Novas vozes da cultura em Moçambique 3/ Hirondina Joshua

Mia Couto, Mbate Pedro, Jaime Santos e Hirondina Joshua

O seu rosto é talhado, com um nico de máscara. Que se desmancha quando ri. Os olhos e o que neles se secreta lembram-me os de Clarice Lispector.

Tem 29 anos e uma singular sageza, como se algo de imemorial lhe palpitasse nas artérias. Não será imediatamente evidente. Vai subindo, como a maré alta.

Há anos que trocávamos no fb umas conversas avulsas, temperadas com algum humor, mas nunca nos tínhamos encontrado. Já a sabia singular, e adivinhava-se pelas opiniões mais díspares que dispara nos jovens escritores na cidade, com quem regularmente convivo.

Chama-se Hirondina Joshua. Formou-se em direito. O pretexto do nosso encontro foi a edição do seu primeiro livro, Os ângulos da casa, lançado pela Fundação Fernando Couto, sob a égide de Mia Couto.

Brinco:

Ainda queres ser miss?

Sorri. Desde que conheci a Hirondina que me intrigava o contraste entre escrever o que escreve e se verá adiante e embrulhar-se em exaltações mundanas, como o de querer ser miss. Como se ela quisesse procurar o essencial no inaparente das aparências. Mas, ela explica-se, loquaz:

Já não. Acho que tenho mudado e melhorado até. Eu era muito vaidosa, muito indiferente às pessoas e agora acho estou no limiar de ser boa…- Solta uma risada — Espero. Deve ser de estar à porta dos trinta anos. Mas mantenho algumas convicções pessoais. Sabe, as pessoas fazem desenhos sobre os outros e daí não saem. Alguém é assim, de uma vez por todas. Eu mantenho todas as hipóteses em aberto, na vida pessoal e na escrita. Mas são dois planos distintos. Considero que há coisas que são pessoais e outras que pertencem ao mundo. A escrita pertence ao mundo. Pessoalmente, ambiciono coisas nos antípodas…

Então, nunca foste do género de teres querido ser escritora, desde sempre, etc.

Não. Nem compreendo isso. Em mim a escrita rebenta como um fruto na árvore. Vem por aluvião, ou por sedimento. Nunca compreendi essa pretensão… Eu sou a palavra, ou a palavra é em mim, não é uma coisa que se tenha… Ainda esta semana me perguntaram isso numa entrevista. Tal como me falaram em públicos, e sugeriram que devia escrever o que as pessoas gostam… tudo coisas incompreensíveis para mim. O que é um público? É uma abstracção… Eu escrevo para me conhecer, para atear em mim o desconhecido… Senão para quê escrever?

Pelo teu livro vê-se que ficaste pouco marcada pelos referenciais moçambicanos.

Sim, sempre li muito. É um hábito lá de casa. Mas desde os doze anos o que lia era russos, franceses, americanos. Só aos 18 anos resolvi começar a espreitar o que se fazia em Moçambique. Gostei de algumas coisas, que têm uma certa ordem, uma textura. Mas nada me assombrou. Como o Fernando Pessoa, por exemplo… A minha mãe tinha escondido o Fernando Pessoa, achava que não era para a nossa idade. Mas como todo o proibido é mais apetecido… e fiquei deslumbrada, anos. Na literatura Moçambique menos, talvez só o Luís Carlos Patraquim. Quando li a Monção apanhei um susto…

No livro tens uma epígrafe de Herberto Helder…

Infelizmente ainda não lhe li a obra completa, mas o que li chegou-me. É do que quero para mim, muitos saberes cruzados… É uma escrita que não tem um lugar, porque se processa em rede, faz arquipélago…

Sabes que ele se mantinha secreto, nem gostava de ser fotografado? Uma vez o fotógrafo moçambicano José Cabral fotografou-o enquanto estavam à mesa a conversar e foi um sarilho…

Compreendo muito bem. Não creio que haja nada em comum entre a pessoa e a escrita que lhe acontece… São duas entidades separadas. Também preferia continuar anónima.

Não te surpreende que a colonização tenha dado duas mulheres poetas, a Noémia e a Glória de Sant’Anna e a independência tenha silenciado as mulheres, reduzido a sua expressão a manifestações periféricas?

É o machismo… Um machismo feroz. Mas também não percebo algumas mulheres que falam de escrita feminina. Para mim a escrita não tem sexo, raça ou género… Acho que há aí um machismo invertido…

Os ângulos da casa…

São o meu reduto, o que me permite dedicar-me às paisagens interiores.

Haverá quem diga que a tua poesia é hermética…

Estejam à vontade. Mas é uma compreensão errónea da poesia, que não é para ser compreendida, ou racionalizada. Para isso existem os comunicados políticos, ou os manuais. A poesia é outro tipo de alimento…

Sorri. E o que escreve é assim:

OS ÂNGULOS DA CASA

4.

O corredor.

Haverá dentro dele uma grande corrida?

Ou cores ou corrimões ou coringas ou cordeiros ou cordas ou

concordâncias?

A mão apressa-se para chegar entretanto não há destinos.

