ficção, talvez ensaio…

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
8 min readJun 17, 2023

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Shevirat, Técnica-mista sobre tela, 2022, Helena Barbagelata

Demétrio Panarotto

Há determinadas coisas que não há como pensá-las como mentira, pois não há nelas qualquer potencial de verdade. Isso é de uma obviedade estonteante, na mesma medida que enrubesce o rosto ter que tratar do assunto assim de maneira tão simplória, como se tivéssemos perdido a capacidade de discernir sobre coisas óbvias, na contramão de elementos potentes que não resplandecem aos olhos do mundo agora.

Deste modo me interrogo: será que em algum outro momento (da história) recente (sim, muito recente) a elipse monumental construída por Stanley Kubrick no filme 2001, Uma Odisséia no espaço, de 1968, tenha tido tanta potência crítica para se pensar o contemporâneo?

Vamos a ela: um homem de Neandertal (ou de algum lugar no passado), depois de uma disputa tribal, joga o tacape para o alto e, a partir de um corte primoroso, o tacape chega até as mãos de um homem em um futuro promissor que conquistou, através de suas virtudes, a possibilidade de ir ao espaço. A cena, de maneira rasa, nos diz que o homem — mesmo com o desenvolvimento científico e abalroado pelas novas tendências tecnológicas -, continua se comportando como no passado. Dito de outro modo, não é a tecnologia que faz dele outra coisa qualquer para além daquilo que grosseiramente ele é. Destaco essa passagem para pensar o momento atual reforçando o que disse no primeiro parágrafo: o fato de ainda precisamos perder tempo explicando o óbvio e tendo que desdizer coisas básicas que a ciência já se encarregou de explicar.

Não obstante, e contraditoriamente, porque motivo é que questões como essas, que nos soam potentes (como a que apontei a partir da cena do filme do Kubrick), surtem muito pouco efeito, praticamente nada, junto às massas da contemporaneidade que estamos inseridos e indefesos? Uma das respostas pode vir pelo fato de que, por conta da facilitação digital ao acesso às imagens — estamos falando de coisas que acessamos de uma maneira muito rápida e prática; diferentemente do mundo analógico, em que o acesso apresentava outras dificuldades -, essa potência foi esvaziada.

Talvez isso se dê (e aqui o meu argumento também possa ter certa ligeireza), pois vivermos em um momento em quea potência é desconfigurada e isso faz com que a imagem seja lida como se fosse um mero elemento informativo, algo como: a elipse genial de Kubrick. Ou seja, Kubrick é um gênio e é gênio por ter construído imagens como essas, somente. Como se não houvesse mais nessas relações a potência da experiência (que em partes ainda pode ser pensada como benjaminiana), daquela que se dava em momentos em que tínhamos uma sede, um desejo descomunal, em procurar e descobrir, em buscar saber do que se tratava.

O espaço de conversa foi reequilibrado por outras forças. A facilitação desse processo todo fez com que as imagens em um mundo digital pareçam tudo um pouco mais do mesmo. Tecnicamente, filmes como os dos Kubrick, dentre tantos outros nomes representativos, parecem (e aqui mais uma obviedade), filmes de youtube vistos no yuotube. Não é possível falar em cinema e na potência do cinema em uma mídia que foi feita para filmes ligeiros. Assim, ao vermos os filmes de Kubrick no youtube (muitas vezes apenas algumas cenas) tornamos os filmes, caindo na arapuca da plataforma, ligeiros.

O que me leva a crer que as genialidades do passado não estão sendo lidas como se deveriam, ou talvez, porque não, esse modo de ler as coisas não passa de um modo, perdoem-me pela sinceridade, restrito hoje a pequenos nichos. Por mais que possamos usar termos que criem diálogos com os argumentos que construo, palavras que refutem esse processo, como coachnização, ou influencerização, ou ainda o processo anterior que sustenta esse modo de estruturar o pensamento de modo ligeiro, a Wikipédia (do mesmo modo usada por nós para pesquisas rápidas e, em alguns casos, equivocadas), parece-nos óbvio que o boi do pensamento passou por outro filtro de relações, e que perdemos, ou não identificamos de modo certeiro, a maneira de se colocar como ponto, em amplitude, de diálogo.

