O direito à alegria

Silvina Rodrigues Lopes foi contemplada, em ex-aequo com Maria Irene Ramalho, pela sua obra «O Nascer do Mundo nas suas Passagens» (edições do Saguão), com o Prémio Jacinto do Prado Coelho.

A sua obra é constituída por textos que foram escritos entre 2010 e 2019, possuindo um carácter original, actual e diferente dos seus livros anteriores, em que o tom é sobretudo oriundo da literatura ou da crítica literária. Estes textos tomam como ponto de partida a teoria literária e o que se entende por estudos literários, mas não é esse o seu alvo e sim essencialmente uma interrogação mais ampla do mundo, sobretudo na relação que temos com ele através da linguagem, da leitura e da escrita. Produzidos em contextos diferentes, estes textos delineiam um pensamento mais politico, no melhor sentido da palavra, questionando os aspectos mais negativos das nossas sociedades, em que a linguagem, nas suas possibilidades, sofreu um retrocesso, vítima do capitalismo, da ditadura da utilidade e do monolinguismo, para usarmos o conceito de um pensador como Derrida, que Silvina conhece bem.
Contra a política do «pão e circo» e da austeridade que lhe está associada, matando as possibilidades de um pensamento livre e acentuando o sopro do conservadorismo que assola a sociedade democrática, numa «permanente ameaça ao haver-mundo», como nos diz a autora, na p. 11, advoga a «alegria», a partir do primeiro texto deste livro, intitulado «Alegria, travessia ouvindo Caetano Veloso». Esta alegria é a do impulso criador, em que o horizonte (e Silvina cita «A Mensagem», de Fernando Pessoa) «aparece-nos livre de novo» (p.13). Esta liberdade a que a autora se refere é da ordem do perigo, da «indeterminação do humano» e da «sua irredutibilidade ao biológico», da fragilidade, e o que é preciso, seguindo as palavras da canção de Caetano, «navegar é preciso, viver não é preciso», é navegar, abandonando as amarras do familiar, para ir à procura do desconhecido. E este é também do plano do pensamento e da reflexão, para o qual nos devemos lançar com alegria, ou seja, seguindo o ímpeto criador contra a tirania da mesmidade e da doxa.
«Aprender dá-se na construção de relações, que são troca e dádiva, que passam pelo que vem dos outros e retorna aos outros, a linguagem. Por isso, quando se abdica de ensinar para dar lugar exclusivo ao treino de faculdades de adaptação ao desenvolvimento tecnológico, a aprendizagem, que deve permitir aos jovens implicar-se no mundo pela atenção à sua multiplicidade, é posta em risco.» (p. 117).
O verdadeiro combate à doxa e à ignorância, passa pela luta contra as formas de dominação, que se fazem sentir em toda a nossa sociedade. O ensino e a aprendizagem, como ideia de formação, no sentido de Paideia, são as áreas onde se pode intervir para mudar a ordem das coisas e Silvina sabe-o bem. No ensaio «Do ensino como Ofício Inquieto», a autora refere a impossibilidade da substituição do professor e a sua presença responsável, propondo um ensino que supere a mera comunicação dos conteúdos e se realize como exercício do pensamento. Para Silvina Rodrigues Lopes, quando se limita o ensino à comunicação de conteúdos, transformando o professor num autómato, este deixa de o ser. Assim, urge um ensino que transforme e que contribua para um pensamento crítico, que possibilite o reconhecimento das armadilhas da submissão da linguagem à comunicação e ao monolinguismo. Também o ensino não pode ser visto à luz do conceito de utilidade e deve ultrapassar os «objectivos imediatos da vida, a pressão da subsistência» (p. 119).A autora evoca aqui, muito a propósito, a etimologia grega da palavra escola (Skholê), que significava a suspensão das actividades utilitárias, definindo-se como um «modo específico de organização do viver em comum» (p.120).
A crítica da autora ao actual sistema de ensino foca sobretudo os aspectos já referidos, mas igualmente a ideia da quantificação do ensino e da sua automatização. Resistir a estes dois efeitos nefastos implica responsabilidade, não apenas por parte daqueles que estão directamente envolvidos no processo, mas também numa ideia radicalmente diferente, do ponto de vista politico, daquilo que deve ser o Ensino, assim como a aprendizagem, longe da domesticação que consiste em preparar os alunos para serem lançados no mercado de trabalho. Existe, desta forma, uma dimensão de inquietação, de pensamento crítico que deve assistir-lhe.
«Não podendo haver uma ciência ou uma arte do pensar, o acolhimento do que vem na contingência do viver supõe em qualquer um a paciência do estudo e o espanto do encontro.» (p. 142). A paciência do estudo diz respeito ao gesto de retornar incansavelmente ao mesmo objecto, abandonando a ideia de um saber unificado e mais atento à alegria da descoberta e ousando sair do consenso, disponível para um pensar plural. Também as artes, no capítulo «pensar com artes: considerar o indefinível», se inserem nesta lógica do risco de pensar, subtraindo-se à ditadura da comunicação e dos elos económicos que submetem as artes a uma lógica de puro consumismo. Por outro lado, a autora fala de um pensar plural que define da seguinte forma: «O pensar plural, inacabável, diz respeito a qualquer um, na medida em que, como ser falante, ele se constitui uma interioridade que acolhe ao que vem do mundo a partir de um imperativo de justiça anterior ao conhecimento, um imperativo imanente à socialidade sem fundamento exterior e sempre ameaçada pela objectivação, pela economia como cálculo das vidas. Trata-se da imanência de devir-outro, de viver sem modelo, viver com os outros». Talvez a única forma possível de construir um modo de viver em comum, mais liberto das amarras, mais próximo da alegria da travessia