Revista Caliban issn_0000311

Somos uma revista de letras, ideias e artes.

Follow publication

O silêncio e o sopro: sobre a morte em Clarice Lispector

--

Felipe Castelo Branco

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o.
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar de morte?

O poema é de João Cabral de Melo Neto, batizado de Contam de Clarice Lispector (NETO, 1985). No poema, Clarice é quem convoca a falar da morte e, ao mesmo tempo é quem ri da morte, do que há de sério em morrer. Quando o palavrório se transforma em silêncio, é a palavra sobre a morte que Clarice clama. Celebramos, hoje, os 40 anos da morte de Clarice Lispector. Celebramos a morte de uma das mais notáveis artistas brasileiras e, sobretudo, a morte de uma autora que pensou a morte. Aceito, portanto, nesta celebração, o convite de Clarice Lispector traduzido no poema de João Cabral de Melo Neto: falar da morte sobre um fundo de silêncio.

Talvez nenhuma obra de Clarice Lispector tenha um potencial mais fecundo em tocar o problema da morte do que aquela que, curiosamente, carrega em seu título uma menção à vida. Em Um sopro de vida (pulsações), a escrita de Clarice surge sob uma forma nova, interrogando o próprio ato de escrever, a criação, o leitor. Ao mesmo tempo em que este é um livro que tematiza vida e morte, que permanece no limiar entre palavra e silêncio, Um sopro de vida é um trabalho onde o formal possibilita um tratamento do tema da morte que se afasta das metafísicas tradicionais, dos clichês, do já pensado. Talvez, do ponto de vista formal, Um sopro de vida seja uma espécie de livro do método tardio de Clarice Lispector. Como minha segunda hipótese acerca desta obra, buscarei defender ao longo deste trabalho, que o interesse da psicanálise em Um sopro de vida deveria se inscrever prioritariamente na capacidade da autora em operar nesse limiar entre palavra e silêncio, de colocar a finitude em obra. Nesse sentido, uma leitura psicanalítica de Clarice deve ter o cuidado de evitar uma análise personalista da autora (análise que o campo formal desta obra visa justamente interditar, como veremos), devendo evitar igualmente produzir uma sintomatologia que se sirva da potência criativa de Um sopro de vida como trampolim para uma análise selvagem. Na busca de evitar esses descaminhos, entendo que seria necessário pensar dentro do registro de uma espécie de estética psicanalítica da obra de Clarice Lispector, de modo a abrir um caminho bi-implicativo de pensamento que conecte a psicanálise à literatura clariceana, sem prejuízo a um dos polos.

Psicanálise e estética

O que seria, nesse contexto, uma estética psicanalítica? A estética se configura como um campo de pensamento que surge de forma disciplinar quando modernamente a produção de obras de arte se torna independente de ações que visam fins — fala-se, nesse contexto de autonomia da obra de arte — que permaneciam ligadas até então a campos como a educação moral, o louvor religioso, a política, etc. Assim sendo, a produção de obras de arte, desvinculando-se de sua função de utensílio tributária de outros campos, passa a ser capaz de fomentar reflexões ligadas intrinsecamente a própria obra ao fazer artístico e a seus desafios, paradigmas e suas novas rupturas históricas. A estética como campo delimitado vai paulatinamente fundir em sua problemática duas regiões que a tradição ocidental entendia como antagônicas: em primeiro lugar ela parte do campo do sensível, isto é, do campo da percepção e constituição sensorial dos objetos — ou o que poderíamos chamar do perceptum — campo onde, segundo essa tradição, o pensamento racional não é capaz de penetrar, sendo o domínio privilegiado dos afetos. Em oposição a este campo do sensível, se constitui o campo do entendimento onde as categorias lógicas do pensamento racional operam. O entendimento diz respeito, portanto, ao campo onde a tradição moderna ocidental entende que o pensamento se constitui propriamente.

