Instruções para iniciar o dia

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
3 min readJul 22, 2020

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Por Miguel Royo

Foto: Kon Markogiannis

Primeiro é desembaraçar os sonhos da atenção, no lusco fusco que despede a noite. Abanar a cabeça com convicção suficiente para se soltarem dos cabelos. Mas nos poros resiste ainda a brasa dos medos primários, ardendo por baixo do tejadilho da cabeça. Como zinco aquecido, é preciso esperar que as imagens arrefeçam para as encostar às bermas do caminho por percorrer, abrindo passagem entre as ruínas de cidades imaginárias. O capitel caído na raiz da oliveira não deve ser confundido com o nosso rosto. É parafernália do sonho, mas admito que o possa ter sido. Ajeito então os músculos em movimentos que são absurdos iluminados pela candeia crescente da manhã, reato os nós das repressões desinibidas durante o sono e invoco as circunstâncias de uma vida: esta juventude com catarro, estes pés que se arrastam sobre o azulejo das lembranças, este contrato sem termo com a morte, esta vela gasta na fronte para me guiar no escuro como os Melanocetus. Tudo em aberto para os dias que se abalançam.

Urge então despoletar o olhar no escuro, como quem solta cavalos antes do espreitar do dia. A luz pia entre as frinchas da persiana e é incongruente porque a luz não é pássaro, mas é verão e há frutos que pendem sem mãos esperando e ninguém dá conta disso. E avançar. A comoção de um membro há de bastar para avivar o galope dos primeiros cavalos. Os últimos obstinam-se simbolicamente em permanecer deitados. Porque há um conflito entre aquilo que o dia propõe e o que a cabeça acredita. Propõe o dia coisas simples como café com leite, vozes ou movimentos repentinos. Mas os cavalos relincham, não se rendem à cafeína. O dia não lhes promete o feno.

O que alavanca o êmbolo da vontade acaba por ser uma qualquer nesga que corrompa o quotidiano e jorre o tutano do dia, coordenada onde se fixa o pião das horas: poderá ser o ângulo de um rosto, a incidência oblíqua da luz sobre uma esquina previamente ignorada, duas vozes em uníssono em Sá da Bandeira ou a pena achada no granito da varanda, já sem a ave. Reminiscência da luz? É isto que acaba por espicaçar a magra motivação, que clama a dança dos ossos subvertendo a banalidade de um dia mil vezes ensaiado no coberto onde os pensamentos se congregam para trocar meia palavra. Porque é difícil encontrar esse cardo que estica o caule acima da maleza para forçar uma cor no terreno. Olha-se com os olhos manchados de familiaridade e os objectos aparecem nas nossas mãos antes de lhes decifrarmos o uso. O copo, o cinzeiro, a colher, uma faca que nos surpreende com um clarão repentino às três da tarde, avivando funções reprimidas, sugerindo uma nova forma de rasgar o dia. É preciso renovar os sentidos, quem sabe beber do cinzeiro, acender a água com o isqueiro e esperar uma revelação, arder com o tempo até que esgotemos os minutos e nos fechemos na gaveta sem chave da noite, voltados para dentro como rebentos cíclicos. Deitar no leito e abandonar os objectos, trazer as caras à tona do espelho fosco do sono. Deixar que morram nos lençóis. Porque é a morte que os aconchega. Sei-o pelos cavalos que relincham cansados. Pelo mar que me lambe os tornozelos. Pelo dia marcado no calendário futuro — durmo porque ainda não foi este.

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SOBRE O AUTOR

Miguel Royo é arquitecto, vive no Porto e escreve nos tempos clandestinos. Nasceu em 1993 em Valência (Espanha), mas cedo emigrou para Portugal. A sua tese de mestrado é sobre a importância simbólica do espaço no filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovsky. Publicou artigos na revista The Apollonian, The Jim Morrison Journal, na Revista Dédalo e alguns poemas no site da Enfermaria 6. O seu trabalho pode ser consultado em miguelezcuroyo.wordpress.com.

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