«O tempo acelerado é como uma vertigem que nos faz agarrar o presente como uma salvação»

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
15 min readMar 29, 2021

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André Barata, filósofo de formação, é professor na Universidade da Beira Interior, onde tem desenvolvido ciclos de estudos na área da ciência política. Tem por áreas de interesse, além da filosofia social e política, o pensamento fenomenológico e existencial e, ainda, a problemática da identidade portuguesa. Tem publicados vários livros de ensaio, sendo o último «O Desligamento do Mundo» (Ed. Documenta, 2020). A Caliban conversa com o filósofo, a propósito desta última obra.

MJC — Este livro foi escrito ainda antes da pandemia. Portanto, embora não seja sobre ela, achas que há alguma relação que se possa fazer?

AB — O livro foi publicado em Maio de 2020, já com a pandemia em curso, mas foi entregue ao editor nos primeiros dias do ano. Precedeu a pandemia, não fala dela, mas há ressonâncias profundas. Diria que as tendências que o livro aponta, e que se impunham como regime de normalidade da nossa existência no mundo, aceleram durante a pandemia, sobretudo pela forma como lhe reagimos. A pandemia mudou o nosso quotidiano, mas, sob uma superfície de mudança, verificamos que, em profundidade, o “novo normal” é apenas o “velho normal” obstinado em adaptar-se, absorver e neutralizar o acontecimento da pandemia, em vez de pretexto para parar e reflectir no modo como nos relacionamos com o mundo. O planeta à beira de uma catástrofe climática, bem como o mundo social entregue a uma globalização que tudo uniformiza, exigem-nos que deixemos de reduzir tudo — natureza, cultura, nós próprios — à condição de recursos, meios mobilizáveis no grande empreendimento de extracção de desigualdade. A resposta à pandemia não tem pensado uma mudança de paradigma, tudo fazendo para o mais rápido “back to the business”. E se a pandemia deixar rasto futuro, arriscamos a que seja apenas o preço a pagar para fazer sobreviver o passado — aceitar máscaras, controlo sanitário, vigilância, compressão da privacidade, sacrifícios. E seremos nós e o planeta a suportá-lo.

MJC — No princípio do teu livro referes um pensador que marcou a década de 90 (e não só) e que é Francis Fukuyama. Achas que faz algum sentido falar do «fim da história», como ele a postulava?

AB — O ponto para que chamo a atenção na recordação um tanto intempestiva de Fukuyama é a importância de pensarmos hoje a tese do «fim da história» por uma perspetiva diferente daquela que ficou popularizada nos anos 90 do século passado. Não tanto a unicidade imposta de uma visão de mundo enquanto império que destroçou todas as alternativas, mas o da progressiva perda de um sujeito humano da história. Se lermos o título do livro até ao fim verificamos que aponta para esse lado esquecido da questão– “O fim da história e o último homem”. Não viveremos hoje uma ameaça de fim da história muito maior do que a que resultava politicamente da vitória (ou derrota, consoante a perspectiva) de uma visão de mundo? Com uma segunda angustiante questão: conservaremos por muito mais tempo potência subjectivadora suficiente para continuar a história? Ainda é possível? Estas questões exprimem uma preocupação: por importante que seja articularmos uma crítica a consensos que não deixam respirar a potência do dissenso, de nada nos vale brandirmos a dissensão como valor emancipatório se não nos garantirmos as condições de um sujeito político. Em parte, o que chamamos populismo é já uma dor dessa falta de sujeito político, que não o restabelece, porque não proporciona um sujeito de acção, mas apenas uma massa de reacção.

MJC — Uma das questões centrais do teu livro é «a aceleração do tempo» e, com isso, a perda do seu significado. É esta a grande condição da nossa experiência actual? E essa perda de significado não acarreta também uma perda da nossa experiência?