Assim, a estética se propõe desde sua fundação a uma tarefa a princípio paradoxal no interior das categorias tradicionais da reflexão ocidental: ela propõe pensar o próprio campo do sensível, esse campo dominado pelos afetos e por uma inteligibilidade confusa, valendo-se ao mesmo tempo das categorias do pensamento racional oriundas do entendimento (que lhe são naturalmente alheias). Essa tarefa encontrará seu apogeu no romantismo alemão, corrente da qual Freud é um dos mais notáveis herdeiros. No contexto do romantismo, a disciplina estética passa a designar, não o campo da sensibilidade, dos afetos e dos objetos sensíveis (como é o caso na estética transcendental de Kant), mas um tipo de juízo sobre a arte e sobre o sensível que parte de problemas tributários da própria produção e recepção de uma obra.

Nesse sentido, o campo da estética alarga radicalmente e de maneira ousada o que se entende, na tradição ocidental, como sendo o pensamento. Nessa tradição, como vimos, o pensamento está ligado às categorias lógicas do entendimento. No campo da estética, por outro lado, passa a se reconhecer que a obra de arte é, ela própria, um objeto de pensamento a despeito do fato dela permanecer mergulhada no campo da sensibilidade: a obra passa a ser entendida como pensada e como pensável — projeção do pensamento no sensível. Ao contrário do processo de fabricação de um utensílio, o processo de produção de uma obra enfrenta questões que a inscrevem em uma reflexão formal, em correntes de produção artística, temática ou de “conteúdo”. Assim, a estética é um pensamento sobre o pensamento da arte, um pensamento provocado pela arte que se vale de um arsenal teórico múltiplo, mas que não necessariamente visa o próprio campo artístico como alvo de suas produções. É nesse sentido que a arte ganha espaço no campo de pensamento como uma espécie de pensamento fora de si mesmo, de pensamento objetivado ou de pensamento que se aloca fora do estrito campo lógico das categorias do entendimento ou da razão.

É precisamente nesse sentido que a psicanálise se encontra a vontade ao se debruçar sobre uma obra artística. É preciso admitir que a psicanálise é igualmente um pensamento sobre o pensamento que se inscreve neste campo alargado da concepção de pensamento que estética e psicanálise compartilham. Estética e psicanálise, nesse sentido, se avizinham como experiências que fundam um novo domínio do que significa o pensar. Assim, a estética inaugura não apenas um campo de pensamento sobre a arte, mas, igualmente um domínio específico que assume uma nova configuração para o pensamento, em síntese: a estética entende haver um campo de pensamento que se inscreve fora do estrito limite do pensamento racional motivado por categorias lógicas. Como não reconhecer aqui a despudorada vizinhança entre o gesto estético do romantismo e o pilar teórico freudiano que faz do inconsciente um pensamento — um pensamento inclusive dotado de uma lógica -, embora este seja um pensamento alheio ao pensar categorial racional: há, como Freud afirma desde a fundação da psicanálise, um pensamento inconsciente embora este seja um pensamento sem contradição, sem negação, portanto, desmunido dos elementos que compõe os pilares do pensamento racional desde Aristóteles. Assim, em relação ao inconsciente trata-se de um domínio de pensamento que não produz juízos lógicos e não carrega a marca da finitude. Assim como o pensamento estético, o pensamento inconsciente opera a partir dos afetos que são comportados pelos gestos de deslocamento e condensação significantes.

A questão formal como abertura inconsciente

Habitualmente, quando pensamos os laços possíveis entre a psicanálise e o campo artístico, as vicissitudes de uma satisfação pulsional não sexual e, portanto, sublimatória, se oferecem como recurso primeiro e como possibilidade de interpretação do fazer artístico. Não é este o trabalho que me interessa empreender aqui. Me oriento aqui a partir de uma espécie de apelo que Lacan faz a seus seguidores em seu estudo sobre Hamlet, publicado na revista Ornicar?, que diz respeito à posição dos psicanalistas diante de uma obra artística, eu o cito:

[…] o modo sob o qual uma obra nos atinge da maneira mais profunda, isto é, no plano do inconsciente, consiste em um arranjo em sua composição. Esse é o outro segurador ao qual peço que vocês se pendurem (LACAN, 1982, p. 15).

