“Impressões de Michel Foucault”, de Roberto Machado: O trabalho de Memória

Ed Caliban
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8 min readAug 8, 2017

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Ernani Chaves

Roberto Machado

Do vasto campo semântico ao qual “impressões” nos remete, dois sentidos parecem indicar, com precisão, o que caracteriza esse livro: o primeiro, diz respeito à marca, vestígio, rastro; o segundo, a um gênero literário próximo da crônica ou do diário, em que se mesclam sensações, sentimentos, reflexões, relatos, experiências de viagens. Esses dois sentidos, por sua vez, estão entrelaçados ao trabalho da memória, ou melhor, do esforço não apenas de lembrar, a partir desses rastros e vestígios, que como pegadas deixadas na areia, o vento do esquecimento teima em apagar, mas também o de fixa-los por meio da escrita, para que eles permaneçam vivos e constituam uma espécie de legado às gerações futuras. Impressões de Michel Foucault, o mais recente livro de Roberto Machado, parece ter sido escrito com essa intenção.

Nessa perspectiva, ele bem poderia também se chamar História de uma amizade, tal como Gershom Scholem intitulou seu livro de memórias sobre Walter Benjamin. Pois apenas a ‘amizade’, considerada um misto de ‘confiabilidade e integridade’, como o próprio Scholem sinalizou no “Prefácio” de seu livro, pode conceder a esse tipo de relato alguma ‘autoridade’ àquele que narra, uma vez que essas ‘impressões’ não surgem a partir de uma narrativa objetiva, distanciada, precisa e exata, cuja matéria seria apenas a obra — de Benjamin ou de Foucault — como se se tratasse de um trabalho acadêmico. Ao contrário, a compreensão do pensamento, da obra, nos dois casos, também se alimenta das impressões afetivas, tornando-se inseparáveis delas. Além disso, como separar a história de uma amizade da própria história daquele que a conta e da história do seu tempo? Se no relato de Scholem vimos ressurgir a Alemanha desde os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial até o começo da Segunda, o de Roberto Machado nos remete ao Brasil desde os anos que imediatamente antecederam ao golpe militar de 1964 e aos primeiros anos da ditadura, até 1984, ano da morte de Foucault. Histórias pessoais que estão, portanto, vinculadas à história de uma época.

Entretanto, uma diferença importante marca o relato de Scholem e o de Roberto Machado: no primeiro caso, são dois jovens que se encontram e se conhecem, a fama de ambos só virá depois; no segundo, trata-se do encontro entre um jovem professor de filosofia da PUC do Rio de Janeiro, nordestino do Recife, com uma intensa militância política na esquerda católica do Brasil pré-1964 e que saiu do pais, um ano depois do golpe, para fazer pós-graduação em Filosofia na Bélgica e um filósofo já famoso e consagrado por um livro, o qual, segundo célebre manchete de um jornal parisiense, “vendeu mais que pãezinhos” no verão de 1966. O primeiro encontro de ambos, em maio de 1973, quando Foucault proferiu as cinco conferências intituladas “A verdade e as formas jurídicas”, na PUC carioca, não poderia ser mais emblemático: o professor, que há pouco havia se encantado com As palavras e as coisas, embora discordasse de suas teses principais, e o filósofo que apresentava, nas suas conferências, sua concepção de poder disciplinar, base do Vigiar e punir, que viria ser publicado dois anos depois. De um lado, o professor interessado na “arqueologia das ciências humanas”; de outro, o filósofo já inteiramente voltado para a “genealogia do poder”.

