Isabel Cristina Mateus
Revista Caliban issn_0000311
12 min readNov 13, 2017

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“Escrito com Cal e com Luz” de Renato Roque: ensaio fotográfico sobre a poética de Carlos de Oliveira

Estava eu posta em sossego numa das livrarias de que mais gosto na minha cidade, quando uma das gerentes, minha amiga, me aborda e me faz uma proposta a vários títulos indecente. Sem me dar tempo de abrir a boca, coloca-me nas mãos um livro de fotografias de alguém desconhecido ao mesmo tempo que me lança o desafio de apresentar a obra quatro dias depois: “Lê, vê com calma e diz alguma coisa”! Saí de livro na mão e determinada a comunicar no dia seguinte a minha (real) indisponibilidade. Mas como é sabido, os melhores encontros são quase sempre casuais. E foi assim que dei por mim a folhear devagar este livro, a demorar o olhar em cada foto, a viajar numa paisagem simultaneamente familiar e desconhecida. A deixar-me agarrar pelo fulgor das imagens, pelos espaços, pelo gestos e ausências. Pelo silêncio que subitamente se fez entre nós. Quando por fim me detive nas cores ocre e terracota da contracapa, soube intimamente que não podia recusar o desafio.

“Escrito com Cal e com Luz”, de Renato Roque (ed. de autor, 2017), é antes de mais um belíssimo roteiro fotográfico do universo poético de Carlos de Oliveira: uma viagem pela sua geografia pessoal e pelos lugares que, como ele próprio afirma em Micropaisagem (O Aprendiz de Feiticeiro), lhe ficaram “tatuados” na pele e na memória. Lugares de infância que configuram igualmente a sua topografia literária: a Gândara e “uma aldeia pobríssima, Nossa Senhora de Febres.” Uma paisagem que o escritor descreve desta forma: “Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia”.

O livro, cuja apresentação ao público foi integrada na exposição “Carlos de Oliveira: a ponta submersa do iceberg”, com curadoria de Osvaldo Silvestre e patente no Museu do Neo-Realismo, constrói-se como um lugar de encontro, um cruzamento de olhares. A começar pelo diálogo íntimo e intenso do fotógrafo com o escritor cuja presença adivinhamos e sentimos nas sombras e silêncios de cada fotografia. Vigilante, na casa que foi da família, em Febres e, em particular, na cadeira vazia recortada na luz; discreta, no chapéu pousado sobre a tábua de passar a ferro, nos caixotes numerados do espólio a aguardar outro destino ou no papel de parede do quarto; misteriosa, no retrato semi-embrulhado do escritor sobre as cadeiras de torcidos. Lugar de encontro também com o olhar do leitor/observador que se cruza com o olhar do fotógrafo e o olhar do escritor, este livro põe, com efeito, a descoberto uma das pontas submersas do “iceberg” (“um terço visível, dois terços debaixo de água”, In: O Iceberg. In: “O Aprendiz de Feiticeiro”) que, no dizer de Carlos de Oliveira, é todo “o escritor português marginalizado”, iluminando aspectos ignorados ou desconhecidos da sua biografia.

Procurando ser (e conseguindo) um ensaio fotográfico sobre o universo poético de Carlos de Oliveira, este livro não deixa de ser igualmente um ensaio do fotógrafo olhando-se no olhar do escritor ou no espelho da paisagem gandaresa, co-existindo e habitando os mesmos espaços, cruzando-se com as mesmas gentes e com os gestos cristalizados no tempo. Um ensaio do fotógrafo à procura de si, das suas raízes identitárias, da sua geografia sentimental e literária nesta viagem-peregrinação aos lugares sagrados do autor de Finisterra. Ao longo dos quatro movimentos que definem o percurso deste livro, do ciclo da cal, à casa de Febres, da casa de adobe à paisagem gandaresa, é à contínua aproximação de si através do objecto a que o leitor assiste, à descoberta de íntimas conexões ou de um subtil jogo de espelhos, ao constante ensaiar-se do fotógrafo, entendido aqui o ensaio no sentido que originalmente Montaigne lhe atribui como pintura de si ou retrato (autoretrato fotográfico, diria) de um eu (e de um olhar) “ondoyant et divers”. E neste cruzamento de olhares entre fotógrafo e escritor texto e palavra iluminam-se mutuamente, dialogando sem tradução, falando uma linguagem comum, a linguagem das imagens que seduz o leitor desde a primeira página.

O título “Escrito com Cal e com Luz”, afirma o desejo central de uma escrita (e de uma escrita e, mais do que isso, de uma dupla grafia (de um código de sinais visíveis e de uma sintaxe combinatória), intenção que talvez surpreenda tratando-se de um roteiro fotográfico. Uma grafia visual feita de objectos, formas, sulcos, linhas, pedras, pinhais, areia, enxadas, restos ou, nas palavras de Carlos de Oliveira, “detritos”. Grafia dupla, não apenas por envolver palavra e imagem, texto e fotografia, mas sobretudo pela dupla matéria ou tinta de que é feita, como a repetição da preposição no título indicia: trata-se de um livro escrito com a cal da Gândara, escrito com luz também, como o é inevitavelmente toda a fotografia. Oferecendo-se ao olhar do leitor como escrita (como grafia dúplice) este livro convoca a leitura, a interpretação ou decifração.