Ora, o que Lacan afirma, em ultima instância, nessas linhas é precisamente a capacidade do aspecto formal de uma obra sustentar a apresentação do inconsciente na arte. Um sopro de vida é uma obra de caráter explicitamente moebiano, é uma espécie de ficção que faz operar uma ficcionalização da própria vida e da morte. Neste livro, o leitor é convocado a mergulhar em um trabalho que se alimenta do esfumaçamento em relação ao limite entre a obra e a biografia; a autoria e a criação ou, em uma palavra: trata-se de tornar problemático aquilo que a posição confortável e pré-concebida de um leitor passivo consideraria como dizendo respeito à polaridade entre o texto como representação e o “fora” do texto (incluindo-se aí a vida, a morte “reais”, etc).

Um sopro de vida foi publicado postumamente em 1978. Clarice, antes de concluir seu livro, descobre que estava gravemente doente. No entanto, ela jamais deixou de escrever. Na manhã do dia de sua própria morte, Clarice ditava seu texto a sua antiga amiga Olga Borelli. A autora de Um sopro de vida escreveu até o último dia de sua vida. Em razão do seu grave estado de saúde e do estágio avançado de sua doença, a escritora lega a Olga Borelli um conjunto de anotações esparsas e sem forma definida. Segundo Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, o caráter póstumo do livro, em partes escrito no encaminhamento de Clarice para a morte, compõe inapelavelmente a própria forma da obra, uma vez que o texto foi, cito Moser, “não apenas publicado, mas também, em certa medida, escrito após a morte de Clarice”. Olga Borelli foi responsável por organizar os manuscritos e estabelecer a sequência dos capítulos, produzindo ainda acréscimos e subtrações ao texto clariceano. Moser comenta que Borelli deliberadamente suprime uma passagem do texto, que possivelmente seria capaz de provocar mais sofrimento à família de Clarice. Na passagem suprimida, o Autor, um dos personagens do texto, pedia a Deus que condenasse a segunda personagem do livro, Ângela Pralini, com um câncer do qual ela não fosse capaz de se livrar: trata-se da mesma doença que havia tirado a vida de Clarice Lispector e da qual ela própria não conseguiu se livrar, enquanto redigia o texto.

Texto fragmentar, não linear, escrito a duas mãos de modo que retroativamente o sentido da obra se produz a partir da morte de uma dessas mãos. O jogo moebiano que atravessa a obra não cessa, no entanto, apenas nessa escrita a duas mãos. Clarice, repentinamente se sentindo tão próxima da morte, sabia que talvez esta seria a última vez em que praticaria uma atividade a qual ela havia dedicado toda sua vida: escrever livros. Essa escritora que tanto nos havia brindado com belas passagens sobre vida, amor e criação, nos ofertava agora o sublime testemunho da angústia diante da eminência de sua própria morte. Mas a morte, em seu texto, não é apenas o fim que espreita sua vida, mas também o silêncio que se avizinha a cada palavra: Clarice faz de seu texto a opacidade entre o fim e o reinício de cada gesto de criação, uma espécie de pulsação criadora que o silêncio que se avizinha à palavra, e a morte que se avizinha à vida, requisitam. Cito aqui as palavras marcadas no livro:

Será que estou com medo de dar o passo de morrer agora mesmo? […] No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia […] estou caindo no discurso? […] eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar (LISPECTOR, 1999, p. 21).

A bela reflexão de Clarice Lispector sobre o limite e a finitude, permanece ligada a uma espécie de confissão sobre o ato de criação literária, sobre o laço entre o criador e seus personagens, não apenas do ponto de vista do “conteúdo” de sua produção. A exploração do que chamei aqui de caráter moebiano de seu texto, leva Clarice Lispector a problematizar ainda outras formas de denegação da finitude que a própria aparelhagem literária oferece como recurso ao autor e ao leitor. Em Um sopro de vida as supostamente nítidas distinções entre autor x personagem, personagem x obra ou autor x obra tornam-se problemáticas e indiscerníveis. Como denuncia a própria ação de supressão que Borelli empreende sobre o manuscrito de Clarice, a obra mantém em tensão uma questão que a resposta nos será recusada. O leitor está lendo a confissão literária de uma autora próxima da morte? Seria esta uma obra autobiográfica ou uma obra de ficção? A morte dos personagens do texto é a morte de Clarice?