(aqui me parece que cabe outra pergunta, considerando a lógica moderna na qual estamos inseridos: será que os tempos conseguem ler de modo perspicaz os momentos históricos ligeiramente anteriores? Ou se necessita alargar o tempo para uma leitura mais precisa?)

A situação como se monta permite-me dizer, como resposta, que é o mundo lidando com a ficção em outra monta, de uma maneira diferente daquilo que gerou um tipo de ensinamento nas universidades acerca do próprio conceito de ficção, um ensinamento que, muitos dirão, ganha aspectos de ruína, e não discordo, a questão passa a ser como lidar com ele.

Assim, diante do caos, da mentira que não pode ser verdade, há uma suposta ficção. E esse é o ponto, de que ficção se trata?

Ao mesmo tempo, não dá para deixar passar em branco o fato de que a vida do dia a dia se tornou algo que parece uma ficção ou em uma medida que, estrepitosamente, soa como uma ficção, mas não é (ou, de outro modo, não é a mesma de um momento anterior, ou a mesma que a crítica em algum momento justificou como sendo). É oportuno, nesse ponto, salientar que o mundo como uma ficção é diferente de uma ficção sobre o mundo.

Ainda, acho que a questão passa por esse elemento caótico acima citado, um caos que também foi lido de modo potencial por parte da crítica literária, mas que assim o era se protagonizado através de uma perspectiva, digamos que, romantizada, como ponto de revolta a uma imposição social. Todavia, e talvez esse seja o grande ponto da discórdia, não é assim que acontece, o caos não parte das massas, mas passou a ser algo muito bem engendrado por uma estrutura maior que maquia a cena. Um mundo com uma suposta ficção e teleguiado por uma realidade dirigida, monetizada e tal qual horrenda como outros momentos do passado.

Deste modo, a imagem d“o tacape passado da mão de um homem de Neandertal para a mão de um homem que conquistou, através de suas virtudes, a possibilidade de ir ao espaço” é maravilhosa como ficção, mas no momento em que nos deparamos com a repetição salobra dessa imagem diariamente, é o caos ficcional com o qual não sabemos como nos portar, afinal, está no dia a dia e, de modo ainda mais medonho, migra para a “ficção”.

Não obstante, esse parece ser o ponto nodal da atual situação em que nos encontramos, pois, por mais que não queiramos e que entendamos o esgotamento que uma ação como essa nos oferece, seguimos parando para discutir questões que já deveriam ter sido absorvidas pelo espectro social e que, propositalmente, não foram e que não serão. Questões que deveriam estar um par além dessa ideia tola que resplandece na configuração ‘verdadeiro ou falso’. Mas que, diante de tantas incongruências, nos sentimos exaustos de ter que retomarmos a algum ponto básico para que possamos nos posicionar e dizer, simplesmente, não (para determinadas banalizações).

E a configuração maior é que sabemos que continuamos lidando com aquilo que movimenta a vida do mundo do dinheiro, da qual fizemos parte e que parece que não temos para onde correr. O dinheiro é sempre a mãe mestra de toda essa incongruência, pois ele está sempre, e perdoem-me pela generalização proposital, sempre, à frente das coisas, antes que as coisas se coloquem como tais.

Assim, e sugerindo uma mudança ligeira no foco do exemplo sem me distanciar da discussão, se diante dos horrores causados pela primeira, segunda guerra mundial, dentre outras tantas recentes, ainda temos que retomar o ponto de que a guerra não se movimenta apenas por esse ou por aquele lado, mas por conta de uma necessidade do mundo do capital de fazer guerra, é porque não tivemos a capacidade mínima de nos colocarmos de outra maneira diante da discussão e, desse modo, fomos vencidos, não por aqueles que fazem a guerra, esses apenas ocupam a linha de frente, mas pelo dinheiro que a movimenta. O lucro que se tem por trás de milhares, milhões de pessoas mortas, é sempre (vejam o sempre outra vez) maior, muito maior, que as vidas humanas que a guerra saqueia. Colocar pessoas a morrer em uma guerra é apenas reacomodar as peças na vitrine da loja, no caso a jornalística, que parece se orgulhar de apenas manusear os símbolos que movimentam a economia.

