Sobre «Misericórdia», de Lídia Jorge

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
4 min readOct 27, 2022

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Dora Nunes Gago

“Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.” ( p. 11). Este é o incipit de Misericórdia de Lídia Jorge (uma das vozes mais singulares da literatura europeia, que dispensa apresentações) a abrir o capítulo intitulado “Atlas” e imediatamente envolve, captura o leitor, para um mapa muito maior do que o da Terra. Com efeito, o Atlas que começamos a habitar é o do último ano de vida da protagonista, narradora autodiegética, Maria Alberta Nunes Amado, ou Dona Alberti como é carinhosamente chamada. Entramos, assim, no “Hotel Paraíso”, lar onde se encontra a viver, para acompanharmos não apenas a sua vida presente, como fragmentos do passado, a desaguar na confluência de vidas que a rodeia, numa travessia além dos tempos, dos lugares. Este rasgar de fronteiras ancorado pela memória é consubstanciado no hibridismo que caracteriza a obra: romance, diário, crónica, por vezes eivada até de poesia, tudo articulado numa corajosa e ousada harmonia. Como se todas as múltiplas facetas da condição humana coubessem num único livro, habitado de passado, de presente e de futuro, pois: “ O além é um lugar onde se guardam para sempre as trouxas com os bens mais preciosos da nossa vida (…) ou melhor, o além é um livro. (…). Um livro que não tem fim, cada página uma vida, cada vida uma página, quantas mais vidas mais páginas. Isso é o além.” (p. 456).

Guiados pela voz desta protagonista, dotada de impressionante força, sabedoria resistência, resiliência, coragem, viajamos pela densa riqueza dos temas que habitam a obra: os equívocos, incompreensões, a instabilidade, a precariedade das relações laborais, o declínio, a importância da atenção e do cuidado ao Outro, a imigração, a discriminação, a crueldade e o amor nas suas diversas vertentes, o exilio mais profundo, aquele de uma alma encerrada num corpo que não se comanda ao qual se deixa de pertencer e que já não é mais um recanto privado (p. 70). E, neste contexto, a profundidade das relações humanas, das emoções que cruzam as paredes do Hotel Paraíso são, por vezes, intensificadas pelos cheiros, pelas “paisagens olfactivas”. Neste âmbito, é pertinente referir que, tal como afirma Rachel Herz, no capítulo intitulado “I know what I like. Understanding odor preferences”, publicado em The smell culture reader (2006), o olfacto é o sentido mais ligado à vertente emocional, “because of its neuroanatomical relationship with the amygdala-hippocampal complex, critically involved in forming and remembering emotional associations” (2006, p. 194). Por conseguinte, transparece uma sensorialidade textual que evidencia o conhecimento da estrutura da realidade habitada pelas personagens. Tal facto poderá ser exemplificado com a mudança de cheiros de Lillimunde, a jovem funcionária do Pará, atendendo às mudanças que marcam o seu percurso vivencial: “Mas noto que Lilimunde não cheira mais a bergamota. Desde que faz noites no bar do Justino, cheira a alguma coisa indefinida, talvez a sândalo diluído em aroma de fenos, nada de tília, nada de peónia.” (p. 178). Além disso, como refere Byung-Chul Han em El aroma del tiempo. Un ensayo filosófico sobre el arte de demorarse (traduzido por P. Kuffer, 2015), a aromática essência do tempo converte-se num elemento que liberta os acontecimentos temporais, funcionando os odores evocados como “islas de duración en el caudaloso curso del tiempo” p.30). Deste modo, reforça-se a consistência das memórias, muitas vezes do jardim, da natureza, que adquirem um poder salvífico (“lembranças do meu jardim salvaram-me (…). Por esta altura (…) o azul escorrega pelos muros afora, as rosas são copos de perfume cor-de-rosa, eu sei.” (p. 65). Notamos o tempo assume a densidade e a duração das memórias onde se alicerça, com a capacidade de o expandir até à remota infância ou além dela. De tudo isso, a escrita, a literatura constitui receptáculo, a emergir também através de múltiplas relações intertextuais, inclusive também para homenagear o escritor Luís Sepúlveda.

Assim, Misericórdia, obra magistralmente escrita a partir de um pedido da mãe de Lídia Jorge, edifica-se num notável exercício de alteridade, no vestir a pele do outro multiplicando-se nas múltiplas facetas que a Humanidade pode assumir. Neste contexto, a palavra “misericórdia” (“Misterioso é o sentido da misericórdia, não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano, p. 445), ultrapassa em muito o sentido de compaixão, dilatando-se o seu significado para o respeito (independentemente das diferenças, das divergências), para o cuidado com o outro, esculpido frequentemente na importância fulcral das palavras, dos pequenos gestos imbuídos de grandeza, das pequenas coisas (“Estou com as pequenas coisas, as simples (…) eu não sou nada, estou junto das coisas primitivas como as ervas e o algodão em rama, mas ainda assim vivo porque continuo a observar a mudança”, p. 165). Deste modo, vamos, ao longo da leitura deste hino ao fulgor da vida, equacionando o nosso lugar na Terra, no presente, no futuro. Sentimos que, através do amor, pedra angular da vida, da força, da coragem, da ligação ao mais puro e genesíaco, é possível ir vencendo o combate sem tréguas com o “esfíngico gato pardo” chamado “noite” (metáfora também da morte), essa luta com as noites que assaltam o nosso mundo, a nossa vida, ao longo do tempo, além dos tempos e da poeira dos caminhos.

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