Ao longo do próprio livro, aquele que escreve — inicialmente alguém indefinido — sem assumir nenhuma autoria, ao mesmo tempo rejeita a ideia de ter produzido um livro autobiográfico. Diz o texto:

Eu que apareço nesse livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos […] o que me importa são instantâneos fotográficos das sensações — pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! (LISPECTOR, 1999, pp. 20, 21).

Quem quer que ocupe o lugar da voz do texto, rejeita a posição pressuposta de uma verdade não-ficcional. Antes, Um sopro de vida pede ao leitor que não espere o óbvio (“olha o passarinho!”), mas que mergulhe em instantâneos de puras sensações. Assim, a linha que divide o espaço entre criador e personagem se torna frágil e movediça. Mas, ao mesmo tempo, alguns elementos nos levam a confundir Autor (o primeiro personagem do livro) e “autora” (Clarice Lispector). Entre alguns exemplos, podemos destacar que Clarice sempre se refere ao personagem inicial de seu livro no masculino — esse estranho personagem sem nome, batizado apenas com o título de ‘Autor’. Contudo, em algumas raras ocasiões, Clarice o faz falar de si mesmo também no feminino. E o que é ainda mais impressionante: além da própria escritora Clarice Lispector se utilizar de falas muito semelhantes as de seu “Autor” em uma entrevista concedida a Affonso Romano de Sant’ana algum tempo antes de sua morte, ela põe na boca desse personagem a lembrança de alguns trabalhos que ele haveria escrito: todos livros e contos escritos por ela própria. Em Um sopro de vida, talvez Clarice Lispector seja a criadora e também o criado. O personagem Autor, ao tentar sair de sua condição de silêncio, intenta dar vida a uma outra personagem que ele criará — ou, diríamos, ele tenta produzir um sopro de vida sob um fundo de silêncio. É nesse contexto que nasce a segunda personagem do livro, batizada de Ângela Pralini. O autor é personagem e sua criação o recria. Pralini tem igualmente traços de Clarice, ainda que se ligue inapelavelmente ao Autor — ao mesmo tempo em que busca se separar e ganhar “vida própria”. Talvez Clarice se ligue a sua criação, assim como o Autor se liga à Pralini. E talvez, com isso, Pralini se ligue novamente à Clarice. O texto o confessa, eu cito:

Ângela é o meu personagem mais quebradiço. Se é que chega a ser personagem: é mais uma demonstração de vida além-escritura como além-vida e além-palavra (LISPECTOR, 1999, p. 38).

Nessa rede de relações que a forma do texto produz, não há espaço para polaridades meramente binárias como dentro e fora, vida e obra, morte e vida, ficção e realidade, autobiografia e criação. A morte de Clarice Lispector, apesar de tudo, não finda a composição desse livro. Em sua última página escrita, o livro se encerra com a seguinte passagem:

E agora eu sou obrigado a me interromper porque Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive […] [entre aspas] “Eu… eu… não. Não posso acabar.” Eu acho que… (LISPECTOR, 1999, p. 159).

Paradoxalmente, o fim da obra soa como uma recusa do fim (“Não posso acabar”) e, no entanto, o livro se encerra com uma frase incompleta, interrompida por um silêncio que a torna inconclusiva (“Eu acho que…”). De fato, trata-se não de uma experiência descritiva de finitude, mas da invasão de um real que torna impossível dizer o fim, senão de sofrê-lo (“instantâneo de sensações”). O poder dessa passagem final se torna ainda mais significativo na medida em que nós, de uma pacífica posição de leitores, passamos a fazer parte, retroativamente, do sentido da obra na medida em que aquele que lê essas palavras sabe — algo que a própria autora foi capaz de performativizar, mas não de saber -, que Clarice foi, de fato, interrompida na produção de sua escrita e que a autora jamais retornará para concluir seu pensamento e ser capaz de pontuar o fim de sua frase, sustentando uma dimensão de não-saber onde se espera uma conclusão definidora. A genialidade de Clarice, a meu ver, se mostra em toda sua força e sua capacidade de entrega à escrita aqui. Por um lado, a recusa do lugar do leitor passivo, em nome de um leitor que trabalha na produção de um espaço de não-saber, cito o texto:

Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional (LISPECTOR, 1999, p. 21).

