além de seus livros, traduziu mais de 40 obras de autores como Oscar Wilde , Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar, Carlos Fuentes, Federico Garcia Lorca, Pablo Neruda, Ernesto Che Guevara, Omar Cabezas, Arturo Arias, Ronán Cano, Laura Esquível, Victor Álamo de la Rosa, Octávio Paz, Jorge Semprún, Mário Vargas Lllosa e vários outros. Some-se a isso seu intenso trabalho em traduzir os grandes mestres japoneses do haiku, como Bashô, Busun e Issa. Publicou muito, especialmente poesia e contos, livros como Espelho Provisório, Sumidouro, Altaonda, Magma, Éden Hades, Linha-d´água, O olhar dourado do abismo e muitos outros. Foi a primeira poeta brasileira a dedicar-se à poesia erótica e também a se dedicar ao haicai. Escreveu um livro inteiro de poemas eróticos, Magma, que lançou em 1982. Orgulhava-se em ser chamada de a musa de Carlos Drummond de Andrade. Mas esse é um dos segredos só para os amigos íntimos. Quando conheceu Drummond, Olga Savary era conhecida como a Mona Lisa de Copacabana. Tinha pouco mais de 20 anos de idade. Esbanjando beleza, desfilava sua figura pelas ruas e praias, sempre enaltecida por quem a cercava. Nos segredos envolvendo a figura de Drummond, o poeta não queria que se falasse em “amizade amorosa”. Não. Drummond exigia que se dissesse que se tratava de amor. Amor mesmo. De verdade. Certa vez Olga disse a Drummond que gostaria de pegá-lo no colo e mimá-lo como uma mãe. Mas o poeta não gostava dessas histórias. Preferia somente o amor, sem deslumbramentos. Drummond escreveu muitos poemas para Olga. E Olga prometeu que nunca os publicaria. E assim o fez. Os poemas estão guardados ninguém sabe onde. “Drummond é meu poeta do coração”, dizia sempre. Tinha a poesia de Drummond como seu livro de cabeceira. No entanto, o poeta que ela mais gostava de ler — e lia sempre — era T.S.Eliot. Para conceder uma entrevista, antes Olga procurava saber quem era o jornalista que ia entrevistá-la. Dizia, então, não suportar jornalista que escreve “pra” em vez de “para”. Foi casada com o cartunista Jaguar, do jornal “O Pasquim”, no regime militar, que ela ajudou a criar. Teve com ele dois filhos, Pedro e Flávia, que também é poeta. Um dos momentos mais terríveis que viveu na vida, foi quando seu filho morreu. Vítima das drogas. Dizia-se triste por ter descoberto a sexualidade tardiamente. Não se conformava. Dizia isso aos amigos íntimos. O poeta Ferreira Gullar comentou certa vez que essa descoberta tardia da sexualidade, exatamente isso, é que fez de Olga a grande poeta que ela é, capaz de falar do sexo com uma “cautela de veludo”. Olga afirmava que Clarice Lispector foi e é o maior escritor brasileiro, assim no masculino, porque — como observava — Clarice é maior entre homens e mulheres”. Não aceitava essa conversa de que homem escreve melhor que mulher. Trata-se de uma afirmação sem cabimento. Diante de conversas assim mostrava-se desapontada. Seu livro erótico estava em sua cabeça havia muitos anos. Os poemas foram sendo elaborados no pensamento. Até que um dia resolveu passar um final de semana na Casa do Sol, onde vivia Hilda Hilst, em Campinas, interior de São Paulo. Foi visitar Hilda para ficar dois dias, mas ficou um mês. E enquanto Hilda se dedicava a gravar a voz dos mortos no seu sítio, Olga foi escrevendo e assim nasceu Magma, livro bastante discutido, publicado em 1982. Entre as longas entrevistas que fiz com Olga Savary, uma foi especial, para meu livro Palavra de Mulher, no qual reuni 20 das principais escritoras e poetas do Brasil. Escolhendo algumas frases, resumidamente ela me disse:

-Muita gente pergunta como cheguei até aqui e como consegui tanto, com um currículo que vai da letra A até a Z. Respondo que com muito emprenho, total dedicação, com a vida voltada só ao trabalho árduo, mas feito com prazer. Paixão mais compaixão, assim se cria

-O ser humano não pode suportar tanta realidade. Precisamos todos de verdade e de beleza que a criação da arte nos dá. Se não for assim, nunca será possível ser feliz.

