João Pedro Cachopo: pensar o nosso tempo

Para quem não o conhece, João Pedro Cachopo é musicólogo e filósofo. Foi o autor de Verdade e Enigma: Ensaio sobre o Pensamento Estético de Adorno (Vendaval, 2013). Co-editou Rancière and Music (Edinburgh University Press, 2020), entre outras obras dedicadas ao pensamento estético e político. Como José Gil[1], André Barata[2] e Tomás Maia[3], só para referir pensadores portugueses, também o autor enveredou neste livro pelo pensamento intempestivo neste livro precioso, que se debruça, não apenas sobre a pandemia, mas essencialmente sobre o presente.
Começando pela afirmação de que «a pandemia não é em si mesma o acontecimento» (p. 10), o autor defende que o acontecimento, «precipitado pela conjunção de isolamento preventivo e uso exacerbado de tecnologias de remediação, é a torção dos sentidos, por meio dos quais nos reconhecemos próximos e distantes de tudo o que nos rodeia.» (Ibidem). Ora, a remediação digital, como ele próprio afirma, revelou-se como uma condição de possibilidade da experiência no mundo, «reconfigurando a topologia imaginária das nossas vidas» (Ibidem). É importante definir, desde logo, estes conceitos, pois eles não são despiciendos nesta obra. O conceito de «remediação» implica a «representação de um médium noutro médium» e é cunhado por Jay David Bolter & Richard Grusin[4]. Ele aplica-se à nossa experiência digital, que tornou possível a confluência dos diferentes media som, imagem e texto — num único médium (p. 11).

A hipótese avançada por Cachopo neste livro, a de que a pandemia precipitou uma torção dos sentidos que nos ligam ao mundo «constitui uma radicalização do pressuposto da segunda pergunta: o pressuposto — que não é consensual — de que há algo profundamente transformador nesta crise»(Ibidem, p. 25). Este pressuposto diz menos sobre nós do que ele revela sobre o mundo e é exactamente este aspecto que mais lhe interessa. Empreendendo um diálogo com vários autores e apresentando sumariamente as suas teses, Cachopo permite-nos compreender diversos pontos de vista desses autores sobre a pandemia, numa reflexão sobre o presente. Se, para Zizek, o fenómeno representa um golpe fatal contra o sistema capitalista global, para Byung-Chul Han, por exemplo, representa uma «viragem autoritária no mundo ocidental» (p. 19) por causa da implementação de medidas de vigilância severas e do controlo de dados. Para o primeiro, trata-se de uma viragem optimista e, para o segundo, pessimista. Para Han, além disso, o vírus reflecte a passagem de uma «sociedade do cansaço» para uma «sociedade da sobrevivência»[5].
Se a pandemia reflecte as «enormes desigualdades, fragilidades e contradições que atravessam o capitalismo global» (p. 26), questionemo-nos então de que modo ela exerce sobre as nossas vidas uma transformação radical, em termos éticos, políticos e ambientais. É nesse sentido que Cachopo empreende uma análise dos vários pensadores que escreveram sobre a pandemia, confrontando as suas teorias. Porém, o que mais lhe interessa é perceber como é que a imaginação, «o conjunto de ideias através das quais relanceamos o necessário, o provável, o possível» (p. 35), preside à transformação do mundo e o modo como ela foi afectada. Por isso, as análises de Naomi Klein ou de Byung-Chul Han, que colocam «a tónica no impacto de tecnologias digitais na nossa consciência» (Ibidem) se tornam incontornáveis para a reflexão. Interessa perceber como a pandemia operou uma metamorfose no modo «como vivemos, pensamos, desejamos, imaginamos e agimos» (p. 40) e, face a essa metamorfose, tomar uma posição.
