Jean Portante e o tremor das palavras

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
5 min readSep 10, 2023

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Depois do Tremor é um livro que fecha um tríptico e abre um novo ciclo. Antes deste livro, Jean havia publicado duas obras, como O Trabalho do Pulmão em que aludia à língua que respirava nesse pulmão, o italiano, língua da sua origem. Depois veio A Reinvenção do esquecimento, onde já estava presente o tremor de terra que abalou a sua região natal, que evoca sobretudo a questão da memória.

Com Depois do Tremor, obra que se publica agora em português, é o testemunho poético desse abalo, que ocorre a vários níveis. Não só o do tremor propriamente dito, mas o tremor da língua, em que desaparece a língua que se respirava: o italiano. Todos os sinais dessa deserção da língua conferem a esta poesia uma atmosfera melancólica, tocada pela memória da perda. E, se atentarmos na dedicatória com que se inicia a obra, a perda faz-se a dois níveis: a San Demetrio, aldeia destruída pelo tremor de terra e a da sua mãe.

Logo na nota de autor, Jean Portante adverte o leitor, para que a entrada nesta obra, nem sempre de ´fácil leitura, seja mais clara para o leitor: «A terra tremeu em Aquila e nos arredores, no dia 6 de Abril de 2009 e o tremor destruiu a paisagem interior. Esta que, sem cessar, metia e escondia nos meus poemas. Ela era feita de pulmão de baleia e de memória a reinventar». A paisagem interior é a paisagem que Jean Portante evoca nos seus romances e na sua poesia. Ela é transversal na sua escrita. A paisagem dos seus antepassados e a própria paisagem da sua infância, passada em tenra idade, nesta zona de Itália. Quando o poeta alude ao pulmão da baleia, ele evoca metaforicamente a migração do seu povo e a sua própria, abandonando não apenas o território geográfico, mas também a língua italiana. O pulmão da baleia, aquilo que a faz respirar é a sua origem, que permanece na memória da baleia. Para concluir, nessa mesma nota, diz o poeta: «A minha memória é agora o fantasma do esquecimento». O tremor apaga aquilo que permanecia na memória, arrasa a terra, mas também a memória da infância e da própria língua. Por isso ele diz «fechar-se um ciclo».

A obra encontra-se dividida em 4 partes, cujos títulos são «Do que advém e não advém», «O fabricante de sul», «Os três tremores do jardim», que se subdividem em três partes, e o último: «Fragmentos do diário de um tremor». Muitos dos poemas são estrofes que são constituídas por 14 versos, falamos sobretudo de sonetos monostróficos». Porém, Jean confere a estas formas clássicas uma modernidade, tanto nos temas, como na própria forma e na sintaxe, onde está ausente a pontuação e o ritmo da leitura deixa-se conduzir organicamente.

O que seduz nesta poesia e a torna inesgotável são os vários níveis que se entrelaçam, numa linguagem plena de musicalidade. E se podemos dizer que é uma poesia em que entra a fantasmagoria nas suas formas poéticas, no entanto, ela não é condescendente com clichés ou sonhos, por assim dizer, fáceis ou sentimentais. Ela constrói-se num vaivém permanente entre imagem e reflexão e podemos falar desta poética como uma viagem por um mundo insólito e barroco, nos seus reenvios constantes entre a metáfora e o pensamento. Quando fala dos «ladrões subterrâneos» que são portadores de tochas, somos conduzidos por uma voz fantasmagórica, que se repete amiúde nestes poemas, cuja ambiência é essencialmente nocturna. «A escuridão mostra/o caminho. É ela o túnel. É nela/que correm as coisas», diz o sujeito poético na página 21. A noite e o tempo, a morte são componentes de um léxico que se repete amiúde. A temática do umbral e da passagem acentuam a visão, senão fantasmagórica, fantasmática deste universo, do qual desertou a vida das aldeias e das cidades, após o abalo sísmico. Por outro lado, sobrevém o silêncio e o sujeito poético é o guardião desse silêncio. Também se pode referir aqui a imagem do cervo, que se apresenta em vários poemas, símbolo da morte violenta: «uma folha cai e dir-se-ia a sombra/da haste direita do cervo ou sangue coagulado.//Dir-se-ia a sombra de mensageiro/ou morte que se apoia/sobre o que resta da noite(…)».

Descreve-se aqui um mundo de sombra, como se pode ler em vários poemas em que a ideia se repete, porém numa música que se tece entre as imagens poderosas e sublimes, enigmáticas. Podemos ainda dizer que a poesia de Jean Portante combina um registo erudito com o coloquial, o que estabelece um equilíbrio na linguagem, onde o labor poético conjuga igualmente uma «desinstalação» ou uma desconstrução da linguagem para produzir novas e inusitadas imagens, que surpreendem o leitor nesta viagem. Num lirismo pessoal e exuberante, o poeta reencontra funções exemplares da poesia, dizendo o que escapa e o que se move na memória e nas palavras.

Sente-se nesta poesia a transversalidade dos temas que atravessam a sua escrita e aparecem personagens como que saídos de um teatro, que ressaltam aqui do fantástico e do maravilhoso a que ele nos habituou nos seus livros. Lionel Ray, num prefácio a um dos seus livros, menciona também o tema da sombra, como estando presente em toda a sua poesia, com vários sentidos. A sombra, como a escuridão e a noite, evocando, através do seu lirismo, aquilo que é o mais frágil do humano. Como ele diz no poema da página 57: «Assim trabalha a sombra.// Ela toca nos segredos.». E essa fragilidade pode ser redimida pela memória, eis o que a poesia de Jean Portante procura neste percurso, evocando imagens da infância.

A realidade poética, se assim lhe podemos chamar, é paralela à da realidade imediata ou aparente. E aquilo que a poesia de Jean Portante faz é desfazer os laços e a realidade aparente para descobrir a vida interior das coisas, através das imagens e das associações que estabelece entre elas. Descobrir, portanto, uma linguagem que ressoa nas próprias coisas e que o olhar poético desvenda. Lionel Ray fala desta evocação, dizendo que «escrever é apagar e moldar, apagar para moldar.». Trata-se de uma técnica que o surrealismo trabalhou na poesia, um trabalho do «esquecimento», mas, de forma alguma, podemos apelidar esta poética de surrealista. Ainda que a presença do onírico seja muito forte, há uma ancoragem forte na presença da realidade. E esta presença evidencia-se sobretudo na última parte deste livro, onde a prosa se combina com o ritmo poético.

A devastação toma aqui vários contornos: «O tremor de terra devastou a minha origem. Como viver com tanta origem em ruínas?». Dizendo-se «órfão de origem» (p. 85), o poeta questiona também a própria escrita e a memória: «A minha memória é agora inabitável./ Uma memória fantasma como a aldeia onde percorri as ruelas/ há um mês(…) a escrita tremeu também.» E esta escrita, depois do tremor, é uma escrita fantasma, como o diz o próprio poeta, uma escrita que se afasta da sua origem. De uma origem plena e habitável, anterior ao tremor. E este afastamento irreversível é aquilo de que se procura dar conta, nesta obra poética. Um olhar melancólico atravessa o mundo real, para transformar a ruína em poema perene e salvífico.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.