-O poeta é prestigiado e, ao mesmo tempo, não é remunerado à altura, como se vivesse de brisa.

-A palavra custa. Tudo tem um custo. Especialmente quando a palavra vai revelar universos íntimos, segredos, desassossegos, angústias.

-Como o amor, a poesia não é para amadores.

-Minha poesia sempre me alimentou, desde a mais tenra infância, e me alçou dos mais profundos sofrimentos da vida. Sem a poesia eu poderia ter enlouquecido de dor. À minha poesia certamente eu poderei chamar de todas as coisas boas, até mesmo de Deus.

-Deus sempre foi o mais adorável companheiro. Sempre presente, conversando comigo. Jamais me faltou. Não um deus externo, fora de mim, vingador e punitivo, mas um Deus internalizado, dentro de cada um de nós, amoroso e criativo. Assim, Deus é poesia, a própria criação. Não é um amontoado de bens terrenos cultuados por grande parte das pessoas.

-Creio que só a espiritualidade responsável tenha força de mudar e melhorar alguma coisa no mundo e nas pessoas. A poesia está imbuída nessa intenção. É um processo lento, porém eficaz, como um pequeno tijolo a construir uma torre em direção ao alto. É pouco, mas é muito também, uma vez que evoluímos devagar. Com toda a tecnologia, ainda estamos vivendo nas cavernas. Tudo deveria ser realizado com essa intenção de verticalidade indispensável. A meu ver, o homem não aproveita a lado bom do bicho, mas sim da fera. Daí o desequilíbrio, a falta de harmonia consigo mesmo, com seus semelhantes, com a natureza. A poesia restaura esse desequilíbrio perdido.

-O escritor começa só, cria em completa solidão. Todo poeta é “voyeur” e fingidor, mas sem mentir jamais. O escritor é imprescindível. O artista, em geral, é fundamental: não mata por dinheiro e faz o Brasil pensar em si mesmo. É assim que o Brasil se aprende. Não gosto muito de falar. O país está atolado em palavras. E não adianta nada. Fala-se demais no Brasil. Escrever é mais verdadeiro.

-Minha relação com a escrita, com a palavra, é uma relação apaixonada, de tesão, sensual, eu diria até carnal, uma relação sexual, em que há atração e rejeição, orgasmo e tudo o mais. Não há nada melhor do que fazer amor com o próprio trabalho. Nem melhor investimento. Acho que às vezes a gente escreve com raiva, revolta, indignação. Há tanto para consertar o mundo. E é aí que penso servir a literatura para uma melhoria espiritual do homem.

Esse era seu mundo, em palavras exatas. Dizia não ter medo da morte: “A morte para mim é um grande orgasmo”. E vivia seguindo sempre para algum lugar. Não tinha computador. Telefone, só atendia de madrugada. E as conversas atravessavam horas. Falava sem parar, emendando frases, criando situações, lembrando coisas. Nos primeiros livros, praticamente todos os poemas eram dedicados a Carlos Drummond de Andrade, caso de “Espelho provisório”, de 1970. Vejam este poema de janeiro 1969, “O menino, um dia, no retrato”, dedicado a Drummond:

Vou te descobrindo — ou redescobrindo –

atrás da fechada janela

na remota cidade que desconheço

(ou reconheço?) através da seta

de teu olho — bicho fugido, sigilo

de um silêncio úmido –

como vejo vagas formas que se movem

no escuro no interior da casa

que ficou guardada

sem uso, na memória)

e desse jogo obscuro e perigoso

de que fugimos mas retemos fórmulas

e de que tudo foi guardado do outro lado

das coisas que jamais podem ser ditas,

restou como tocável permanência

o menino, um dia, no retrato.

