Lampedusa: a (im)possibilidade da memória em Rui Nunes

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
7 min readJun 29, 2017

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João Oliveira Duarte

(Lampedusa é um pequeno livro de 4 páginas, editado em maio de 2017 pela Paralelo W, com arranjo gráfico de Luís Henriques, que corresponde a um texto que Rui Nunes tinha escrito para a Cão Celeste em 2014, depois de uma visita à ilha italiana)

Há um termo alemão, daqueles intraduzíveis, que pode dar alguma luz ao que hoje passa por literatura: Einfühlung. “Criado” por Robert Vischer em 1887 — numa obra chamada Das Symbol –, com uma fortuna crítica assente, acima de tudo, na tradição hermenêutica, ele é correntemente traduzido por “empatia”. Mantenhamos essa tradução, apesar de haver dimensões do conceito, ao longo da sua história, que não são captadas pelo termo “empatia”. Na década de 30 do século passado, é por referência a esse pequeno termo que Brecht vai construir o “efeito de estranhamento” (Verfremdung) do seu teatro, construindo-o contra um Einfühlungstheather assente numa identificação emocional por parte do espectador — e já vamos ver em que medida é que Brecht é convocado.

Esta empatia, cujos mecanismos mereciam um estudo mais aprofundado, é o efeito de todo um conjunto de dispositivos, a começar no famoso enredo, redescoberto como se fosse um tesouro valioso enterrado pela maldade experimentalista do século XX, que trabalham dentro do campo literário e não se restringem apenas à escrita — festivais, autores, crítica, etc., tudo é arregimentado para a criação de “empatia”. Na sua aparência benévola, no seu movimento narcísico de bela alma, a empatia acarreta uma política, e uma política bastante determinada, bastando um pequeno esforço para que ela surja em todo o seu despudor. Esta política, para a qual Lyotard já nos tinha alertado nos anos 80 do século passado — nada aqui há de novo, nem há inocência ou ignorância que acuda –, é, digamos assim, o efeito da contaminação de um certo discurso, também imagético, que se encontra presente em toda a sua força nos meios de comunicação social.

Um exemplo. Relativamente à tragédia diária do mediterrâneo — e perguntemo-nos o que é que acontece quando a tragédia se torna diária, ou se podemos realmente continuar a usar este termo tão determinado –, uma das imagens mais conhecidas é a de uma criança morta numa praia. Esta imagem, reproduzida à saciedade, levou como é óbvio a uma discussão interminável e estéril relativamente ao efeito dessa sua disseminação. Mas antes de reactivarmos uma discussão que nada tem de novo — para quem não sabe, e parece que há muita gente a não fazer o trabalho de casa, este tipo de discussão esteve no centro do debate sobre a fotografia nos anos 30 do século passado — perguntemo-nos sobre o que é que ali é visível e de que forma é que na imagem se dá a ver um efeito de exclusão. Porque, em primeiro lugar, não foi e não é a única imagem de corpos (há várias, nesse vasto campo de morte que é o mediterrâneo). Mas, acima de tudo, há uma pergunta que nos devemos colocar: e se, em vez de uma criança — cuja indeterminação permite uma reapropriação emocional, uma empatia e uma identificação –, fosse um adulto que correspondesse ao estereótipo do muçulmano? E se, em vez de uma criança, fosse uma mulher vestida tradicionalmente, com a famosa burka? Este dispositivo imagético, na sua pretensa benevolência e transparência, acaba por se transformar num mecanismo de exclusão e de determinação, como se a tragédia fosse apenas aceite na condição de nos podermos identificar com um cadáver. Deleuze dizia, salvo erro, que o problema do humanismo reside no facto de funcionar por círculos em cujo centro se situa uma figura conhecida nossa: em primeiro lugar, homem (e não mulher), em segundo branco e, em terceiro, europeu: homem, branco e europeu, são a cifra que permite perceber grande parte do discurso contemporâneo, mesmo quando surge afectado por toda a facilidade da emoção. A criança, na medida em que é indeterminada, corresponde a um dispositivo visual que permite que nos identifiquemos com uma tragédia da qual nos sentimos expulsos e com a qual não queremos ter nada em comum.

Mas porquê este longo excurso quando se trata de um pequeno texto de Rui Nunes, texto que já tinha sido publicado em 2014, na Cão Celeste? Porque ele se situa, como se deixa facilmente perceber pelo título, no centro do que acontece diariamente no mediterrâneo. Mas mediterrâneo, entendamo-nos, deve ser aqui lido como se estivesse entre aspas: não designa apenas o mare nostrum — Rui Nunes usa este termo de forma não inocente, transportando e carregando ele toda uma história — e aquilo que acontece diariamente como designa, também, aquilo que não acontece já. E aquilo que não acontece já é, de facto, a quantidade de notícias que nos chegam das mortes no mar, que cada vez mais rareiam. E porque é que rareiam? A resposta, que não é difícil de adivinhar, reside na deslocalização da tragédia: longe das portas da Europa, ela inaugura uma política da morte.

