O olho da baleia e outros poemas
Homero Aridjis (1940) é um poeta mexicano, novelista, e activista ecológico, reconhecido como uma das vozes cimeiras da poesia do seu país, tendo sido aliás o primeiro Presidente Internacional do Pen Clube, de 1997 a 2003.
Aridjis tem 48 libros de poesia e prosa, aguns deles traduzidos em quinze idiomas. Mereceu o elogio de Henri Michaux, Yves Bonnefoy, Kenneth Rexroth, Luis Bunuel, Le Clezio e Alberto Manguel, entre outros, num rol que assusta.
Homero Aridjis foi-me recomendado por Jorge Urrutia, um discreto mas excelente académico e poeta espanhol, o que me levou a adquirir em Cáceres, em 2003, o volume Ojos de Otro Mirar, que compila 14 livros anteriores do poeta mexicano.
A motivação para estas traduções surgiu de uma coincidência engraçada. Tendo vindo jantar a minha casa, em Maputo, o escritor Helder Macedo, espreitou a minha estante de poesia e apontando a lombada larga do livro disse-me, Que engraçado teres o Aridjis, vou estar com ele para a semana, em Londres. Por acaso, tenho na gaveta algumas traduções de poemas dele para afinar, respondi. Então se afinares e não desafinares muito, reagiu o Helder, manda-mos… Podia ser uma surpresa agradável.
Como não podia deixar de ser, dada a natureza benta do dia, foram estas versões baptizadas por três copitos de Audácia, um buonissimo vinhito tinto sul-africano que o Helder teve a gentileza de cá deixar.
Que o Papa Francisco me tenha conduzido a mão.
AUTO-RETRATO AOS CINQUENTA E QUATRO ANOS
Sou Homero Aridjis,
nasci em Contepec, Michoacán;
tenho cinquenta e quatro anos,
esposa e duas filhas.
Na sala de jantar de minha casa
tive os meus primeiros amores:
Dickens, Cervantes, Shakespeare
e o outro Homero.
Num domingo pela tardinha,
passou o Frankenstein num cinema de bairro
e, de mansinho, na margem de um ribeiro
deu a mão a um menino, que era eu.
O Prometeu formado com retalhos humanos
seguiu o seu caminho, mas desde então,
por esse encontro com o monstro,
são meus o verbo e o horror.
BLACKOUT
As coisas que podem acontecer
durante um apagão
pode alguém resvalar
num breu sem remédio
borrando-se de supetão
a película da consciência
ou pode sentir nascer o nada
na parede branca de Deus
enquanto no ar se tange
uma harpa perfeitamente negra
e no horizonte da mente
se vê um incêndio sem cor
ou num espelho se vislumbra
o rosto primeiro da mãe
desgarrado em nossas mãos
como um cão atropelado
ou alguém ver avolumar-se
uma sombra plantada
numa rua vazia
às duas da tarde.
MORREU O ÚLTIMO CAVALO
Com as patas quebradas
por caminhos de pedra,
morreu o último cavalo.
Calou-se com ele o escol,
o ranger das rijas botinas,
o viés matreiro sob o chapéu negro.
Cegou nos seus olhos a distância,
o sol afogou-se na noite
e estatelou-se o vento na areia.
Ali, com ele, finou-se a história,
o galope do herói, o trote quotidiano.
Quebradas a espada e as cotas.
Morreu o último cavalo.
Com ele o homem,
o seu último ginete.
DIÁRIO SEM DATAS, VII
2 DELA SÓ FICOU A MÁSCARA
Dela só ficou a máscara.
Debaixo da máscara
uma cara apagada.
Debaixo da cara
emaranha-se a luz, destroçada.
UM DIA O HOMEM ESQUECE
Um dia um homem esquece
um mar um continente e um planeta
esquece as feições de seu pai
e as intricadas linhas da sua mão
esquece o fulgor dos seus olhos noutros olhos
e o som da água na sua cabeça
esquece o timbre da sua voz e o ruído do sonho
que desperta noutros mas não a si mesmo
esquece o traje e a casa que habitou
a rua e a cidade que de si já têm uma lembrança esbatida
esquece o amor as epifanias a morte
o espelho que se esqueceu de devolver a sua imagem
um dia um homem esquecer-se-á de si mesmo
esquecerá o olvido e o que isso significa
HIMENEU
Correu numa noite de Junho
o meu encontro com Marilyn Monroe.
Vi-a na açoteia de um edifício,
nua.
Os longos dedos da chuva
harpejavam o seu corpo.
Peitos planturosos que animavam
aquela rua da colónia Santa Maria.
Com mãos invisíveis toquei-a, sabendo-
-a ausente de seu retrato.
