O desastre toma conta de tudo
A Prefeitura de Belo Horizonte (Brasil), por meio da Secretaria Municipal de Cultura e da Fundação Municipal de Cultura, divulga o resultado final do Concurso Nacional de Literatura “Prêmio Cidade de Belo Horizonte”, edição 2016. Na categoria “poesia” o prêmio foi concedido para a obra O desastre toma conta de tudo, de autoria de Ney Ferraz Paiva, de Belém (PA).
De acordo com a Comissão Julgadora, a obra “faz um recorte, ao mesmo tempo, sutil e violento das diversas vozes do desastre que está na ordem do dia e que atravessa falares, vivências e ansiedades do/no mundo contemporâneo. Trata-se de uma escrita repleta de referências e de vitalidade que desafia os limites da própria poesia enquanto forma”. A Comissão Julgadora foi formada por Léo Gonçalves, Miria Gomes de Oliveira e Silvana Maria Pessôa de Oliveira.
Você gosta desse jardim que é seu? Cuide para que seus filhos não o destruam! — Malcom Lowry, Sob o Vulcão
ENCONTROS MARÍTIMOS PARA UMA NOVA LITERATURA
a bordo do S. S. Pyrrhus
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voltai ao mar – você Burroughs está cego no inferno
já não pode avançar sobre a terra que fora de teu pai
ela corrói tanto quanto o vento e as tempestades e o silêncio
poetas não se fazem marinheiros em terra seca ou nas
rochas ou nas estilhaçadas pirâmides do velho Texas –
arrancam do mar bem mais do que laranja algodão maconha
voltai ao mar – você Plath que na turva noite velejaria
ao cerco derradeiro num labiríntico apartamento sem
aquecimento só porque este pertencera a W. B. Yeats
a neve cobre terra mais vasta que a cabeça do poeta
deposita-se como explosivos sobre o oceano Atlântico
pode-se ter neve em qualquer lugar – nevou em Auschwitz
voltai ao mar – você Barreto bancando o engomadinho
no início da carreira reconhecido pelo colete aberto no
umbigo esse buraco negro mal-ajambrado atraindo os
detritos guarda o entulho o ferro-velho do Império
de colete gravata paletó colarinho retine a impostura
encalha no hospício na Praia Vermelha teu navio negreiro
ESCREVER POEMA É UM ATO BÁRBARO
Esta espécie de crime que é escrever. Herberto Helder
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após a guerra se continua a fazer poesia
não sem o gosto amargo da descrença
após a guerra se recomeça outra guerra
o poeta recomeça a escrever a guerra
cada vez é como se fosse a primeira
servir-se da carne podre da memória
versos para homens que se matam
à luz de tochas em honra aos mortos
que recomeça o poeta senão a guerra?
que silêncio recomeça após o silêncio?
poesia ainda possível em dias de horror
após Auschwitz não se venderá poesia
não se vai ao circo nem se fará turismo
da beleza e alegria não haverá comércio
após a guerra se continua a fazer poesia
BLANCHOT A KOZOVOI
De todo coração a ti. Maurice Blanchot
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ele, Blanchot, recebeu
o livro de Paul Valéry
traduzido por Kozovoi
– “quero agradecer” –
uma carta, um livro
uma iniciação louca
no ventre da velhice
começa-se a amizade
um nunca viu o outro
mas foram enlaçados
com devoção irrestrita
de muito longe ressoa
o silêncio que não isola
abre o coração imensurável
cartas curam catástrofes
“precisas de dinheiro?”
“tens notícia de teu pai?”
“Ira recebeu minha carta?”
“a mãe dela está doente,
é grave?” “o que vais fazer?”
andar o incessante caminho
andar também em círculos
sobre as próprias pegadas
o desgaste do solo é grave
a solidão está logo abaixo
o esquecimento o atraso
uma ferida que não seca
considerai essa viagem
a contrapelo à flor da pele
a amizade vela o desastre
23 DE JANEIRO
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aprendi com meu filho de dez anos
que a poesia é a descoberta
das coisas asfixiadas na fita da máquina
de escrever de Sylvia Plath
MÁRIO FAUSTINO VOLTA A BELÉM PELA ÚLTIMA VEZ
Aqui estão vossos guizos, vossos confetti./ Ide! Rejuvenescei as coisas! Ezra Pound, Saudação Segunda, Tradução Mário Faustino
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mandado pelos ares
voado em pedaços
sem deixar o menor rastro
como num atentado terrorista
o tempo Mário não ri ou chora
à nossa volta
o tempo não olha para trás
fecha aos pássaros os ferrolhos
.
Mário a juventude se desgasta à queima-roupa
entrelaçada a ti compassadamente
ela prossegue
amante esquartejado
– a morte corta os Andes
fede a carne descomposta –
o Verbo selvagem te remonta
.
em que lugar
o indefectível relógio Cartier que usavas
nem radares nem sismógrafos indicam
pisas pela última vez a terra – como não
irromper o grito?
nem a bala nem a navalha te assassinam
algo de horror
a noite intolerável que evocas
.
pilhas de livros & discos rangem a um canto
o barulho da chave do amante à porta
os detritos das horas
as abafadas penumbras
jogavas com os arcanos da linguagem
o nada & a morte
– estavas sempre ganhando
.
Mário os limites do céu mudaram
ali o que cai aqui o que cresce
sem oscilar nem um milímetro
o tempo não cruza
a linha da chuva
Cérbero surge
salta à frente
sem se contentar
com o que vem
com o que está vindo
vibrar a madrugada
MATEI ONTEM DURANTE A CHUVA UM CACHORRO PRETO
.
matei ontem um cachorro preto
eu me preparava pra ouvir você
pego o telefone o cachorro avança
ouço cada pata a música do medo
contra os dentes nenhum muro
nem de levinho um cavaquinho
pra desviar o salto sobre mim
o ataque em brados irrompendo
sofro por causa do modo
como a chuva me esgota
primeira verdadeira infelicidade
inevitável como o dia seguinte
chuva & cão se digladiam
entram nos lugares mais fechados
surpreendem tudo fica de través
não tem espaço pra mais nada
ouço cada pata cada gota d’água
nenhum dos dois abranda o ataque
– cada vez mais bruto cru frontal –
detalhes da cena de um assassinato
na peça no filme no quadro
tento escapar pelo piso interminável
enroscado em um ninho de livros
cobertores páginas manuscritas
a imensa habilidade técnica do cão
ameaça-me por algo que só ele sabe
de forma cristalina límpida viril
o cão avança a chuva me adoece
percebem o que está acontecendo?
SOBRE O AUTOR
Ney Ferraz Paiva é poeta e artista visual. Além do “Prêmio Cidade de Belo Horizonte” 2016, venceu duas vezes o “Prêmio Cidade do Recife” 2000 e 2004. É autor dos livros Não era suicídio sobre a relva, Nave do Nada e Arrastar um landau debaixo d’água.