“Lampedusa”, portanto, o nome de uma ilha perdida no meio do mediterrâneo, entre a Europa e o Norte de África. Como acontece em toda a escrita de Rui Nunes, quem aqui espere encontrar o momento feliz da empatia, a possibilidade de uma identificação emocional com as vítimas, não passará da segunda linha:

“Não se regressa aos mortos:

eles expulsam-nos de qualquer regresso.

Sôfregos da sua morte, flutuam

com o abandono de detritos:

em volta respira a água.

Expectante”

Expulsão é o termo chave e aquilo que impede qualquer forma de empatia — são os mortos que nos expulsam “de qualquer regresso”, “as mãos crescidas de ossos, a magreza dos braços”, esses “insectos (que) / tornam a morte um futuro luminoso”. Estes mortos que nos expulsam correspondem a uma categoria da escrita de Rui Nunes: o imemorial. Deles não pode haver memória, porque isso seria obrigá-los a subsumir-se a uma economia e a uma política cujos efeitos conhecemos. Uma economia, na medida em que eles serviriam para qualquer coisa, seriam um momento do sentido ou corresponderiam a uma pedagogia da morte. De cada vez que se celebra o final da Segunda Guerra Mundial, há sempre uma alma caridosa, cheia de boa vontade, que vem lembrar a realidade dos campos de concentração e que nos vem dizer que com eles aprendemos que aquilo não pode voltar a acontecer. Não se apercebe que assim subsume os campos a uma pedagogia, como se eles fossem o momento negativo no progresso do Espírito — esta referência a Hegel é aqui propositada, e serve para remeter para um texto de Jean-Luc Nancy sobre o sacrifício e outro de Bataille, uma recensão que escreveu sobre Les Jours de Notre Mort de David Rousset –, necessários a uma economia que não pode deixar de produzir barbárie sobre barbárie, que, para o progresso, só pode produzir barbárie sobre barbárie, em que o progresso é a barbárie sobre a barbárie. Não conseguirá nunca perceber, na sua boa intenção, aquilo que referia, algures, um sobrevivente: que nada se aprendia nos campos, que ninguém saiu de lá melhor.

É por causa disto que eu teria alguma dificuldade em dizer que este pequeno texto de Rui Nunes recai sob o domínio poético, apensar da mancha gráfica e da presença do enjambement. Pelo contrário, eu veria em cada frase a chegada do imemorial e uma paragem brusca que lhe impede o acabamento — de forma a tornar impossível qualquer forma de melodia, como se o sentido e o som corressem em direcções opostas.

“Atravessaram este mar que alguém chamou de nosso

mare nostrum,

Que alguém disse: cor de vinho.

Nada sabem de antigas enseadas, entre rochas e pinheiros,

quando as palavras nasciam por todo o lado

e os deuses perseguiam-se excitados de malícia.

Hoje, este mar transformou-os em ilhotas balouçantes

onde poisam as gaivotas,

enquanto círculos de aves necrófagas,

no céu desbotado, sobrevoam.”

Já referi que não me parece inocente o uso de mare nostrum. Este termo latino, que começou por ser usado pelo Império Romano para designar o mediterrâneo, carrega consigo uma história que este texto de Rui Nunes convoca — e lê, digamos assim, a contrapelo o que se segue. Porque Mare Nostrum não corresponde apenas ao uso latino do termo: ele é convocado, igualmente, por uma obra do poeta com filiação fascista Gabrielle d’Annunzio, Merope — também conhecido como Canti della guerra d’oltromare –, pelo uso que o fascismo italiano deu do termo, na tentativa de reconstruir o império romano e, por último, pela operação que o governo italiano instituiu para combater o problema da emigração (e é interessante notar a ausência de memória do Ministério da Defesa italiano, que não percebeu o que esse nome transportava consigo).

Toda essa memória é tanto convocada como, digamos assim, manchada, por essas “ilhotas balouçantes”, que são a cifra que vai permitir ler para trás, em direcção ao mare nostrum romano e ao inumerável povo dos mortos. É também o mare nostrum que, pelo que me parece, permite compreender a clivagem que o “hoje” institui entre as “antigas enseadas (…) quando as palavras nasciam por todo o lado”, por um lado, e a transformação do mar em “ilhotas balouçantes”, por outro; não que haja algo anterior a esse “hoje”, como se restasse ainda a memória de um lugar incólume, mas o tempo construído pelo “hoje” do texto institui-se como o sempre presente da repetição. É como se as “antigas enseadas, entre rochas e pinheiros” correspondessem, de facto, a uma imagem cuja legenda seriam as “ilhotas baloiçantes”, em que os “homens,/ pés mergulhados em merda e urina (…) não se juntam numa matilha / nem se erguem num hino”.

Dizia Derrida, algures, que a palavra “literatura” era latina e que, como tal, convocava toda uma história, só podendo viajar para outras latitudes sob condição. Talvez pudéssemos acrescentar que a essa história convocada pela palavra “literatura” — com as suas instituições e os seus direitos — teríamos de juntar o mare nostrum, este inúmero povo dos mortos — e, nesta medida, há muito tempo que a literatura não está à altura do seu nome. Inúmero povo dos mortos que, diz Rui Nunes, “nada esperam”. Que nos expulsam. “Enquanto a água respira: / saciada”. Ou, o que talvez seja o mesmo, insaciável.

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