Fotografia de Arquivo Pessoal

“Meu prazer tem sido a forma poética concentrada do fragmento”

Maria João Cantinho
8 min readSep 21, 2016

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Mariana Ianelli, nascida em São Paulo em 1979, é autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela editora Iluminuras. No ensaio, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli (2013), da coleção Ciranda da Poesia, pela editora UERJ. Estreou na crônica com o livro Breves anotações sobre um tigre (2013), pela editora ardotempo, que também publicou seu mais novo livro de poesia, Tempo de voltar (2016). Recebeu o prêmio Fundação Bunge de Literatura (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude, menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas (Cuba) pelo livro Treva alvorada e já foi três vezes finalista do Jabuti, com os livros Fazer silêncio, Almádena e O amor e depois. Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, França, Hungria, Cuba e Argentina. Em Portugal, participa das antologias: Um rio de contos (2009), O prisma das muitas cores (2010), Contos capitais (2013), Um extenso continente — antologia de homenagem a António Salvado (2014), Cintilações na sombra III (2015).

Começaste a publicar muito cedo, com 20 anos, Trajetória de Antes, não foi? Não tiveste receio de publicar tão cedo?

Há 17 anos, o ambiente literário era outro, bem mais restrito em termos de publicações, novos autores, eventos. Hoje, há jovens escritores aparecendo a todo momento, há oficinas criativas aqui e ali, um diálogo muito maior acontecendo neste céu de pensamento que as redes sociais podem ser. Quando estreei com Trajetória de antes, foi sem qualquer correspondência prévia com outros poetas ou convívio com o meio literário. O maior estímulo que recebi, além do familiar, veio da leitura do Ignácio de Loyola Brandão, que assina a orelha do livro e não é poeta. Quero dizer, não foi uma estreia calculada, foi uma alegria inédita, um espanto inédito também. Escrevi uma introdução para o livro lembrando Mário de Andrade, que, quando da publicação dos seus primeiros poemas, disse que se sentia “mais medroso e mais humilde que ao nascer”. Mas esse medo, essa humildade, para mim, era mais a emoção de um mergulho no desconhecido já no ato de mergulhar. Não tem como alguém se acautelar disso, desse mergulho. Quando se é mãe, entende-se melhor por que um livro é como um filho. Pelo menos, agora, eu entendo melhor. No caso de uma estreia, um primeiro filho. Aí, nesse caso, quando se é mãe de primeira viagem, não dá para recear por muito tempo. É atirar-se na experiência, entregar-se à coisa toda. Foi o que aconteceu comigo. Publiquei aos vinte anos poemas que escrevi a partir dos dezesseis. Como o poema-título predizia, uma trajetória embrionária.

Pintura de Arcangelo Ianelli, avô de Mariana

E agora, 17 anos depois, conheces esse milagre que se dá pelo nome de Yolanda. Consegues escrever ou poesia passou a ser o acto de olhar para esse mistério? Como arranjas tempo, na tua vida ocupada, para a exigência da escrita?

Uma coisa e outra… Yolanda me mostra todo dia um rosto novo, uma surpresa com a vida que é também minha, uma inocência tão bonita que me dói. Olho para ela, olho, olho, e não me canso de olhar. Dedico meu tempo a ela neste início, e, nas ilhas de silêncio que aparecem, escrevo. É um tempo concentrado de uma hora, um pouco mais ou um pouco menos, que me exige igual concentração, o que não é nada mal. Ando pela casa com um caderno debaixo do braço, e vou trabalhando assim, aos bocados ou em avalanches, depende do mote. Ultimamente são crônicas que escrevo para a revista Rubem, que saem quinzenalmente aos sábados. A crônica, para mim, é irmã da poesia, é o sábado da semana, o mundo lá de fora quando encontra o mundo aqui de dentro, a luz do dia atravessando um janelão e inundando o chão de um ateliê. Também tenho um livro infantil para a Yolanda, ainda inédito, que conta uma história de família dentro do mundo das artes plásticas. Além disso, alguns poemas em fragmentos, porque, depois do lançamento de Tempo de voltar, no final de abril deste ano, e com a chegada da minha Yolanda, meu prazer tem sido a forma poética concentrada do fragmento.

Mas essa ideia do fragmento, que descobres por uma necessidade que activa o engenho, é algo que esteve presente na tua poética? Como influência estética?

São motes já familiares que visito agora, com liberdade, num outro fluxo, num outro ritmo, em associações de imagens, cada imagem como um cristal de momento. É como se eu estivesse chegando a uma altura da vida que me dá acesso a essa nova forma concentrada de poesia, que antes eu não poderia conseguir por experiência própria. São pinturas, quadros dentro de quadros, cada elemento dentro dessas composições um elemento que antes passa pela prosa da vida, pela experiência de cada imagem ali ter sido uma coisa tocada, testemunhada, observada, sentida.

A primeira vez que dei com a tua poesia não foi no Brasil nem através de amigos brasileiros, mas pela voz de amigos portugueses, onde a tua poesia é acarinhada. Publicaste Contos Capitais, em 2013, pela editora Parsifal, mas, antes disso, já Victor Oliveira Mateus te havia publicado em O Prisma de Muitas Cores, uma antologia da editora Labirinto, e, ainda, em 2009…ou seja, a tua relação com Portugal e com os poetas e escritores portugueses não é recente. A que deves esta ligação?