Os meios digitais são hoje a nossa forma de manter uma «promessa de proximidade» e, neste aspecto, a remediação digital é, na perspectiva do autor, «herdeira da reprodutibilidade técnica» (p. 43), aquela que revolucionou a experiência moderna no final do século XIX e princípio do século XX. A esse propósito, Cachopo recorre ao texto benjaminiano «A Obra de Arte na era da sua reprodutibilidade técnica» para justificar o seu ponto de vista, explicando em que consiste essa aproximação e compara-a com a nossa época de remediação. O recurso a Benjamin, no sentido de estabelecer uma analogia, permite-lhe complexificar o debate, para compreender essa relação de proximidade/distância, na nossa era. A nossa relação com o espaço, envolvendo «uma promessa de aproximação do distante» (p. 48), altera-se, revelando-se também uma «promessa de equalização das distâncias.» (Ibidem). Todavia, é também a nossa relação com o tempo que se altera (p. 49). A relação do «aqui e agora», para parafrasear Walter Benjamin, no seu estudo sobre a reprodutibilidade técnica, altera-se profundamente com a remediação. Na análise da proximidade e da distância, «Benjamin desloca-se do plano da percepção para o plano da imaginação» (p. 53) e é justamente a este aspecto que o autor recorre para desenvolver os seus conceitos de remediação e de torção dos sentidos, a qual opera uma mudança da imaginação do sujeito.
No capítulo «Apocalípticos e Remediados, Cachopo parte do texto de Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, para comparar a atitude da visão mais pessimista, a dos apocalípticos, sobre a alienação das massas, fruto da televisão, da publicidade, do consumismo e, hoje em dia, agravada pelos meios digitais e pelas redes sociais, com a visão dos remediados (versão actualizada dos integrados) que olham com optimismo para os meios digitais. O objectivo do autor, ao recorrer ao texto de Eco, é o de «esboçar uma genealogia da atitude apocalíptica atenta ao lugar ocupado pela crítica à tecnologia» (Ibidem, p. 58) e, por outro lado, «insistir na dupla negação das atitudes do apocalíptico e do integrado» (Ibidem), sendo que o integrado é hoje o defensor entusiasta e acrítico dos novos media. Cachopo defende que se trata aqui de um desafio para a nossa época: o de nos darmos conta dos perigos da integração, sem, no entanto, «nos deixarmos cegar» por um certo reaccionarismo da atitude apocalíptica. Isto porque só assim poderemos debruçar-nos sobre «preocupações de carácter político e ecológico que a revolução digital suscita» (Ibidem), sem nos perdermos na lamentação pela alienação da condição humana ou por um qualquer ligamento originário ao mundo.
Com a revolução digital, a reflexão sobre a massificação da cultura transformou-se numa crítica à digitalização da cultura. Hoje, mais do que a questão da reificação da experiência, o que se procura denunciar é a «liquidificação da experiência», para utilizar a expressão de Zygmunt Bauman. O alvo da crítica apocalíptica é muito mais do que a alienação cultural ou o fenómeno da biopolítica. É sobretudo no campo da questão ambiental que o discurso apocalíptico se tornou mais premente e legítimo. Neste capítulo, Cachopo leva a cabo uma análise dos efeitos daquilo a que ele chama a remediação: «a remediação tecnológica ocupa um lugar entre as nossas experiências, mas não toma o lugar delas» (p. 64). Afasta-se, assim, da visão apocalíptica que vê na experiência digital o lugar da alienação. Por isso, afirma o que a remediação da experiência não é, dizendo que ela «não é a substituição dessa experiência» (p. 64), que «não cura uma falta» que é a distância física, pois esta é irremediável. A remediação é, antes, uma «outra experiência da mesma realidade» (Ibidem). Falta-nos o cheiro, o contacto, o sabor, em suma tudo aquilo que move os nossos sentidos, à excepção da visão e da audição, falta-nos o «aqui e agora» da nossa percepção.
Face à pergunta se há que combater a revolução digital, responde Cachopo que «o combate contra a tecnologia é a um só tempo injusto, perdido, equivocado.» (p. 66). A tecnologia digital não se constitui apenas como um elemento de manipulação, não conduz apenas ao individualismo, mas também produz novas relações com o conhecimento, quebrando «distanciamentos e hierarquias» (p. 67). Além dos perigos que ela comporta, e que o apocalíptico diagnostica, ela convida-nos a novas formas de nos relacionarmos com a realidade e hoje ninguém «escapa a ser, a um só tempo, apocalíptico e remediado», numa situação bem mais complexa do que aquela que foi diagnosticada por Umberto Eco.
