O desastre toma conta de tudo

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
5 min readDec 30, 2017

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O poeta e artista visual Ney Ferraz Paiva

A Prefeitura de Belo Horizonte (Brasil), por meio da Secretaria Municipal de Cultura e da Fundação Municipal de Cultura, divulga o resultado final do Concurso Nacional de Literatura “Prêmio Cidade de Belo Horizonte”, edição 2016. Na categoria “poesia” o prêmio foi concedido para a obra O desastre toma conta de tudo, de autoria de Ney Ferraz Paiva, de Belém (PA).

De acordo com a Comissão Julgadora, a obra “faz um recorte, ao mesmo tempo, sutil e violento das diversas vozes do desastre que está na ordem do dia e que atravessa falares, vivências e ansiedades do/no mundo contemporâneo. Trata-se de uma escrita repleta de referências e de vitalidade que desafia os limites da própria poesia enquanto forma”. A Comissão Julgadora foi formada por Léo Gonçalves, Miria Gomes de Oliveira e Silvana Maria Pessôa de Oliveira.

Você gosta desse jardim que é seu? Cuide para que seus filhos não o destruam! — Malcom Lowry, Sob o Vulcão

S. S. Pyrrhus, agosto 1935.

ENCONTROS MARÍTIMOS PARA UMA NOVA LITERATURA

a bordo do S. S. Pyrrhus

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voltai ao mar – você Burroughs está cego no inferno

já não pode avançar sobre a terra que fora de teu pai

ela corrói tanto quanto o vento e as tempestades e o silêncio

poetas não se fazem marinheiros em terra seca ou nas

rochas ou nas estilhaçadas pirâmides do velho Texas –

arrancam do mar bem mais do que laranja algodão maconha

voltai ao mar – você Plath que na turva noite velejaria

ao cerco derradeiro num labiríntico apartamento sem

aquecimento só porque este pertencera a W. B. Yeats

a neve cobre terra mais vasta que a cabeça do poeta

deposita-se como explosivos sobre o oceano Atlântico

pode-se ter neve em qualquer lugar – nevou em Auschwitz

voltai ao mar – você Barreto bancando o engomadinho

no início da carreira reconhecido pelo colete aberto no

umbigo esse buraco negro mal-ajambrado atraindo os

detritos guarda o entulho o ferro-velho do Império

de colete gravata paletó colarinho retine a impostura

encalha no hospício na Praia Vermelha teu navio negreiro

ESCREVER POEMA É UM ATO BÁRBARO

Esta espécie de crime que é escrever. Herberto Helder

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após a guerra se continua a fazer poesia

não sem o gosto amargo da descrença

após a guerra se recomeça outra guerra

o poeta recomeça a escrever a guerra

cada vez é como se fosse a primeira

servir-se da carne podre da memória

versos para homens que se matam

à luz de tochas em honra aos mortos

que recomeça o poeta senão a guerra?

que silêncio recomeça após o silêncio?

poesia ainda possível em dias de horror

após Auschwitz não se venderá poesia

não se vai ao circo nem se fará turismo

da beleza e alegria não haverá comércio

após a guerra se continua a fazer poesia

BLANCHOT A KOZOVOI

De todo coração a ti. Maurice Blanchot

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ele, Blanchot, recebeu

o livro de Paul Valéry

traduzido por Kozovoi

– “quero agradecer” –

uma carta, um livro

uma iniciação louca

no ventre da velhice

começa-se a amizade

um nunca viu o outro

mas foram enlaçados

com devoção irrestrita

de muito longe ressoa

o silêncio que não isola

abre o coração imensurável

cartas curam catástrofes

“precisas de dinheiro?”

“tens notícia de teu pai?”

“Ira recebeu minha carta?”

“a mãe dela está doente,

é grave?” “o que vais fazer?”

andar o incessante caminho

andar também em círculos

sobre as próprias pegadas

o desgaste do solo é grave

a solidão está logo abaixo

o esquecimento o atraso

uma ferida que não seca

considerai essa viagem

a contrapelo à flor da pele

a amizade vela o desastre

23 DE JANEIRO

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aprendi com meu filho de dez anos
que a poesia é a descoberta
das coisas asfixiadas na fita da máquina
de escrever de Sylvia Plath

MÁRIO FAUSTINO VOLTA A BELÉM PELA ÚLTIMA VEZ

Aqui estão vossos guizos, vossos confetti./ Ide! Rejuvenescei as coisas! Ezra Pound, Saudação Segunda, Tradução Mário Faustino

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mandado pelos ares

voado em pedaços

sem deixar o menor rastro

como num atentado terrorista

o tempo Mário não ri ou chora

à nossa volta

o tempo não olha para trás

fecha aos pássaros os ferrolhos

.

Mário a juventude se desgasta à queima-roupa

entrelaçada a ti compassadamente

ela prossegue

amante esquartejado

– a morte corta os Andes

fede a carne descomposta –

o Verbo selvagem te remonta

.

em que lugar

o indefectível relógio Cartier que usavas

nem radares nem sismógrafos indicam

pisas pela última vez a terra – como não

irromper o grito?

nem a bala nem a navalha te assassinam

algo de horror

a noite intolerável que evocas

.

pilhas de livros & discos rangem a um canto

o barulho da chave do amante à porta

os detritos das horas

as abafadas penumbras

jogavas com os arcanos da linguagem

o nada & a morte

– estavas sempre ganhando

.

Mário os limites do céu mudaram

ali o que cai aqui o que cresce

sem oscilar nem um milímetro

o tempo não cruza

a linha da chuva

Cérbero surge

salta à frente

sem se contentar

com o que vem

com o que está vindo

vibrar a madrugada

MATEI ONTEM DURANTE A CHUVA UM CACHORRO PRETO

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matei ontem um cachorro preto

eu me preparava pra ouvir você

pego o telefone o cachorro avança

ouço cada pata a música do medo

contra os dentes nenhum muro

nem de levinho um cavaquinho

pra desviar o salto sobre mim

o ataque em brados irrompendo

sofro por causa do modo

como a chuva me esgota

primeira verdadeira infelicidade

inevitável como o dia seguinte

chuva & cão se digladiam

entram nos lugares mais fechados

surpreendem tudo fica de través

não tem espaço pra mais nada

ouço cada pata cada gota d’água

nenhum dos dois abranda o ataque

– cada vez mais bruto cru frontal –

detalhes da cena de um assassinato

na peça no filme no quadro

tento escapar pelo piso interminável

enroscado em um ninho de livros

cobertores páginas manuscritas

a imensa habilidade técnica do cão

ameaça-me por algo que só ele sabe

de forma cristalina límpida viril

o cão avança a chuva me adoece

percebem o que está acontecendo?

SOBRE O AUTOR

Ney Ferraz Paiva é poeta e artista visual. Além do “Prêmio Cidade de Belo Horizonte” 2016, venceu duas vezes o “Prêmio Cidade do Recife” 2000 e 2004. É autor dos livros Não era suicídio sobre a relva, Nave do Nada e Arrastar um landau debaixo d’água.

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