O bicho mau e a letra da água

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
10 min readAug 4, 2017

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Por Edilson Pantoja da Silva

De novo se mexeu, ora coleando com amplas sinuosidades oscilantes, ora escorregando reta sobre o ventre… (Guimarães Rosa — “Bicho Mau”).

I

O recente livro da poeta Luciana Brandão Carreira, A Letra da Água, como se pode imaginar a partir do título, é dedicado à água, elemento primordial de toda vida. De tudo que há, se dermos razão a Tales de Mileto, precursor da busca por significação lógica sobre o cosmo, a ordem natural. Em Tales, o que quer que seja ou venha a ser, se apresenta como diferença e multiplicidade daquilo que, em essência, ou latência, para usar um termo familiar à autora, também psicanalista, permanece o mesmo. Trata-se de Hydro, fundamento de tudo, cuja maleabilidade o faz apesentar-se ora líquido, ora sólido, ora gasoso, ora em respectivas zonas fronteiriças, estados que perfazem todas as dimensões do que é. Com a identificação da água como aquele elemento primordial que a tudo subjaz e governa (arché), Tales operava a redução da multiplicidade sensível à unidade cognoscível, tarefa que fundou a Filosofia, desde então operação racional de busca do fundamental. Mas se com “Tudo é água”, tese de Tales, nós temos a redução do múltiplo ao uno, sem que a palavra, operadora dessa redução — logo, dessa significação -, seja sequer questionada em sua pretensão [só em Platão a palavra — o “nome” — terá sua natureza examinada: ver, por exemplo, o “Crátilo” e a “Carta Sétima”], em A letra da água, sem que o elemento fundamental seja negado [e aqui ele, definitivamente, não é a Água! — Aliás, nem em Tales…], a palavra se entrega a uma difícil e inglória tarefa de multiplicação — algo como um trabalho de Sísifo, uma compulsão à repetição — crispada, esgarçada numa irremediável ambivalência.

II

O estilo é solto, os versos contemporâneos livres, às vezes a explorar espaços brancos do papel, o fluxo tem a dinâmica formal das águas pluviais: ora corredeiras, ora remansos, noutras vezes, redemoinhos. Do ponto de vista do enunciado imediato, está pleno do líquido, como o cosmo de Tales, em que a água não se mostra sempre em consistência aquosa, ou o mundo diluviano de Noé. E como em poesia não é necessariamente o imediato que se visa, embora este seja o ponto de partida para outras rotas, distantes ou próximas, a depender da condição náutica do leitor, o livro é um cais. É também carta náutica, mas que quer ser violada: o mar da linguagem não é imensurável — ilimitada a semiose? Em todo caso, tem uma clara estrutura: seis divisões que podem ser interpretadas [aqui já navegamos!] de vários modos. Podem-se pensar em “represas”, “torniquetes” ou “regiões ônticas” a tratarem a água como figuras de condicionamentos diversos do humano. Por exemplo, na primeira região — “Escamas do silêncio”, a água, então figura da linguagem, é tematizada por sua ausência, e a linguagem, “casa do ser”, para lembrar o Heidegger de “Carta sobre o humanismo”, é abordada justamente em sua própria condição, sua razão de ser, que é perfurar o silêncio e produzir o sentido. Mas aqui o silêncio, figura do caos, lembremos do significado original de tal termo, é como Leviatã, o monstro bíblico, mítico, aquático, cujas escamas impossibilitam qualquer investida: a linguagem, modo humano de produzir sentidos para o real, mostra-se inteiramente onipotente, as escamas refratárias a qualquer golpe. Em “mãos” humanas, a linguagem, evidentemente marcada pela perda qualitativa, não é aquela invencível espada de dois gumes que João (Apocalipse 1:16) viu sair da boca do glorioso “Filho do Homem”. A propósito da referência ao Leviatã, vale lembrar da relação cultural e, consequentemente, etimológica, entre o monstro bíblico e aquele dragão ou serpente fêmea, aquática, Tiammat, encarnação do caos absoluto, que lhe teria servido de modelo, assim como o “Enuma Elish”, hino babilônico em louvor da vitória do deus Marduk sobre Tiammat, teria servido de modelo à narrativa bíblica do Gênesis. As diversas referências a escamas, inclusive fora da primeira “represa”, a ênfase no silêncio — também figurado no deserto aí presente, como um desafio à significação — a teimosia do caos — e o parônimo “Tannat” (78), me permitem evocar Tiammat, apenas derrotado por Marduk com o auxílio dos ventos, que entram pela boca do monstro, penetram-lhe o ventre e o dividem em dois, como uma ostra, com o que tem origem o mundo, separado em céus e terra, as partes divididas de Tiammat [lê-se em “Corpóreo”: “silêncio som silêncio/na geração do começo sem origem/recomeço sem fim”]. A propósito, aqui, em “Escamas do silêncio”, a palavra, se é som e vento quando pronunciada, enquanto escrita opta por estratégia mais afim com sua condição: faz-se insistência como no provérbio popular [“Água mole em pedra dura..”] e assume ela própria a figura da serpente quando se enrola a armar o golpe, ou da água em redemoinhos: movimentos espirais que tanto lembram o processo criativo dos surrealistas, a associação livre do divã psicanalítico e os processos oníricos: os versos finais de um poema costumam repetir-se no início do verso seguinte, com o que dão ensejo a um processo significativamente repetitivo — digo isto numa evocação da psicanálise. Das outras divisões, tem para mim um interesse menos geral “Ferrugem”, segunda “região ôntica”, onde a palavra agora se vê diante de Tempo, outro monstro, sem dúvida irmão de Silêncio, e outro invencível limitador. No entanto, ainda que o “páthos” de minha leitura reverbere sobretudo desde essas duas primeiras “represas”, tenho a impressão de que todas elas possam também ser pensadas, figuradamente, é claro, segundo as descobertas de Masaru Emoto, que nos dão conta de certa “Mensagem da água”: as seis represas podem, portanto, ser vistas como “estados d’alma”. Assim, se em “Lágrima artesiana”, a água é lágrima vertida sobre temas ambientais e humanidades da Amazônia e da África, por exemplo, em “Aquífera” a palavra parece celebrar vibrante, enquanto que em “Placenta”, a par da evocação maternal e reposição do problema Tempo, a vida, embora entendida como “estado e rota de colisão com o Tempo”, é afirmada com certo encantamento: Vida, apesar de tudo!