Com olhos ávidos amei-a, sabendo-
-me ninguém sob a copiosa chuva.
SOBRE O LUGAR
III
Não pode haver dois corpos
num mesmo lugar ao mesmo tempo,
mas sim dois tempos e dois lugares
ensimesmados num corpo.
V
O lugar não se desloca com o corpo
permanece no seu lugar
ainda que às vezes
o meu lugar seja o teu corpo.
VII
O problema de Aristóteles foi o de saber
se o lugar mesmo ocupava lugar;
o problema da morte foi o de ocupar
o lugar de Aristóteles.
IX
No amor o lugar não se move
quando o corpo invade o centro;
o lugar retrai-se quieto
e só o tempo se move no lugar.
A TIA HERMOÍNE
Sempre me inquietou a história da tia Hermíone,
perdida, segundo o meu pai, um ano na Jugoslávia;
extraviada, segundo o meu tio, no barco
que a trazia de Esmirna pelo Mar de Ninguém.
Os sobreviventes confundem os caminhos dos mortos
com os seus próprios,
e não sabem já que sonho, que recordação é a de quem.
Nunca vi o rosto da tia Hermíone,
mas perturba-me sabê-la perdida na confusão do passado,
sem possibilidades de perguntar-lhe a ela o que se sucedeu,
aonde se perdeu e como a reencontraram.
Ou ter-se-á perdido afinal num tempo sem calendários,
num mar sem ondas e num barco sem paredes,
pela secreta decisão de escapar daqueles que a amavam?
Não lhe discorria que enquanto estivesse viva,
por longe que estivesse nesse País Sem Nome,
sempre haveria de voltar ao barco de refugiados
que é o presente, que é este planeta?
Encontraram-na um dia, isso é seguro,
mas se se encontrou a si mesma alguma vez, ninguém o conta:
um dia desapareceu do mundo e esfumaram-se as anedotas.
OS ANJOS FITAM-NOS
No quarto,
eis-nos fitados pelos anjos
ou melhor, perscrutam-nos,
como se houvesse gato escondido
nos nossos olhos.
E beijam-nos, os anjos,
com lábios
tomados por um invencível
impostergável amor.
E medem-nos o corpo,
os anjos, tal como quem
toma as medidas
da mortalha necessária.
Os anjos observam-nos
como se fôssemos já seus
com os dentes amarelos
da sua cara famélica.
Lá fora,
um ciclista parecido comigo
atravessa a noite.
ARS POÉTICA
Sou Petrarca.
Há um Horácio no meu sonho,
recito-lhe os versos na penumbra.
Sou Petrarca,
afeiçoou-se um Horácio à minha mão,
escrevo os versos desse sonho.
Poetas espectrais nos corredores do tempo
dizem palavras alheias que criam suas.
A cabeça é uma câmara de ecos.
Há uma inteligência fora da mente.
Declinam as tardes do tempo
vejo que chegam as borboletas do Averno.
Sou Petrarca.
Em indo-se o Horácio
o poema é meu.
DIÁRIO SEM DATAS, XII
7. ERÓTICA
Tu despertaste a fome que te devora.
15. AUTO-RETRATO RECÉM NASCIDO
Um tecto
um leito
um peito
e eu
nadando na novidade de mim mesmo.
O OLHO DA BALEIA
E Deus criou as grandes baleias,
lá, na Lagoa Santo Inácio,
e cada criatura que se move
nos músculos sombreados da água.
E criou ao golfinho e ao lobo marinho,
à garça-real e à tartaruga verde,
e ao pelicano branco, à águia-real
e ao corvo-marinho de dupla crista.
E confiou Deus às baleias:
“Frutificai e multiplicai-vos
em actos de amor que visíveis
sejam desde a superfície
pelo intervalo das bolhas,
pelo reclinar de uma barbatana,
enleada a fêmea por baixo
pelo longo e preênsil pénis;
pois há lá maior esplendor para o gris
do que quando a luz o prateia!?
Vede como a sua respiração profunda
é uma exalação!”.
E Deus viu que era bom
que as baleias se amassem
e brincassem com as suas crias
na lagoa mágica.
E disse então:“
Sete baleias juntas
fazem uma procissão.
Cem fazem um amanhecer”.
E as baleias sairam
a espreitar a Deus entre
as estrias dançantes das águas.
E foi Deus visto pelo olho de uma baleia.
E assim as baleias povoaram
os mares da terra.
E foi a tarde e a manhã
do quinto dia.
(Depois de uma viagem à Lagoa de Santo Inácio, 1 de Março de 1999, Poema dedicado a Heamus Heaney)