NOTAS SOBRE A EXPOSIÇÃO BAIXO ELÉCTRICO

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
6 min readMar 15, 2023

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João Albuquerque

Desenho de João Jcinto

(04 de MARÇO — 29 ABRIL 2023), DE JOÃO JACINTO, NA GALERIA 111

Catorze é o número de desenhos que integram a recém-inaugurada exposição de João Jacinto na Galeria 111, intitulada Baixo elétrico. Uma divisão destes trabalhos em três grupos não causará espanto a um público atento: nove de grandes dimensões, cada um deles com a representação de uma árvore como elemento central em contexto de espaço exterior; um quadro de médias dimensões, representando uma paisagem exterior com uma cascata ao centro; e quatro desenhos também de médias dimensões, com quatro perspectivas de um mesmo canto daquilo que aparenta ser uma galeria com uma exposição de pintura em fase de montagem, com vários trabalhos já na parede e outros no chão, supõe-se que alinhados com o lugar onde serão pendurados.

Encetando uma breve análise, sublinhem-se os evidentes contrastes entre os desenhos das árvores e os quatro desenhos da galeria. Nos primeiros, os objectos centrais (as árvores) são captados na sua singularidade, com uma exuberância (palavra que que não devemos confundir com nitidez, especialmente no caso do artista em questão) acentuada pela cor, e contextualizados em espaço exterior diurno. No segundo conjunto, os trabalhos são coloridos apenas a branco, negro e vários tons de cinza — as cores preferenciais de João Jacinto ao longo do seu trajecto artístico no desenho — e os seus objectos centrais (os quadros) cumprem funções determinadas e expectáveis — a de serem expostos (ou em vias de) no local próprio para o efeito (as paredes da galeria) –, mostrando-se assim acantonados num espaço claustrofóbico, fechado e iluminado artificialmente. Uma crítica preguiçosa tenderia a encaixar os efeitos contrastivos destas duas “séries” no costumaz esquema hegeliano, onde o desenho de uma cascata de um branco luminoso no meio de uma paisagem exterior enegrecida poderia operar como síntese dialéctica entre oposições de elementos separados como o negativo e o positivo, o claro e o escuro, o exterior e o interior, a natureza e o artifício. Em 2017, Bernardo Pinto de Almeida teceu as seguintes considerações sobre a obra de João Jacinto: “A pintura de Jacinto (e mesmo os seus desenhos que, na verdade, constituem outro medium de eleição para o artista, e que operam quase como se fossem pinturas monocromáticas) sedimenta matérias de que depois nascem formas, como se de um magma violento que as comprime, ou sugestões informes, texturadas e rugosas, cuja presença física se impõe por si mesma (…) De aí que o nascimento da forma, na sua obra, requeira o aproximar do informe, que a dor e o prazer sejam contíguos, ou que a luz nasça sempre de uma obscuridade que a precede, mas de que se liberta e ascende, sem todavia perder memória, ou muito menos negar, o que foi a treva de que nasceu.”[1] Em linha com estas palavras, a análise que aqui se propõe não tende a ser tão conclusiva e pacificadora como a do esquema dialéctico, postulando, em alternativa, que os contrastes e os paradoxos dos desenhos que constituem Baixo Eléctrico espelham uma inquietação sem remédio, mas também uma coerência artística do autor, onde o caos e a ordem, o exterior e o interior, a escuridão e a luz, formam oposições inextricáveis e simbióticas.

