Mãe, quero literatura no topo do mural

Pedro Guilherme-Moreira
Revista Caliban issn_0000311
3 min readMay 24, 2017

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braço armado

Mãe, porque é que as palavras duras são mais doces do que duras as doces, e porque é que tanto duram as secas como se desfazem as que eles vendem em apresentações de vinte e oito comprimidos de cristais e tudo se passa num instante enquanto ardemos? Mãe, porque é que os milagres foram substituídos por talidomida? Escrevo-te a estas horas altas para disfarçar. Não quero que no topo da minha página do facebook esteja uma opinião política, mesmo que os meninos da quarta classe ma viessem a apodar de generosa, quero literatura aqui em cima, mãe. Lembras-te de como eu me sentia crescido quando passei para a terceira? Fiquei pequeno de novo, mãe. O recreio é severo. Ainda não consigo ser o mais forte nos domínios dos plátanos. Aflijo-me com os fracos, disse-te que este ano não os deixaria a descoberto, mas ainda não posso, mãe. Ainda fico nas escadas a olhar os grandalhões sobre o pão com marmelada. Quando tenho a boca cheia, desvio os olhos. É nessa altura que os pequenos são gozados e todos se riem. Quase levam os relapsos em ombros. É por isso que quando hoje ler a minha redacção política os meninos do quarto ano me apoiarão sem hesitações. Endorsement. Sabem que não levanto ondas, que sou fiável, mesmo que não concorde com multidões nem me junte a elas. O preço é relevante. Estão lá as meninas mais bonitas, mãe. Que ganho eu em querer fazer coisas com os nerds e as professoras? Tenho de ficar sozinho e disponível a comer o meu pão com marmelada para os grandalhões saberem que não pertenço. Que estou deserto. Livre. Mas escrevo-te, mãe, para te dizer que quero literatura no topo da minha página do facebook. Assim apouco a minha redacção política, que está por baixo. E digo-te o que importa, minha mãe, e digo-o completamente, e passo da literatura à vida, que a todos serve, por uma vez: vai correr bem, mãe, vai correr tudo muito bem. Afinal, a maior de todas és tu. Mãe. Eu, mais pequeno, vou a caminho da cidade que já não existe. Que vento atrasa as faias em Idanha, que sombra adianta as magnólias em Coimbra, que apneia suspende as areias em Francelos? E os invernos, mãe? Tu a separar-me as galochas de borracha preta e a cingires o meu sorriso ao essencial do sofrimento, as paixões negras, as gaivotas do Don Henley no baptizado do Marco, ninguém na estrada, ninguém na rua, a Joana como o grão do anjo e os corações candentes, o avô a posar com a avó junto ao portão verde e a deixar o BMW de estofos vermelhos de pele na palma da mão. E a trincheira agora. O rasgo na terra, os helicópteros ao longe, haverá resgate? Quem está pior? O escritor está de vísceras, deixá-lo. Mãe, achas mesmo que as raparigas gostam de rapazes altos? E alto, o que é alto, mãe? Davam leite simples e pão com marmelada. Davam felicidade em batas brancas passadas a ferro com vincos. Davam nomes. Bordavam. A Eduarda era padeira. O irmão atirava paralelos à nuca. A Sofia era e já não é. A Dona Laura será sempre. Não está em causa a memória de um. Está a de todos. E no meio de todos cada um tem ao peito o abismo de um tempo que não volta. Excepto para ti, mãe. Volta para ti a bandolete amarela, a saia curta, o cabelo armado, o stacatto. Uma frase em suspensão. Uma valsa, a tua mão em arco amplo, o corpo delgado. Toma-se nos braços. Roda. E roda. E roda.

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Escritor. Publicou “A manhã do mundo” e “Livro sem ninguém” na D.Quixote. Prémio Pina. Finalista Leya.