Movimentar a economia a que custo?

Se por um lado vivemos num mundo que nos oferece supostamente uma vida melhor do que a de nossos antepassados, por outro, essa vida, como no passado, é para poucos. Não conseguimos — e há um propósito por trás — superar a dicotomia entre o bem estar de poucos, de muito poucos, sustentado pelo mal estar de uma maioria. Se no passado faltavam acessos às informações para que tomássemos consciência de que poderíamos ser outra coisa mais do que meros escravos da estrutura, hoje a informação passou a ser deslocada para que a nossa condição de escravos sociais não se altere. Ou seja, continuamos discutindo verdades sem mentiras e mentiras sem verdades, ou, de outro modo, continuamos apagando fogo por conta de uma educação que não nos dá a oportunidade de transgredirmos o espaço capitalizado no qual a educação se encontra inserida.

Dinheiro.

Pessoas comercializando o ensino a partir de uma disputa de narrativas.

Consequentemente, em algum momento parece excesso dizer que a educação não salva, ou só salva se nela tivermos a percepção de que aconteceu e que não deveria se repetir de modo cíclico.

As menções a outros momentos históricos que poderiam evitar que isso tudo voltasse a acontecer não passa de um reduto informativo — como se os professores estivéssem preenchendo tabelas -, e não da ordem educacional.

E respondendo a pergunta que deve ter passado pela cabeça de vocês, não, não tenho a saída para isso.

A partir do momento em que a educação se transforma em algo informativo em que a morte de milhares de pessoas, ou a calcinha da fulana, ou a genialidade do Kubrick, não passam de algo filtrado pela mesma ótica, de uma unidade monetária vencida, é porque aceitamos que não há outra alternativa e permaneceremos à espera de algo pior ou da continuidade do mesmo, afinal, ao invés de nos distanciarmos, não deixamos de revisitar os mesmos lugares da história, de modos ainda mais perversos, e muito menos humanos do que em outros momentos.

Para fechar — e poderia partir do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury -, mantendo-me no espaço de uma cena de cinema e citando outro ícone, o filme de mesmo nome de François Truffaut, de 1966, chamo a atenção de vocês para a cena do filme em que a personagem, a Linda, está à espera de que o moço do canal de TV cite o nome dela para, num jogo cênico de uma suposta inclusão através de uma opinião a respeito de um assunto banal, ela concorde com algo que ela não faz ideia do que se trata. È o jogo de inclusão sem que haja a suposta inclusão. O nome dela foi escolhido a dedo, e citado para que aceite o local vil e vão em que se encontra.

Por favor, peço nesse momento que façam o exercício, como se fosse um enjambement, de pensar a cena do filme doTruffaut como se fosse sequência da cena do filme do Kubrick que abordei acima: perceberam como a tecnologia nos empurrou para o mesmo local do tacape?

Com o tacape batemos no computador à espera do like que concorde com aquilo que acabamos de, consensualmente com a banalização do mundo, repetirmos. Ou com o tacape batemos no outro. Assim, diariamente, aquilo que deveria ou poderia ser um jogo crítico se transforma em repetição mecânica. Estamos outra vez repetindo em massa a mesma cena, respondendo aos amigos virtuais perguntas idiotas e concordando com coisas que desconhecemos pelo simples fato de acharmos que alguém esteja nos dando qualquer tipo de importância.

Amigos, para fechar o causo, postei uma foto nas redes sociais com fulano e fulana e escrevi um texto de algo que não aconteceu e, antes mesmo de ter me distanciado do computador, já havia recebido o elogio básico de algum internauta com seu tacape na mão:

Parabéns, amigo. Que lindo! Você merece.

That’sallfolks!

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