AB- É, e com preocupação, digo que é pior. O tempo acelerado é como uma vertigem que nos faz agarrar o presente como uma salvação, encurtando o horizonte de vista para o passado e para o futuro. Essa aceleração torna-nos menos capazes de ligar o presente ao passado e ao futuro, na constituição de uma temporalidade, que é a de cada um, mas também das comunidades, com memória e projecto, lastro e escolhas, a desenhar uma singularidade com significado. Tende, pelo contrário, a igualizar todas as experiências do tempo, a tornar-nos delas apenas pacientes, demasiado impotentes para sermos soberanos do nosso tempo. Num tempo acelerado, vivemos fragmentos de uma experiência que não é nossa mas somos induzidos a vivenciar. Vamos sendo menos sujeitos de experiência e mais objectos de experiências. E não de qualquer experiência, mas da proporcionada por uma indústria e mercado da experiência a que se dá o nome um tanto intransitivo de ‘sociedade hipermedializada’. Nem sequer é bem o caso de nós consumirmos experiência que poderíamos tomar por má. É antes essa experiência que nos consome a nós: os consumíveis da hipermedialização, a matéria prima extraída, o recurso explorado, são as nossas faculdades de atenção, de desejos (também eles industrializados), até de memória. Com isto não estou a dizer que devemos escolher a experiência nua e desistir da experiência medializada. Estou a dizer que é preciso articular uma crítica da indústria da medialização, não deixá-la suprimir a experiência nua, na verdade trazê-la para dentro da experiência medializada, até porque entre as duas a distinção é sobretudo analítica. O problema não está na medialização, mas na sua intencionalidade, no projecto de controlo e condução que nela se instala desinstalando um regime relacional com a experiência. Viver experiências como errantes, sem propósito pré-definido, o gozo do estar com as coisas sem as funcionalizar, fazer lugar nelas, brincar até, é um gesto relacional e de liberdade cada vez mais raro. Não creio que dizer isto me torne mais conservador do que inconformado.

Byung-Chul Han

MJC — Byung-Chul Han, na sua obra «A Sociedade do Cansaço» diagnostica os males da fragmentação do humano. Em que consiste essa fragmentação, do teu ponto de vista, já que também trabalhas esse conceito?

AB — Quando a nossa existência passa a ser guiada por fluxos poderosos, acelerados, que nos raptam a atenção e esse rapto é informado pelo melhor conhecimento das lógicas íntimas da atenção, acabamos por ser cada vez mais, no que fazemos, agimos e reagimos, não condutores mas conduzidos. Assim estilhaçamos. E não apenas por deixarmos de ser o referente da acção e da experiência, o seu sujeito. Também nos fragmentamos porque somos trabalhados por indústrias de desejo e de crenças que nos constroem modularmente, cada vez mais produtos de mercado, cada vez mais consumíveis.

Mas, embora me reveja bastante nas preocupações de Byung-Chul Han, não o acompanho por inteiro na crítica que faz ao sociólogo Hartmut Rosa (em “O Aroma do Tempo”) de que não é a aceleração do tempo social mas a sua fragmentação o grande traço da modernidade tardia. Não acompanho esta competição entre o que mais importa. Aliás, acabo de escrever com o sociólogo Renato Carmo um capítulo para uma publicação em que chamamos a atenção para o duplo facto de a fragmentação da experiência do tempo induzir, como uma fuga em frente, a sua aceleração e, por seu turno, a experiência acelerada do tempo só ser possível como experiência fragmentada.

E além do tempo vivido acelerada e fragmentadamente, temos o tempo da economia, devidamente juridificado, que é um tempo abstracto, reduzido à sua dimensão quantitativa, que conta as dívidas e os dividendos que fazem a desigualdade. Esse tempo sem temporalidade própria — mero cronos sem kayros — é um tempo desligado dos acontecimentos, que foi abstraído deles e tomado como uma realidade metafísica independente deles. É o tempo do Newton e também, à sua maneira, do Kant: a priori, independente da experiência. Esse tempo é, contudo, uma construção histórica, que foi condição para o começo da modernidade, quando o tempo das igrejas deu lugar ao tempo dos mercadores e das suas contas, como dizia le Goff. Esse novo tempo desligou-se dos acontecimentos justamente para os poder medir sem por eles ser perturbado. É um tempo sem fissuras, impassível, e, por isso, demasiado poderoso. Hoje, é o tempo das dívidas perpétuas, da desigualdade que atravessa gerações, e que assim sequestra a abertura do presente pelo lastro do passado. Juntando tudo, conclui-se que vivemos cada vez mais entre este tempo demasiado transcendente e aquele tempo imanente demasiado fragmentado. E tudo isto são construções sociais que podem ser questionadas — pela filosofia, pela antropologia — e desafiadas pela acção política.