Esse primeiro encontro, que também já era, num certo sentido, um desencontro, marcaria de uma vez por todas a amizade e a intensa colaboração intelectual que daí se seguiu. Como Roberto mostra à exaustão em seu livro, ele e Foucault nem sempre concordavam em tudo, aliás, essa não era, de modo algum, a condição para que continuassem amigos. O que o leitor tem nas mãos não é, portanto, a simples história da admiração por um grande filósofo e do fascínio por ele exercido. É, principalmente, a história de uma amizade, a qual, para lembrar uma das últimas entrevistas de Foucault, onde ele celebra a amizade como um modo de vida, não tinha, de início, nenhuma forma. Essa é, me parece, a matéria viva de onde brota esse livro, a necessidade de dar uma forma a essa amizade, em meio a concordâncias e discordâncias, a proximidades e distâncias. O reconhecimento, por exemplo, da “extrema doçura que transbordava dos olhos” de Foucault, não fizeram com que Roberto deixasse de assinalar que além de generoso, Foucault fosse também, muitas vezes “cruel”.

Foucault entre José Carlos Castro e Benedito Nunes, professores de Filosofia da Universidade Federal do Pará, aquando da visita de Foucault a Belém, em Novembro de 1976.

É importante assinalar, portanto, que esse livro não é um elogio desmesurado a um Foucault idealizado. Nesse sentido, lembremos, por exemplo, o pouco entusiasmo de Foucault quando Roberto lhe disse que iria escrever uma tese de doutorado sobre a ‘arqueologia’ ou ainda as suas diferentes opiniões sobre diversos filmes, quando Roberto, então assíduo ouvinte dos cursos no Collège de France, já participava do círculo de amigos mais próximos de Foucault. Roberto insistiu no tema de sua tese e legou a nós, leitores de Foucault, mas também leitores dele, Roberto, um dos clássicos dos estudos foucaultianos no Brasil. Nem sempre partilhando as mesmas opiniões sobre os filmes que assistiam, ambos, entretanto, tiveram uma participação decisiva em dois filmes importantes: Foucault, colaborador no filme que Renée Allio dirigiu a partir do dossiê sobre Pierre Rivière em 1976 e Roberto, roteirista de “Ato de violência”, dirigido por Eduardo Escorel, em 1980, a propósito do caso do famoso “Chico Picadinho”.

De 1973 a 1984, Roberto Machado privou da amizade de Foucault. Em fins de 1973, alguns meses depois das conferências na PUC, ele já estava em Paris para assistir ao curso “O poder psiquiátrico”. Daí, até 1980, não só foi ouvinte dos cursos públicos, mas também participante dos seminários mais fechados, que Foucault coordenava no Collège de France, no qual seus participantes expunham suas pesquisas específicas. Dessa colaboração intensa surgiu Danação da norma: a constituição histórica da psiquiatria no Brasil, publicado em 1977, que deu origem a diversos trabalhos, em diversos lugares do Brasil, na década de 1980 em especial, a pesquisas semelhantes. Além disso, todas as visitas de Foucault ao Brasil, a partir desse primeiro contato em 1973, tiveram a participação decisiva de Roberto, mesmo quando ele não estava presente, como é o caso da segunda visita a Belém, em novembro de 1976.

Para o estudioso de Foucault esse livro, sem sombra de dúvida, é muito mais do que aquilo que ele pode sugerir à primeira vista ao leitor comum, qual seja, um conjunto de anedotas acerca da vida pessoal de um grande filósofo. Aliás, da vida pessoal de Foucault, esse livro não revela nenhum grande segredo inconfessável, nenhuma grande novidade que abalaria Paris. Entretanto, ele revela o quanto numa conversa informal, na cozinha do apartamento de Foucault em Paris, algo se expõe no campo do pensamento. O mesmo se dá quando ambos caminham numa praia carioca ou nordestina ou ainda, em outra conversa, desta feita no apartamento de Roberto no Rio de Janeiro. Ou seja, o leitor vai acompanhando como essa amizade vai ganhando forma em meio à própria vida ou ainda, que se pode pensar em qualquer lugar, em qualquer ocasião, desde que haja, para tal, um vínculo afetivo e um interesse comum, o que nem sempre acontece nas instituições que construímos para serem os lugares do pensamento.