Os poemas dedicados a Carlos Drummond de Andrade são muitos, mas nem todos foram publicados. Há muitos outros que guardou, uma espécie de relíquia que só a ela pertencia. Só os considerados amigos íntimos leram. Entre os que foram publicados, há também este escrito em setembro de 1955, “Cantilena em setembro”:

E embora eu não quisesse

essa vontade estranha me anulou,

me fez somente desejo de sair

contigo pelo ar (na distância

uma cidade de pedra nos chamava)

te castigar de toda memória,

fugir com toda a memória que trouxesses

e nela te guardar como coisa secreta

nunca revelada.

E de roer pacientemente

como fera verde de teu passado

sem outro medo que o prolongamento

dessa impossível febre que me perturbara,

e por isso mesmo

depois de devastado embalar

teu sono de criança numa ilha

que a gente imagina e desenha-se no ar

ou nas ondas, e saber ficar

tão de manso como a flor pisada

ou passarinho morto à pedrada

na beira do caminho.

Vamos a mais um poema escrito para Carlos Drumnond de Andrade, publicado no seu primeiro livro, com palavras de despojamento. Chama-se “Abstrata”:

Há horas não sou — e me pressinto

no que não sou e me visito

no relógio, no vazio do tempo

onde, irmãos na solidão,

a confidência teceu um elo

invisível e nos unir.

E me pergunto se me começo a ver no escuro

Que não o desta casa mas de outra

- geografia vedada a um mesmo uso.

E penso que serei agora:

passeio de quartos a casa que não sei,

fantasma.

Olga Savary queixava-se muito dos rumos incertos da poesia brasileira, cada vez mais machucada por aventureiros que nada sabem de poesia, mas que têm promoção garantida fazendo aumentar no Brasil uma inversão de valores impossível de aceitar. O primeiro livro foi prefaciado por Ferreira Gullar, com palavras que valem até hoje:

-Olga Savary nos parece dizer que a multiplicidade dos fenômenos e das vozes mais encobre que revela a essência real da vida. Por isso mesmo, ela está sempre nos chamando para o silêncio, a quietude, para as coisas que dormem esquecidas ou abandonadas, para o que está aparentemente à margem do mundo. Ela busca, ali, aquela integridade, aquela unidade, que daria sentido à existência. Mas onde encontrá-la realmente, “se nada termina tudo se renova?” É uma angústia que a dilacera “como uma garra/ que fecha e abre dentro da fechada carne”. É quase o desespero.

No livro Repertório Selvagem, obra reunida em 1998, publicado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Olga Savary faz um depoimento sobre sua vida. A obra festejava 50 anos de sua produção poética e sua carreira na poesia brasileira. Olga Savary fala de sua poesia, o que de melhor existe no Brasil, poemas elaborados com o cuidado de um monge, palavras corretas no lugar certo, no verso exato. Uma poesia que deixa marcas, que sabe o que deseja, por onde caminha e até onde pode chegar, com aquela palavra delicada que a acompanhou a vida inteira. Ela escreveu:

-“O colega Fernando Pessoa, geminiano como eu, portanto múltiplo, tem razão: tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Acrescento: tudo vale a pena quando feito com paixão, seriedade, profissionalismo, amor à vida e ao próximo. E dignidade. Que, junto à alegria, são minhas palavras-chave. Vale dizer: a literatura em primeiro lugar. Sempre foi assim em toda minha vida. E assim será sempre”.

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(*) Jornalista, poeta e escritor — São Paulo, Brasil.

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