O que procurei surpreender neste livro foi que este desligamento do tempo é, afinal, um padrão que envolve e ajuda a compreender muitos outros aspectos da nossa existência contemporânea. A pós-verdade, por exemplo, pode ser pensada como uma ideia abstracta de verdade, apenas retórica, que se desligou de qualquer contexto de justificação, para assim poder ser usada sem qualquer embaraço, sequer ético. Ou ainda, as emoções amplamente migradas para o circo acelerado das redes sociais mas cada vez com menos ar respirável numa vida concreta despovoada de sentir. Não faltam outros exemplos.

MJC — Chegámos ao teu conceito fundamental: o desligamento do mundo. Este conceito tem alguma relação com o conceito de désenchantement du monde, de que nos falava Max Weber?

Hannah Arendt

AB — Tem, certamente. Mas ainda mais com o conceito de alienação do mundo de Hannah Arendt. O desencantamento de Weber exprimia uma perda do laço mágico com o mundo. A alienação de que falava Arendt exprimia, além disso, uma fuga do mundo, resultado de uma aversão a deixar que o que é terreno, simplesmente dado, seja parte da condição humana, como se esta devesse ser, por inteiro, obra humana. Em que é que me proponho aprofundar a leitura de Arendt? Prolongando a sua reflexão em novas dimensões que aceleram a mesma tendência. Por exemplo, Arendt sublinha como a aviação civil apequenou o planeta ou como o lançamento do Sputnik foi entendido na época como uma libertação da prisão que era o planeta para as ambições da humanidade. Mas que dizer então de um correio desmaterializado e de uma comparência instantânea de uns diante dos outros, não importa a nossa localização no planeta, os nossos corpos para trás, tudo o que neles não controlamos, até o que não controlamos de nós mesmos para lá dos nossos corpos, quando nos encontramos cara a cara? Importa sublinhar que a questão não está nos avanços tecnológicos, nas possibilidades por eles proporcionados, incluindo as da desmaterialização física, mas a intencionalidade e o projecto que os anima. Evidentemente, a desmaterizalização tanto pode servir para ligar e fazer mundo — por Zoom, Skype, email, etc. — como para o evitar e, tanto quanto possível, removê-lo da condição humana. Por exemplo, quando vamos existindo cada vez menos num mundo lá fora e vamos mergulhando cada vez mais nos social media, quando nos relacionarmos sem encontro físico, e apenas esporadicamente com encontro visual ou de viva voz, defendidos por detrás de um avatar que apenas se exprime por texting, que relação desenhamos com o mundo? Não será um espectro de relação, que diminui a alteridade do outro, o abismo que o outro representa, a sua materialiade relacional? E não é assim por se querer o controlo pleno sobre as condições da relação, de que a aversão ao risco é apenas uma modalidade? O desligamento exprime não só uma separação face a um mundo, concebido como ameaça e risco, mas um deslassamento das realidades do mundo cada vez mais perspectivadas apenas como recursos, abstracções, espectros, tudo o mais, ontologicamente reprimido. E, finalmente, desligamento de nós mesmos, humanos, levados para a mesma perda de ligamento, materialidade relacional. O problema não está na desmaterialização física, mas na desmaterialização relacional que aproveita aquela para se fazer, eliminando ou, pelo menos comprimindo, a experiência do dado, do encontro com as coisas, não importa se naturais ou artificiais, se medializadas ou não.

MJC — Um dos factores mais importantes e que tu diagnosticas é a perda de religiosidade. Mas essa irreligiosidade dá origem, também a um paradoxo: por um lado, a incredulidade, por outro a proliferação de substitutos. O que pode substituir aquela que é a mais antiga característica do homem?

AB — Na sua etimologia, religião implica uma polémica antiga entre um sentido de submissão e obediência ao transcendente — tratava-se de tornar a ler (relegere) — e um sentido de pertença recíproca a um comum imanente — tratava-se de religar (religare). As duas leituras opõem-se diametralmente e mantiveram uma tensão histórica desde a Antiguidade na história do Cristianismo. Mas hoje, em tempos de desligamento do mundo, quando se fala em regresso do religioso, parece-me que a religiosidade tem crescido muito mais no primeiro sentido, da obediência, do mandamento, da fé sem crítica, da exclusão, do que no sentido de religamento, desde logo à experiência do mundo. Se falo de perda de religiosidade é neste sentido de religamento, o que não tem de envolver nenhuma religião, sobretudo se religião significar a restauração da obediência dogmática a valores e narrativas transcendentes. E se falo da necessidade de religar é porque essa parece-me a resposta ao caminho de evasão que a nossa história tem feito: evasão do mundo, evasão da relação com o mundo, evasão da relação. Como bem dizes, pululam os substitutos da incredulidade. Parece-me que mais do que aderir a algum credo, importaria libertar-nos da incredulidade da evasão do mundo. E que seria uma abdicação dos projectos de poder, controlo e subjugação do mundo e de quem o habita.

