O marido imaginário

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
3 min readMay 8, 2022

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Dora Nunes Gago

Kuala Lumpur

O marido imaginário

No aeroporto de Kuala Lumpur, o meu olhar procura, em vão, um papel com o meu nome. Estou sozinha, na Malásia, um país maioritariamente muçulmano. Reservei o shuttle do hotel para simplificar a vida. Os outros passageiros vão escoando suavemente, enquanto eu permaneço. Até que reparo num homem com uma folha A4, onde se lê “Mr. Gogo”. Após uma breve hesitação e sem ver mais nada que se pareça com o meu nome, aproximo-me dele para lhe dizer que tudo indica ser eu a pessoa que ele espera, mesmo não sendo Mister, nem Gogo. Nem um nem outro estão correctos e, no entanto, são a forma de me identificar. Seguindo esta linha de raciociocínio, podemos questionar-nos com que linhas se desenha a nossa identidade aos olhos dos outros para quem o nosso nome não passa de exóticas letras sem sentido? Talvez o nosso retrato não passe de uns rabiscos garatujados com a tinta do estereótipo numa folha branca semi amarrotada. E é nesse esboço tosco de linhas irreconhecíveis que nos procuramos resgatar ao olhar de quem não nos conhece. E saberemos com que tinta pintamos o retrato desses Outros distantes de nós, do nosso universo social e cultural?

Depois, noutros países, o meu apelido foi mudando desde Mr. Gaga, Mr. Goga, enfim, todas as variantes possíveis, mas uma única constante: sempre mister, que isso de uma mulher andar a viajar sozinha pela Ásia, enfim, ainda tem que se lhe diga, apesar de todos os caminhos trilhados rumo à emancipação, à igualdade de direitos, etc. etc. Como, aliás, refere Raquel Ochoa no seu livro de viagens Pés na Terra, “quando uma mulher viaja sozinha o mundo relembra-lho a cada momento.”

Na verdade, em Kuala Lumpur, foram constantes as perguntas acerca do paradeiro do meu marido. Senti que pisava um território deveras interdito por ser mulher e me atrever a percorrer aquele espaço sozinha. A certa altura, comecei a dizer que o meu marido estava a dormir no quarto do hotel, por estar muito cansado — e o cansaço era de tal ordem que o meu homem imaginário dormiu durante quatro dias seguidos. Curiosamente, mais tarde ao ler o já referido livro de viagens de Raquel Ochoa percebi que chegou a usar também uma estratégia semelhante.

Terminado o fim de semana alargado, regresso a Macau. Surpresa na chegada ao aeroporto: um agente da Polícia Judiciária aborda-me. De repente, um redemoinho de pensamentos a espojar-se dentro da minha cabeça: terá alguém do hotel de Kuala Lumpur avisado sobre uma residente de Macau cujo marido dorme há 4 dias? Pensarão que assassinei essa criatura apenas gerada no útero da minha imaginação? Terá aparecido, por macabra coincidência, algum cadáver no quarto onde estive, a encaixar no perfil que desenhei? Ter-se-á alguma hóspede queixado do desaparecimento de um marido? Por momentos, efabulação e realidade fundem-se, galopam a par, para, finalmente se enlearem num complicado nó cego difícil de desatar. Mas eis que o agente me pede o passaporte, manda abrir a mala. Noto que é português e explico que sou professora na Universidade de Macau, fui passar o fim de semana alargado a Kuala Lumpur… Imediatamente, muda o registo do modo autoritário para o simpático, diz que nem precisa de revistar a minha mala, que aquele é um mero procedimento convencional, já que o perfil de “uma mula”, ou “correio de droga” corresponde ao de uma mulher a viajar sozinha, com idade compreendida entre os 30 e os 40 anos. Na altura, já entrada nos 42, fico feliz com a generosidade de ainda estar qualificada para correio de droga, para além da satisfação em saber que o facto de ser professora na universidade de Macau me poderá abrir as portas a um futuro alicerçado no obscuro reino do ilícito, sem levantar suspeitas. Mas, acima de tudo, tranquiliza-me saber que o marido imaginário continuará a dormir, encobrindo os meus receios, no seu devido lugar, nos lençóis da imaginação.

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