A mão é solitária por natureza. E na sua solidão exerce o mundo. O

mundo exerce nela a matéria da incompletude. Não é do escuro

que a mão tem medo. A mão teme a cegueira da parede. A visão

atómica da coisa branca.

A mão em eterna construção cai no tempo. O tempo em eterna

construção cai na mão.

*

Se for para entrarmos entremos com o corpo todo e depressa.

Leais à Terra e ao fragmento da Humanidade. Entremos sem

recuos no instante terrestre.

Ai dor suprema.

Ai cor invisível. Indivisível.

Se for para entrarmos entremos com a unha toda e a tola

magnitude de sermos estrangeiros. Espelhos, de dentro iniciamos:

— dividimos o escuro e separamos as águas.

Se for para entrarmos entremos com o corpo todo e depressa e

usando a porta da frente.

*

Ao Francisco e ao Antero

O amor levanta em direcção ao sol. Entretanto, dele só sei a mão

calorosa. O grande toque desordenado. O delírio.

A febre.

A droga dos dedos e da lua.

O sol levanta para mim como se levantasse o mundo inteiro.

Aí então transpiro na loucura. Abato-me.

Morro e vivo inúmeras vezes. Afinal, este processo de vidas e

mortes é que é a Vida — talvez o remédio seja arder.

- E continuo. Louca e impávida.

Continuo na grande estrada.

2012.16

«

NOCTURNO

Comboio em caudas clandestinas. Subo até ao horizonte, sento-me

ao lado da razão.

A noite jé bêbada, todo o resto que me restou. Sou eu mesma, o

demónio do devaneio.

A substância intáctil da matéria. Já de nada sei. De mim fugi.

«

ALQUIMIA DO FOGO” 2

Repara no que há dentro do fogo antes dele arder.

Não olhes as cores lentas do vermelho, laranja, amarelo nem as

azuladas que se deixam fazer no brilho da luz.

Vê esta substância intáctil nos poros da retina. A nudez que se

veste nesta condição.

Repara dentro, bem a fundo a mestria com que se tece um coração

alado.

«

ALEGORIAS

Repara como se traduz uma lágrima.

Diga-me se tem cor ou sexo a sua língua;

a minúscula palavra que a habita.

Aves são apenas asas na hora do voo.

«

VOCAÇÃO

Boca.

Válvula

motora

onde o dragão

geme sem paixão.

Cauda.

Inóspito espaco

onde

afundo

o ser embriagado.

Externo capim

suco que borbulha

o intenso fogo.

*

Minha voz entra no fundo

e fode o espaco

este selvagem animal

o fogo aberto do orgasmo

esperma maduro

a descer para o útero

vocação carnal

clítoris duro

no compasso rubro

onde estremece o corpo

de volúpia. O leite, o suco, a vida.

*

Espero a tradição milenar de um pénis sedento. Para vingar a febre

mundana. Há metafísica invisível no cimo do ministério. Morre-se

de várias formas: ou se ignorando os dias, ou lendo-se o interior

dos séculos. Cumpre-se a lei do movimento. E ninguém pode

ultrapassar a sina do inabalável. A carne.

«

EXODUS

*

Nao escrevo para ser vista, escrevo para não ser vista. O

desassossego me embrulha.

Mas, não será a escrita a pior nudez?

Estou nua todos os dias que a grafia me busca.

A Lua entre os dedos, a maçã numa alusão indescritivel.

Há muito pudor na escrita.

Há muito poder na escrita.

A pele fresca canta e se impõe a uma tal leveza superior inigualável.

A abundância da supremacia.

No osso que sai a carne para junto da pupila engrandecer o século.

A veia apagada, essencial faz o seu trabalho ginástico no peso do

músculo.

Estou nua sempre que o verso me chega.

Sou nua sempre o verbo me cega.

A luz. O despropósito avanca ao domínio de qualquer coisa vestida

e arrebatadora.

A nudez é nua. Para os que têm olhos. A nudez é vaidosa para os

que querem ver mais do que podem ver.

E a escrita? Deambula de quarto em quarto na casa do agente, a

palavra vaga estreita e delgada no caminho da descoberta.

Há pudor e há poder.

— E agora acredito: “quem fabrica um peixe, fabrica duas ondas…”

*

O livro nasceu na veia. Foi então que partiu para dentro de outros

mundos.

Eram negros os dedos do homem. A cabeca parecia um asfalto de

guerra.

— Um analfabeto completo: bom para quem nasce. Tinha o

elemento essencial para viver:

a madura obscuridade vista no plano superficial.

Foi então que nasceu a selvagem Letra, nas mãos e nos dentes

ferozes.

A escrita. A voz superlativa. O canto cru. Tudo lhe nascera

rapidamente como a febre do universo.

— E ele não via.

A cada dia ao invés de compreender, descompreendia o

movimento sagrado do verbo.

Porque ele era seu próprio estrangeiro no estado urgente e

repentino, e os seus desejos eram vítimas do caminho errante.

Podia-se dele imaginar tudo: menos a arte do líquido rubro.

E depois já não se podia jurar, tornamo-nos nessa linha criminal;

porque bastava ver-se. Ou ser-se cego.

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