MJC — Retomas uma ideia do psicanalista Sami-Ali acerca de uma banalização progressiva nos nossos tempos. Em que medida ligas essa banalização com o teu tema do desligamento do mundo?

A psicanálise, e logo desde Freud, dedicou especial importância à experiência do estranho familiar, algo que nos inquieta e interpela entre a compreensão e a incompreensão, e que nos mantém em relação. Ainda nos anos 80, Sami-Ali fazia uma leitura da modernidade em que o familiar se convertia em banal precisamente pela perda dessa potência do estranhamento. O banal é um processo de literalização da realidade, cada vez menos tolerante à opacidade, ao sentido figurado, à incerteza da interpretação, à experiência do estranhamento. Porque tudo isto de algum modo escapa ao controlo, é território de liberdade. Se não lhe pusermos um travão, a obsessão da transparência há-de matar a democracia e a linguagem. Não é possível democracia sem confiarmos o direito a cada um ter as suas razões de voto sem lhe peçamos contas. Não é possível linguagem se a reduzirmos a um projecto de comunicação perfeita de informação. A erosão da parte não literal e opaca da realidade é bem a condenação a um real desprovido da realidade da imaginação, de significação, de ficção, de literatura. É como aplanar todo o real, impor-lhe uma orografia única, invariável, que não levanta obstáculos à igual condição de tudo como possibilidade de troca por um princípio de equivalências, tudo exposto à luz, sem sombras, recantos, nada. O Banal é a expressão do regime de funcionamento que criticamos habitualmente à economia mas que se tornou regime dominante da própria existência, em todas as suas dimensões. É realmente surpreendente como a lógica da produção económica se infiltrou até nas dimensões mais íntimas da existência.

MJC — Sobre as humanidades dizes que os limites do humano significam os limites das humanidades, parafraseando um pensamento de Wittgenstein. De que maneira ligas ambos, humanidades e humano?

AB — O humano não se define por uma natureza, biológica ou essencialista, mas culturalmente, através da experiência dos seus limites nas humanidades. Por isso, digo que os limites do humano significam os limites das humanidades, emulando a célebre proposição de Wittgensntein. Também podia dizer que a história do humano é a história das humanidades e que sem estas não haveria humano. Mas se é assim, então é preciso levar a sério a crise das humanidades. Elas subsistem, mas não podemos deixar de notar a sua compressão, a perda de relevância, cada vez mais periféricas, a progressiva substituição do sentido que eles conferem ao humano pelo conhecimento positivo que as ciências vão constituindo sobre o comportamento humano e pelo espírito da racionalidade utilitária, que tudo converte a uma lógica dos meios e dos fins, e tudo almeja traduzir em termos literais, sem resto de sentido. E também por isso é indissociável de um horizonte de fim do sujeito humano um horizonte de fim das humanidades, ou da sua centralidade. A resposta tem de passar por lutar pelas Humanidades e pela sua potência de continuar a propor os limites do humano, envolvendo-nos na sua criação e fruição soberanas. Aliás, acredito numa ideia de comunidade pós-humana que se reconhece assim em torno desta potência das Humanidades. A dado passo, na linha de Donna Haraway, lanço o desafio: let’s cyborg the Humanities.

MJC — Um dos capítulos mais sedutores do teu livro é a questão da desanimalização. Este estádio prepara-nos para uma nova era do pós-humanismo?