Meus amigos da literatura, eu os fiz através da literatura. Foram amigos que descobri e fui cultivando graças aos livros. Sempre acreditei que a palavra tinha esse poder, como de fato tem, de estabelecer um contato profundo com as pessoas, com o mais íntimo delas. E assim foram surgindo as amizades, a partir desse contato primeiro com a palavra. Dentro disso, acho que a relação com os portugueses é especial. Tem a ver com a maneira de fazer poesia, com a maneira de pensar e sentir poeticamente. Curioso que sempre li muito os poetas portugueses e estrangeiros em traduções para o português de Portugal. Minha biblioteca de poesia, que fica separada dos outros livros aqui de casa, é feita, mais da metade dela, de edições portuguesas. É uma questão de empatia às vezes maior do que com os poetas brasileiros. É tanto uma contundência quanto uma delicadeza que vem de um trato fino da linguagem, uma beleza que vem de um sentido, um trabalho com o que se tem a dizer e na maneira de dizer. Acho que vem daí essa ligação forte, de carinho mútuo, com Portugal e os portugueses.

Que poetas, entre os brasileiros e os portugueses, mais te marcaram na tua escrita?

Somando todos os tempos, porque cada tempo ilumina um poeta diferente, ou pelo menos assim acontece comigo, entre os portugueses, penso em Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, José Agostinho Baptista. Há outros tantos que admiro antes de tudo como leitora, grandes mulheres poetas como Sophia e Ana Luísa Amaral, mas estou citando aqueles em que vejo algum elo possível ou afinidade em termos de escrita. Entre os brasileiros, também somando os tempos, da adolescência até hoje, penso em Mário de Andrade, Drummond, Lélia Coelho Frota, nos poemas da morte de Henriqueta Lisboa e Hilda Hilst.

Referes aqui a presença de poetas mais velhos e alguns já desaparecidos. Mas também tens uma ligação com os poetas mais jovens ou desconheces o que se faz actualmente em Portugal?

Conheço e acompanho de perto o que se faz atualmente em Portugal, sim, apenas não são nomes com os quais eu pudesse responder à pergunta anterior, que trata de confluências. Sinto entusiasmo com o que leio das jovens geniais Raquel Nobre Guerra, Matilde Campilho, Golgona Anghel. Também, mais recentemente, a poesia de Filipa Leal, Patrícia Baltazar, e, com prazer especial e já há tempos, o trabalho de dois grandes autores que participam da cena poética portuguesa há décadas: João Luís Barreto Guimarães e Paulo José Miranda.

E o que achas da poesia contemporânea brasileira? Achas que a produção poética é intensa?

Arcangelo Ianelli

É bastante amplo o panorama da poesia brasileira atual, e não envolve, a meu ver, apenas a produção dos jovens autores. Nesse sentido, admiro muito certos poetas que estão produzindo discretamente, já há décadas, compondo obras fortes e importantíssimas, como Marco Lucchesi, Maria Lúcia Dal Farra, Marize Castro. Uma autora que estreou há pouco na poesia, e que já tem um lindo caminho na prosa de ficção, é Adriana Lisboa. Apesar de ela ser estreante no gênero, seus poemas não seguem tendências de coloquialidade ou de experimentação de linguagem da poesia jovem, é um trabalho que reflete, sobretudo, inquietações de um espírito no mundo, sendo tão personal, maduro e significativo quanto sua obra em prosa. No mais, tem sido intensa a produção contemporânea tanto quanto o pensamento crítico sobre essa produção, de modo que muitas vezes os dois se confundem numa abordagem metapoética. Um pensador que tem um papel importante nesse cruzamento de caminhos entre poesia e crítica, literatura e filosofia, é o Alberto Pucheu, que, além de poeta e filósofo, atua como um arguto leitor dos contemporâneos.

Já referiste aqui a tua ligação com a Revista Rubem, para a qual escreves crónicas. Mas também tens um trabalho ensaístico notável, que tenho acompanhado e até já publicaste na Revista Caliban um ensaio comparativo entre Ana Luísa Amaral e Cecília Meireles. Como convives, poeticamente, com esse lado mais ensaístico da tua escrita?

Esse convívio com o ensaio, e com a crítica, de um modo geral, me acompanha desde os tempos do jornalismo e do mestrado em literatura e crítica literária. Ainda falando da ligação com os portugueses, agora no terreno do ensaio, tive o prazer de escrever sobre a poesia de Hilda Hilst, Henriqueta Lisboa, Lélia Coelho Frota e Lupe Cotrim para o portal Vidas Lusófonas. Esse é um trabalho que levo adiante paralelamente ao da literatura, e digo paralelamente porque poesia e crítica, embora se conversem, cada uma me pede uma linguagem. Na crítica, há a participação de uma lógica poética, mas, na poesia, para mim, o que há não é alusão, não é escrever sobre isso ou aquilo, mas levar as coisas a dizerem por si mesmas sem necessidade de um discurso que as sustente.

E no plano da edição da poesia contemporânea brasileira, achas que há espaço para a publicação dos mais jovens?

Sim, publica-se muito. Há uma boa quantidade de editoras pequenas, hoje, que publicam em pequenas tiragens, de maneira que o livro de um autor jovem pode circular entre leitores do meio literário, isso sem falar em antologias virtuais. Acho que espaço não falta.

Leia os poemas de Mariana Ianelli aqui.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.