III

Conforme visto até aqui, A letra da Água parece abordar o líquido como sua própria alma. De sua estrutura, passando-se pelos enunciados imediatos e reverberações mais distantes, à sua forma, os elementos parecem compor um grande corpo indutivo. Entre eles, o primeiro poema, “a primeira água”, cuja posição estratégica na obra, que o antecede ao sumário, onde não consta, parece ser-lhe a pedra angular. Sua organização espacial, aliás, evoca a imagem de exuberante cascata a derramar-se pela página, desde o alto, na ordem da leitura, que estanca ou se completa após um espaço em branco, numa referência à memória:

gota

lagoa espuma colostro

chuva magma lágrima

rio vapor menarca

mar nanquim aquarela

urina suor garoa

aguarrás catarata saliva

tintura sêmen orvalho

nascente sangue linfa

líquor

no oceano de uma única gota

todas as águas

servida ao corpo

por amor.

Dela, a memória.

Induzido por certa visão do conjunto, Paulo Maués Corrêa, autor do posfácio, que recomendo ao leitor, viu na imagem uma gota. Mas também chegou a Lete, o mítico e subterrâneo rio grego cujo nome significa esquecimento, quando se lembrou da relação entre “águas” e memória presente no poema. Leitura possível — “obra aberta”! — autorizada pelos versos finais de “Torniquete”:

o escritor fecunda o leitor

no qual renasce

em eco.

Mas, conforme dito, também se pode ver uma cascata, ou um rio, visto do alto, a contornar, descendente, uma curva à direita antes de ter suas águas — todas as palavras: fluidos corporais, eróticos, cósmicos, químicos, artísticos… ocultas sob o espaço em branco, do qual apenas o verso final: “Dela, a memória”, emerge. A construção potencializa evocar inúmeras referências e suportará outro sem número de interpretações. Por exemplo, pode-se especular sobre o significado do espaço em branco. Um indício do subterrâneo? Uma passagem para o “baixo mundo” dos líquidos, forças que movem nossos corpos — uma vez que, como lemos em “somáticos”, “somos os nossos sumos/seiva e semente”? Ou também, sem excluir o subterrâneo, indicará o esquecimento -, e, a propósito de ambos, o inconsciente [evocação possível se se considerar a relação da autora com a psicanálise]? Ora, “Ler é transfundir”, diz um verso anterior de “torniquete”. Ler, interpretar, é violar, desvirginar a letra, como temos no poema vizinho — “fecundação”, onde a água desta vez é sangue:

Um livro é violado:

Escorre o sangue da ruptura de seu hímen

O leitor tem as mãos vermelhas

IV

Apesar da onipresença da água e sua potência fertilizante a viger interpretações alhures, a carta náutica aberta, não é propriamente por esses elementos e recursos gerais que “A letra da Água” me afeta de modo definitivo. Eles têm para mim algo próximo daquele sentido distante e geral que, nas considerações de Roland Barthes, caracterizam o studium em uma fotografia. Barthes, como se sabe, distinguia entre studium e punctum, o primeiro a corresponder ao contexto cultural, à técnica no uso da linguagem, aos temas mais ou menos estabelecidos — o studium corresponderia aos aspectos objetivos e dotados de “um ar culto”. E mesmo quando produz um afeto, este não passa de um “afeto médio”. De outro lado está o punctum, o qual, diferentemente, atinge o espectador como um susto, um “pleno susto”, afetando-o poderosa e profundamente em sua subjetividade. Dotado de uma “força de expansão, metonímica”, o punctum é o detalhe que, “escondido como uma fera”, salta sobre o espectador para picá-lo, marcá-lo, sua expansividade a fertilizar a obra calibrando-a à visão afetada do espectador, pela qual se ilumina, e é agora como se lhe pertencesse. Não obstante, diz Barthes, o punctum é um suplemento: “é aquilo que eu acrescento à foto e que, no entanto, já está lá”. É o que parte da cena, “como uma flecha, e vem me traspassar”. O que caracteriza o punctum, portanto, é o seu poder de ataque e de ferir: “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.