Visando a comprovação da hipótese acima colocada, dirija-se o olhar, em primeira instância, para os quadros representados nos quatro desenhos do canto da galeria: o que ali se vêem são riscos que produzem o efeito de rasura das obras de arte. Há, pelo menos, duas interpretações possíveis destas representações em contexto de galeria. Por um lado, as obras mostram-se indiferenciadas no seio de um espaço mercantil, legitimador do que é arte e do que não o é, quase sempre em função de uma conformação ao gosto do público, entenda-se, em função do que é vendável e do que não o é, e neste sentido pode haver aqui uma dimensão de denúncia e de protesto nestes quatro trabalhos. Outra interpretação possível, e não necessária ou totalmente incompatível com a precedente, reside em ver na rasura das obras de arte um acto de caotização que as equipara à natureza — sempre imprevisível, violenta, informe, e sem teleologia que determine uma função utilitária dos seus elementos –, confrontando e, em certa medida, desbaratando a ordem, a utilidade, a venalidade e a previsibilidade que a arquitectura rígida da galeria e tudo o que de estrutura social está nela implicado lhes confere.

Observar, num segundo momento, as árvores dos trabalhos de grandes dimensões, impele-nos a um retrocesso ao percurso de João Jacinto. Na sua relação com os elementos tipicamente chamados paisagísticos, Jacinto sempre preferiu desenhar um contexto — arbustivo, arbóreo, caudaloso –, apelando ao infinitamente grande da natureza deste mundo. Por outro lado, este contexto quase sempre foi obscuro, quase monocromático — os arbustos e as árvores surgem invariavelmente despidas e emaranham-se de tal forma que chegam a tornar-se indistintas, a luz é exígua, e parcas são as referências à presença do ser humano –, evocando o inóspito e impossibilitando a associação dos desenhos a outra estação que não o Inverno. Assim como os rostos anónimos de Jacinto nos interpelam profundamente, como que resgatados da sua indiferenciação no seio da multidão, também estas árvores surgem ante nós na sua singularidade como um acontecimento electrizante (electricidade que em alguns desenhos chega mesmo a ver-se representada explicitamente como uma espécie de aura à volta da árvore) cuja origem reside naquele contexto paisagístico obscuro. Apesar da frondosidade das árvores e dos arbustos, apesar da exuberância e multiplicidade das cores, apesar da emergência da forma e do evidente sentimento primaveril dos desenhos, estes conservam a memória da obscuridade, da inospitalidade e do informe de onde advêm. Há aqui um recomeçar artístico mais assente no esquecimento (do naturalismo, da visualidade realista) e confiante nas forças do inconsciente do que numa memória fotográfica ou em qualquer inverosímil hipótese de saída do artista para o “belo natural”. O exposto torna-se observável tanto em visão da totalidade do desenho como no detalhe. No que diz respeito ao todo, podemos dizer que as cores, apesar de exuberantes, não pretendem reproduzir nada, antes são pura experimentação, expressionismo que se nos apresenta turvo, como se víssemos através de um vidro sujo, de um copo de água, ou contemplássemos uma fotografia tremida. A potência do sujo, do caótico e do informe ainda se revela com maior acuidade na exame do detalhe: o papel ondula (possivelmente por ter sido molhado), o carvão apresenta um traço muito forte, a densa multiplicidade de técnicas e texturas alia-se a um traço intempestivo, inquieto, multidireccional, sem padrões perceptíveis, numa palavra, desordenado — uma luta contra tédio do que existe para passar para o lado do não-saber? –, e tudo conflui num emaranhado que não se acredita que possa vir a constituir uma forma, mas que o faz de modo inaudito.

Este comentário à exposição permite uma sugestão interpretativa ao seu título enquanto analogia musical: na arte de João Jacinto, o eléctrico que nos atinge não é estridente, cristalino, agudo como o som de uma guitarra, assemelha-se antes ao rumor de uma catástrofe — avassaladora, informe, obscura e grave. A mão não desce e não avança, antes fica subida e retraída a operar nas forças invisuais da pintura.

A exposição Baixo Eléctrico estará na Galeria 111 até dia 29 de Abril de 2023. Sem perda de coerência, João Jacinto oferece-nos uma inflexão importante no seu percurso artístico e propicia ao público, no confronto com a sua arte, uma agitação das águas do seu estar no mundo.

[1] Pinto, Bernardo Pinto de. (2017). Arte Portuguesa no Século XX — Uma História Crítica.

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