AB — A questão começa por ser humana. Acredito que o primeiro desligamento do mundo foi a nossa própria desanimalização. Obviamente, não no sentido de nos tornarmos de novo umas bestas, mas de não esquecermos a nossa ligação à existência animal. O primeiro desligamento do mundo é o desligamento que a humanidade fez da sua condição animal. A história da cultura, pelo menos da cultura ocidental, e de forma pronunciada na modernidade, é uma história de ruptura com o mundo natural. Curiosamente a ciência moderna proporcionou conhecimento dos laços evolutivos, mas, ao mesmo tempo, radicalizou, nas suas aplicações técnicas, práticas de desnaturalização da natureza e de desanimalização dos animais, tudo reduzido à forma “meio”. Ora, é um erro pensar-se que o que devemos fazer é humanizar os animais. É precisamente o contrário: devemos não os desanimalizar e devemos também não nos desanimalizar. Sinto, aliás, que há uma batota intelectual quando se diz que a natureza como a conhecemos é já um híbrido com a cultura e daí se concluí que, por isso, a natureza é tão apropriável como a cultura. Na verdade, é bem o contrário, a apropriação cultural deve ser reflectida à luz de uma ecologia do ligamento.

MJC — Entre os fracassos da modernidade que diagnosticas, o terceiro e último, ocorrendo já no século XXI, é que «a pessoa se descobre hoje reduzida ao estatuto de náufrago frágil, abandonado na sua ultraindividualidade» (p. 154). Este estatuto deve-se a quê?

AB — Os fracassos da modernidade foram fracassos da razão em realizar o ideal moderno da autonomia. Depois dos fracassos da razão instrumental, que na verdade tudo explora transformando tudo em meio para um fim, e da razão total, que na verdade tudo procurou mobilizar proclamando que tudo é parte de um todo maior, ambas alienando autonomia com violência, mais recentemente fracassa também a razão modesta que tudo relativizaria como resposta às expressões anteriores de uma racionalidade exacerbada. Mas há uma falsa modéstia nesta razão. Abandona cada um à sua autoafirmação individual, comprimindo a esfera da autonomia ao perímetro da sua existência individual. Mas mais do que um risco que se adivinha, já somos náufragos da individualidade, se entendida como expressão e cultura de uma singularidade. Nesse sentido, a individualidade, com a sua marca de singularidade, e o que nela resiste a ser massa, é uma vítima evidente do individualismo, que é como que um dispositivo de conversão de cada indivíduo em fábrica, de si mesmo, simultaneamente, recurso e explorador.

MJC — Do que é que estamos a falar quando referimos o transumanismo e o pós-humano? Já nos encontramos sob esse paradigma?

Fotograma do filme «Blade Runner»

AB — O pós-humano traz debates tremendos para cima da mesa, além de ser uma palavra que exprime noções muito diversas. Certamente, o pós-humano designa de algum modo uma era que sucede à do humano biológico, mas o que se entende exactamente por uma e por outra? Como interpreto — e isto é uma escolha que faço — o sujeito humano biológico começa quando a transmissão do conhecimento deixa de depender de um único suporte material, o nosso património genético, e passa a fazer-se culturalmente. A história começa com a cultura, mas o conhecimento vem de trás, precede-a em muito. A história evolutiva é uma história de conhecimento adquirido, simplesmente não por humanos nem pelos meios humanos. O pós-humano exprime uma revolução de magnitude comparável à do advento da cultura e da história. Acontece quando a cultura deixa de depender de um único sujeito material de conhecimento, nós mesmos. E isso está a acontecer no tempo das nossas vidas, mais década menos década, mais século menos século. A questão que me interessa não é a de defender um exclusivo humano sobre a cultura e a história. Não duvido de um futuro com humanos, cyborgs, Roy e Rachel (do Blade Runner) e Hari (do Solaris), até formas desmaterializadas de existência. A questão que me interessa e que considero o grande desafio do nosso tempo é esta transição pós-humana não ser um lugar de desligamento do mundo, mas, pelo contrário, de religamento. Estou com as grandes personagens pós-humanas da ficção científica que se reivindicam humanas pelo sofrimento de não serem biologicamente humanas. Até porque não é diferente da luta tantas vezes repetida na história de trazer para a humanidade aqueles que foram excluídos.

No livro quis sublinhar com bastante ênfase que vivemos um tempo em que temos a sorte, ou o azar, de se encontrarem estas duas grandes tendências, uma do tempo histórico, outra de um tempo mais longo, quase evolucionário. Se o passado foi uma história de desencantamento, alienação, desligamento, acho que os empenhos que importam têm de ser que esta não se torne também a história do pós-humano.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.