Entretanto, isso não é tudo. O mais importante é que esse livro expõe também o que Roberto pensa da própria filosofia de Foucault ou ainda, como ele a compreende. Eu resumiria isso a dois aspectos, que considero fundamentais. O primeiro, é que o pensamento de Foucault prima muito mais pela descontinuidade temática e de abordagem do que por uma presumida continuidade. Com isso, Roberto toma uma distância crítica em relação a um tipo de interpretação bastante comum hoje em dia, que procura encontrar fios de continuidade na obra de Foucault. Como entender, pergunta ele a certa altura de seu livro, que Foucault diga que ora seu problema foi o do sujeito, ora foi o do poder? Como compatibilizar essas duas respostas diferentes senão pelo permanente deslocamento que Foucault opera no seu próprio pensamento? A resposta não estaria, portanto, em investigar o quanto haveria de verdade ou falsidade nessas diferentes respostas, para que o intérprete se decida por uma ou por outra, mas sim em situá-las estrategicamente na obra, ou seja, ambas são verdadeiras, mas somente o são quando referidas a este ou aquele momento da obra. Nem o próprio Nietzsche, que Roberto reputa como a mais importante referência filosófica no pensamento de Foucault, escapou dos deslocamentos e das mudanças de perspectiva. A segunda, diz respeito ao papel dos cursos, das entrevistas, das conferências, no entendimento da obra, para além dos livros efetivamente publicados. Nesse caso, Roberto não deixa de assinalar que faz um uso muito prudente dos “ditos e pequenos escritos” de Foucault. E, para justificar isso, não hesita em reiterar sua proximidade com “Michel”! Aliás, que o leitor fique atento, para o fato de que Roberto ora chama Foucault de “Foucault”, ora de, simplesmente, “Michel”. O uso do primeiro nome entre os europeus, como sabemos, é índice de intimidade, de proximidade, de amizade. Assim, “Michel”, ao contrário de Deleuze (nunca chamado de “Gilles”), cujos cursos, primeiro em Vincennes e depois em Saint-Denis, Roberto também acompanhou por vários anos, “jamais falava do mesmo modo sobre os mesmos temas”. Isso implica, segundo Roberto, na imperiosa necessidade de relativizar o que diz Michel, “sobretudo nas entrevistas”, as quais trazem a marca do momento, do país em que foram dadas, do assunto tratado, da preferência filosófica de seu anfitrião, a quem muitas vezes ele queria agradar e até mesmo do interesse que lhe despertava o rapaz que tinha feito uma pergunta. Nessa perspectiva, todas as vezes que se trata de “Michel”, estamos diante de um argumento que extrapola sua legitimidade do âmbito do estudo da filosofia de “Foucault”, para também amparar-se nos laços estreitos da proximidade afetiva que os uniu.

Por fim, gostaria de assinalar que esse livro também traz consigo uma marca que caracteriza todos os outros livros de Roberto Machado: ele é escrito com uma limpidez, com uma clareza, com uma elegância refinada, que raramente encontramos entre os estudiosos da filosofia no Brasil. Essa limpidez, essa clareza às vezes tão incômoda, como se nada pudesse ficar obscuro, equilibra, do ponto de vista da escrita, a reflexão e o afeto, o momento em que a filosofia de Foucault assume o primeiro plano e aquele outro, em que a figura de Michel se torna protagonista. Livre da necessidade da nota de rodapé e das referências bibliográficas de acordo com as regras da ABNT, estamos diante aqui, certamente, não apenas do professor Roberto Machado, renomado especialista na filosofia de Foucault, mas do Roberto contador de histórias, um Roberto que tenho a alegria de conhecer há mais de três décadas.

SOBRE O AUTOR

Ernani Chaves é Professor Titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Autor de “Michel Foucault e a verdade cínica” (Campinas, Editora PHi, 2013).

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