Por outro lado, se Um sopro de vida se limitasse a falar da morte em uma simples decisão autobiográfica, ou ainda se produzisse uma narrativa linear sobre a morte de um dos personagens, o resultado seria mais um texto que se somaria a obsessão ocidental com o tema da morte, que atravessa desde as escatologias medievais até o existencialismo (seja ele cristão ou ateu). Dito de outro modo, se Clarice aceitasse produzir um texto sobre sua própria morte ou sobre a morte de um de seus personagens, sua produção teria nos legado um escrito sobre a morte que a reduziria a um simples fait divers ou, para falar com Heidegger, teria tratado da morte como um impessoal, reduzida ao “morre-se” banal da cotidianidade. Nesse sentido, Clarice não seria Clarice segundo o poema de João Cabral de Melo Neto, citado no início desse trabalho. Se Um sopro de vida dissesse respeito apenas a um texto “sobre” a morte, a escrita clariceana estaria mais próxima do jogo de futebol do poema de João Cabral, que requisita sua incessante elaboração, com seus elementos já previamente conhecidos, em sua reconstituição gol a gol.

Mas Clarice Lispector não se sustenta em uma “posição tradicional” de autor (nem mesmo é o caso com seu personagem “Autor”). O caráter moebiano do texto de Clarice aponta para um pensamento onde não há o ponto de parada, onde o basteamento se produz de maneira compartilhada com o leitor, onde o sentido não se produz definitivamente: uma escrita que nos recorda a cada momento… não há Outro do Outro! Clarice fala da morte incessantemente, não para produzir um dizer sobre a morte — e, assim, buscar uma ontologia da morte — mas para fazer da palavra “representativa” uma abertura para o não-saber. Ainda que possamos nos orientar no texto, não é possível dizer se a voz que nos clama é a voz da pessoa de Clarice, do Autor (como personagem), do personagem Ângela Pralini ou de Borelli. Nem mesmo é possível determinar se há necessária separação entre todos esses elementos. Não há Outro do Outro, há um furo no saber. Clarice não escreve para informar algo a seu leitor, todas as camadas envolvidas na escrita do texto ocupam um ponto de não-saber que se abre para o saber não-saber inconsciente. Essa vitória da produção formal como apresentação do inconsciente, Jacques Rancière batizou de palavra do sintoma:

À palavra viva que regulava a ordem representativa, a revolução estética opõe o modo da palavra que lhe corresponde, o modo contraditório de uma palavra que ao mesmo tempo fala e se cala, que sabe e não sabe o que diz. Ou seja, a escrita. Mas ela o faz segundo duas grandes figuras [que a tradição faz corresponder] à duas formas opostas da relação entre pensamento e não-pensamento. E a polaridade dessas duas figuras descreve o espaço de um mesmo domínio: o da palavra literária como palavra do sintoma (RANCIÈRE, 2009, p. 35).

Fica aqui meu humilde reconhecimento e homenagem ao celebrar uma autora que fez do silêncio (“abre a boca um silêncio enorme”, no poema de João Cabral) um sopro (suas pulsações do livro “Um sopro de vida”), produzindo de maneira inigualável a palavra do sintoma, a vizinhança entre finitude e obra.

Bibliografia:

ARISTÓTELES. Le livre Gamma de la Métaphysique. in: CASSIN, B; NARCY, M. La décision du sens. Paris: Vrin, 1998.

DUARTE, Pedro. Estio do Tempo. Romantismo e estética moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I e II. Petrópolis: Vozes, 2000.

LACAN, Jacques. Hamlet. in: Ornicar? Bulletin périodique du Champ Freudien. n. 25 ed. Paris: Seuil, 1982.

______. Le séminaire, livre VII — l’éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986.

______. Le séminaire, livre X — l’angoisse. Paris: Éditions du Seuil, 2004.

LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

MOSER, Benjamin. Clarice,. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

NETO, João Cabral de Melo. AGRESTES (Poesia — 1981/1985). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: 34, 2009.

SCHILLER, Friedrich von. A Educação Estética do Homem. São Paulo: Iluminuras, 1995.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

No responses yet

Write a response