V

A definição de punctum por Barthes como algo dotado de “força de expansão”; fera que ataca na forma de um “pleno susto”; que “fere e mortifica”; que, “encolhida como uma fera”, ataca o espectador e o pica, por vezes é similar a descrições que Guimarães Rosa dá de “Boicininga”, a cascavel que, num ataque repentino — “O asco, pavor e gastura, imobilizaram-no, num ricto de estupor” — fere Seo Quinquim, personagem do conto “Bicho Mau”. Barthes fala do punctum nos termos: “punctum também é picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte”; Rosa, por sua vez, descreve a “Boicininga” pronta para o ataque:

… a boca era punctiforme, ridiculamente pequena, só um furo, mínimo…; e, no entanto, no relâmpago de picar, essa boca iria escancarar-se, num esgar, desmandibulada imensa, plana de ponta a ponta.

VI

No livro de Luciana Brandão Carreira, o que me atacou e feriu, desde o primeiro pouso de olhos, foi o pequeno poema, de única linha e sem título verbal, identificado por três pontos de reticências no prefácio:

… uma linha esticada no deserto: a palavra, serpente que rasteja.

Não obstante tudo que expus em tópicos atrás, mas também a considerar algo dessa exposição, é este poema que me afeta, que me ataca e punge. É dele que emana todo o páthos de minha experiência com o livro. É quem direciona meu olhar e “calibra” minha lente para a obra. O poema “está lá”, como suplemento, como acréscimo, não como complemento. Ele é esse “acaso”, quase um corpo estranho por sua brevidade e deslocamento ante o conjunto. É a resistência cuja força de expansão nega toda e qualquer aventura da “água” e repete a serpente a cada novo verso e o deserto a cada nova página, cada poema. Nos volteios espirais do processo criativo ou na linha esticada em cada verso, é a “Boicininga” que se desloca, como no conto de Rosa — “ora coleando com amplas sinuosidades oscilantes, ora escorregando reta sobre o ventre”: sua metonímia reencarna Tiammat, serpente figura do caos, e as escamas impenetráveis do leviatã. Na compulsão das palavras à produção de sentido, pari passu, a compulsão à repetição do caos, do deserto, do silêncio e do vazio. Não Absoluto. Abismo. Deserto. Esgarçamento. Cada nova investida da palavra, cada nova produção de sentido, que pode parecer uma vitória, um avanço, é na verdade nova derrota. Escamas impenetráveis, processo infinito de significação.

VII

“Grandes são os desertos, e tudo é deserto/ Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto/ Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo”, afirmou o maior poeta português, como a dizer que “pedras e tijolos” não passam de miragens, fantasmagorias. Luciana Brandão Carreira nos diz em algum momento sob a força do punctum: “Nesse lugar, mora um areal./A cada nova miragem,/desaguamos em sangue novo”. Mas também nos define como a sermos “nossos sumos, seivas e sementes” e diz que “Sangue e seiva escrevem-se tinta”, a qual, “Gota espiralada” derrama-se “no papel intacto, esse [figura do deserto!, afirmo] bebedor tirânico”. A palavra é sangue e miragem. A palavra somos nós em nossa insistência. Nossa compulsão à repetição. Em nossa luta com o deserto, bebedor tirânico, o retorno do caos. Retorno do Mesmo. “Dialética do monstro”, expressão de Aby Warburg. No jogo de forças, na luta entre o produzir sentido e a negação absoluta, o esgarçamento da palavra, o sintoma, a “formação de compromisso”. Temos, então, que o elemento fundamental aqui, como em Tales, aliás, ou no mito que este pretendeu superar, não será a água, mas o deserto de sentido — o caos — a desordem primordial, absoluta, mola propulsora de qualquer tentativa de ordenação, isto é, de significação, entre elas, a poesia, a filosofia, a ciência e qualquer modalidade que recorra à palavra, cujo destino não será nunca as alturas do sentido pleno, mas o rastejar. Mero rastejar. A palavra não cura, talvez suas miragens apenas aliviem, deem algum prazer, como a taça de Epicuro pouco antes da morte… Em A letra da Água, não obstante a aquosidade presumidamente oasística, o que predomina é:

o silêncio

nossa agulha

enfiada na palavra

Em todo caso, resta o rastejo. Resta a Boicininga. O Bicho Mau. Tannat. Tiamat. O “Bicho-Peixe”. Leviatã, o impenetrável. O caos que retorna. A dialética do monstro. Mas resta a miragem, a poesia, a palavra, apesar de tudo:

útero&sepulcro

ouço a língua da morte cantar a escrita viva

carne que funda a palavra.

Lisboa, 06 de julho de 2017.

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