Mas afinal, perguntemo-nos, o que é a torção dos sentidos? Trata-se de um abalo ou de um acontecimento que «consiste no impacto crescente que o cruzamento entre isolamento profiláctico e uso exacerbado de tecnologias de remediação exerce sobre os sentidos que dão sentido à nossa existência no mundo.» (p.68). E os sentidos não são os da nossa percepção, mas sim o amor, a viagem, o estudo, a comunidade e a arte. Esta «constelação», como lhe chama o próprio autor, justifica-se por ser o facto «de todos eles dependerem (…) do reconhecimento do próximo e do distante e se configurarem como exercícios de aproximação e distanciamento.» (p. 69). É esta relação de aproximação do distante que a pandemia alterou. Seguidamente Cachopo consagra um capítulo a cada um dos sentidos, analisando em que medida esses sentidos foram afectados pela pandemia e consequente transformação.
Recorrendo ao conceito de «enxame» de Byung-Chul Han[6], Cachopo analisa a noção de massa, no capítulo sobre a Comunidade. Trata-se do conceito de massa remediada. Segundo Byung-Chul Han, o enxame é uma massa sem alma. «Os indivíduos que se reúnem num enxame digital não desenvolvem qualquer nós. Não há, no enxame, qualquer concordância que consolide a multidão numa massa que seja um sujeito de acção.» (Byung-Chul Han, p. 22). A massa foi hoje, assim, transformada em enxame, em virtude da tecnologia digital, e o indivíduo «está preso a si, ao seu perfil, ao seu projecto» (Cachopo: p.89). O refúgio no anonimato e a tensão por não conseguir diluir-se na massa tornam-no virulento e ressentido. Toda e qualquer manifestação na rua é, agora, incitada pelo enxame. Relembrem-se as manifestações anti-racistas que se sucederam ao assassínio de Georg Floyd. A rua, como diz Cachopo, é «remediada» (p. 90). A manifestação prolonga-se nas redes sociais, onde todos comentam o acontecimento. A massa convoca, assim, o enxame, que a incita e mantém viva a manifestação. É por isso, adverte-nos o autor, que os protestos anti-racistas se tornaram tão rapidamente virais.
Sem analisar todos os tópicos do livro, que tornariam esta recensão exaustiva, perguntemo-nos com o autor: «que será feito de nós depois da pandemia?» (p. 107). Cabe melhor, no entanto, para evitar a passividade do «nós», a questão «o que faremos de nós depois da pandemia?» (Ibidem). A pandemia, conclui o autor, não mudou o ser humano nem as instituições humanas em si mesmas, sendo questionável o pressuposto zizekiano da queda do capitalismo. Será que a tecnologia remedeia (no sentido de remendo)? Cachopo é claro. «A tecnologia não remedeia: não substitui a presença do outro(…) a vivência aqui e agora» (p. 110). No entanto, conclui benjaminiamente o autor, «no momento em que o próximo se fecha sobre si mesmo, ele mantém acesos o farol e o rastilho de uma experiência do distante.» (p.110).
Escrito num tom fluído, a que Cachopo já nos habituou, sem deixar de lado o rigor filosófico, eis um livro que vem trazer novas questões — e novos desafios — e que suscita um amplo debate com os seus contemporâneos. É um verdadeiro testemunho da nossa época.
[1] José Gil, «A Pandemia e o Capitalismo Numérico», in O Tempo Indomado, Lisboa, Relógio d’Água, Lisboa, 2020.
[2] André Barata, O Desligamento do Mundo, Documenta, Lisboa, 2020.
[3] Tomás Maia, «O comum dos mortais (pensar a quarentena mundial), Revista Dobra, Desdobramento pandemia, 2020.
[4] Jay David Bolter & Richard Grusin, Remediation: Understanding New Media, Cambridge & London, The MIT Press, 1999.
[5] https://www.euractiv.com/section/global-europe/interview/byung-chul-han-covid-19-has-reduced-us-to-a-society-of-survival/
[6] Byung-Chul Han, No Enxame: Reflexões sobre o Digital, tradução de Miguel Serras Pereira, ed. Relógio d’Água, Lisboa, 2016.