O nascimento de uma poeta

Samuel F. Pimenta
Revista Caliban issn_0000311
5 min readApr 27, 2024

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Imagino que será justo dizer que um poeta nasce para o mundo quando publica o seu primeiro livro. Porque nascer tem essa dimensão da travessia, de algo que irrompe da escuridão para vir à luz, e um poeta só vem à luz quando sai do seu mundo de sombras, gavetas e folhas rasgadas para se expor. É esse o momento em que sabemos que existe.

“Tosca Lyrica” não é a primeira publicação de Eduarda Gil, tem vindo a divulgar a sua poesia de forma fragmentária e esporádica, em revistas e antologias. Mas “Tosca Lyrica” é a sua obra inaugural, a primeira coluna do que será, espero, o seu esplendoroso templo bibliográfico.

Se até aqui fomos podendo ler poemas de forma isolada, que já davam sinal da envergadura da poeta diante de nós, esta é a primeira vez que podemos submergir totalmente na sua voz e nas suas propostas, num conjunto de cinquenta e quatro poemas, repartidos em três partes, “Arder até o ar doer”, “Tosca Lyrica” e “Bioversos”, e ainda num “Intróito” e num “Epílogo”. “Um testemunho da procura de um reino que já ninguém encontra”, segundo a autora, referindo-se à ideia defendida por tantos poetas em que os poemas habitam “num reino místico” onde são colhidos “como frutos das árvores”.

Eduarda Gil diz duvidar de ter encontrado esse reino, o mesmo lugar de onde se escutam os poemas, como refere Sophia de Mello Breyner Andresen na sua Arte Poética IV: “O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto”. Contudo, acredito que a autora de “Tosca Lyrica” encontrou esse reino místico, embora não queira dizê-lo. E faz bem em não o dizer, cumprindo com as antigas superstições que existem sobre esses lugares do Além. Afinal, há quem diga que, se se disser que estivemos do outro lado, quebra-se o encanto e jamais voltaremos a entrar.

Nesta teoria de que os poemas existem como “um elemento do natural”, voltando a citar Sophia, a escuta é o labor pedido ao poeta e a espera é indissociável para se poder escutar o poema todo. É por isso que sei que Eduarda Gil entrou nesse reino onde lhe foi pedido que esperasse para poder escutar os poemas deste livro. Esse é um exercício de tempo, por vezes de anos, como sei que aconteceu com “Tosca Lyrica”. Esperar não significa que se fique imóvel, como se bastasse colocar um búzio no ouvido para ele nos soprar os versos do poema. A espera é povoada de ansiedades, ruturas, perdas, dúvidas, passos, avanços, recuos, gestos e vozes, ela não é estática, imutável nem perfeita. É viva, como uma anémona que se expande e retrai num recife de coral. Uma dança. E a poeta dá-nos sinal disso na primeira parte do livro, “Arder até o ar doer”, em poemas como “Anémona”:

“Nado.

Imagino-me anémona

diáfana medusa

de uma dor sem nome

colorida pela ferida

latejante da vida, e pela fome

de se ser mais do que uma superfície de água (…)”

Em “Faca, vidro, água, lâmina; ou coisas necessárias para catalogar a dor”:

“(…) Caminho, nado, danço, avanço

numa tentativa de indiferença

mas a dor arde sempre comigo

no ar que dói (…)”

Em “Da água”:

“Bebo um poema como água de um copo

com sede de o sorver para dentro,

um extremo dentro

na flor da garganta,

no vulcão da voz (…)”

Ou em “Gravidade”:

“(…) Também eu, quando o sangue flui,

me entrego num poema vertical

de sangue e segredo

à terra, ao chão, ao abraço subterrâneo

dos mortos

e das sementes”.

Ainda sobre o reino místico onde os poemas são colhidos como fruta madura, Eduarda Gil diz-nos que deve ter-se enganado, certamente não o encontrou. Justifica-se, dizendo, “No reino onde estou, há aridez sob os pés e pó na atmosfera”. Poderá tê-lo afirmado com alguma ironia, pois desengane-se quem pensa que o reino místico dos poetas é um lugar uniforme, sem mácula ou intocado, povoado apenas pelas luzes do mundo e por coros de anjos. Esse reino místico é antes um lugar de múltiplas paisagens, absolutamente real e cru na sua verdade, que é a verdade mais pura da própria vida que vivemos. Por isso, contém tanto de beleza como de fealdade, tanto de monstros como de deuses redentores, tanto de lágrimas como de ovações.

Na segunda parte do livro, denominada de “Tosca Lyrica”, Eduarda Gil dá-nos olhares dessas paisagens que percorreu, com o eu lírico a enfrentar a perda e a morte, a testemunhar a injustiça e a barbárie, a resistir à brutalidade e ao mal, a ser acompanhado por fantasmas e a falar com eles, a refletir sobre a sua identidade de género, como alguém que está e vive no mundo, como alguém que se levanta e diz, recusando o silêncio. Leia-se esta quadra de “Poema do Não”:

“(…) E se silêncio há a consentir

o que a inquietação não cala

é porque estamos a sucumbir

e a esquecer o dom da fala”.

Para chegar ao reino místico dos poetas, como estou seguro de que Eduarda Gil chegou com este livro, embora o tenha feito pelo seu próprio “dom da fala”, não o fez de forma totalmente solitária. Ao longo da sua busca, invocou guias para a acompanharem na sua jornada, poetas e escritores que fizeram a mesma demanda antes dela. Talvez por isso os tenha evocado na terceira parte do livro, “Bioversos”, onde reúne um conjunto de poemas que são mais do que homenagens a figuras de referência como Fernando Pessoa, Natália Correia, Daniel Faria, Marguerite Duras ou Maria Teresa Horta. São nichos de santos numa capela pessoal e íntima, onde se pode beber da água da vida eterna em recolhimento e regeneração, para depois seguir caminho rumo ao dito reino onde Eduarda Gil esteve e voltará. Porque hoje não nasce apenas como poeta, mas como quem sabe ir e voltar sem se perder.

“Maria Teresa Horta

Tua senhora de ti,

conta-me o teu segredo

de memória e de bruxedo

ensina-me como a história

ainda não vingou

as cabeleiras que queimou

diz-me da tua sina

enquanto dispo meus jeans

e desmascaro meu rosto

fala-me do teu amor:

dos sentidos galopando

a substância do corpo;

explica-me a febre e a pureza

do desejo e da procura

explica-me o que é ser mulher

e senhora da própria loucura.”

Samuel F. Pimenta

(Texto de apresentação de “Tosca Lyrica”, de Eduarda Gil, na Livraria Snob, em Lisboa, dia 19 de abril de 2024)

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Poeta, escritor, artista. Dedica-se ainda à promoção dos direitos LGBTI+, dos direitos humanos e dos direitos da Terra. https://samuelfpimenta.com