Neste sentido, importa dizer que esta escrita com cal configura, literalmente, uma caligrafia. A cal é o pó ou a alma da terra (porventura aquela poética “animula, vagula, blandula” dos versos de Adriano) que se desprende do corpo cremado da rocha, o grito silencioso da colina esventrada enfrentando a morte; a cal é o despojo, o “detrito”, o que resta da rocha da Gândara depois da erosão do tempo e do trabalho dos homens. Note-se que esta ideia de “caligrafia” associada à cal perpassa num dos poemas que integram a série “Estalactite” (Micropaisagem. In:Trabalho Poético), quando o sujeito poético chama a essas formações rochosas sedimentares “imaginárias flores calcárias”, flores nascidas ao contrário, com as raízes num céu calcário:

Espaço

para caírem

gotas de água

ou pedra

levadas

pelo seu peso,

suaves acidentes

da colina

silenciosa para

a cal

florir

nesta caligrafia

de pétalas

e letras

A cal é assim a flor da rocha, pólen, pétalas ou letras com as quais se desenha a escrita do poema (e de toda a matéria ficcional e ensaística de Carlos de Oliveira). Uma caligrafia milenar feita de silêncio e de tempo, mas também do labor humano, afinal, como a palavra etimologicamente sugere, uma grafia de beleza capaz de iluminar e de “abrir o escuro da noite que nos cerca” (Soneto. Mãe Pobre,TP). De alguma forma, é esse lento florir da rocha que vemos — e escutamos — numa das fotos deste ensaio fotográfico, naquele silencioso trepar da hera sobre as paredes dilaceradas da pedreira.

Não é possível deixar de ver nesta imagem da rocha a florir a ressonância daquela “pedra [que] espera ainda dar flor” que encontramos na escrita de Raul Brandão, uma escrita feita de húmus, de terra fervilhante de vida e de morte, tal como a de Carlos de Oliveira, feita de “podre e fermento” (“Imagem Turva”. AF), de líquenes, de bolor e musgo. Como não podemos deixar de sentir nela o estremecimento daquele gesto de Gabiru semeando fios eléctricos na terra, em pleno inverno, para fazer florir as árvores de espanto e de sonho. Em ambos os casos e autores, a escrita, como a arte em geral, surgem como a única possibilidade de redenção, de dar beleza e fazer florir os nossos dias, de nos resgatar à passagem do tempo e à morte.

Enquanto escrita feita com pó (ou pólen) da rocha, a caligrafia implica um trabalho oficinal sobre as palavras e as imagens. Um trabalho técnico que suspende a referencialidade directa e faz “recuar a palavra” (na expressão de George Steiner) e, com ela, o real. Quero dizer, um trabalho de despojamento ou decapagem que faz recuar a palavra gasta pelo quotidiano e pela impostura social da língua, pela ruidosa vozearia dos dias de hoje em que tanto se fala e tão pouco se diz, interrogando a própria noção de representação. Ou, como nos adverte Carlos de Oliveira, um trabalho de subversão ou inversão das categorias do real (nomeadamente as de alto/baixo)– “chamo às estrelas/rosas/e a terra, a infância/crescem/no seu jardim aéreo” (Infância, Turismo. TP) — uma espécie de grafia ao contrário, “soletra[ndo] as palavras de trás para a frente”, escrita do outro lado do espelho do mundo.

A caligrafia é assim a procura de uma linguagem que transporte em si a marca do tempo, “que põe no frémito da vida o toque do que é precário, passageiro, e simultaneamente consciência disso” (A Viagem. AF). Pesquisa de uma língua (e de uma sintaxe) feita de fornos de cal, de pedra incandescente, de enxadas e martelos, dos materiais de trabalho capazes de operar a transformação da rocha em pó, das palavras em matéria plástica ou artística, de provocar a metamorfose do real. A rocha esventrada e exposta na sua nudez, com as seus cortes e arestas, sedimentos e estratificações, na sua aspereza, é a metáfora do trabalho artístico, de depuração estética que a escrita pressupõe. Note-se que quando falo aqui de escrita, me refiro à grafia dupla, palavra e imagem, que tenho vindo a sublinhar.

Trata-se, com efeito, de um trabalho de oficina ou de forno, um trabalho vagaroso, manual, “feito, desfeito, refeito, rarefeito” (Micropaisagem/AF), recorrendo a enxadas, martelos, baldes como instrumentos de trabalho, instrumentos que as fotografias captam extenuados do esforço, repousando sobre a rocha. Labor que faz irromper o silêncio e os múltiplos sons de que este se tece (como o martelo e os auscultadores abandonados em cima da pedra dão a escutar). Esse, de resto, o objectivo do poeta que desde muito cedo identifica o trabalho poético ao gesto de “apalpar” a indizível densidade do silêncio e de, nesse gesto, o fazer falar:

Céu.

Apalpo e oiço

o silêncio. O silêncio adensou e rangeu.

(In: Turismo. TP)

É Carlos de Oliveira quem se refere ainda, no texto citado de O Aprendiz de Feiticeiro, “à inesperada carga explosiva do silêncio”, a esse silêncio que na sua escrita se transforma em potencialidade comunicativa, em linguagem. Ora é este “ranger” do silêncio, as suas múltiplas sonoridades, modulações e vozes, rumor, murmúrio ou grito que a poética do silêncio de Carlos de Oliveira nos dá a ver, mais do que a escutar.

Esse mesmo silêncio que, paradoxalmente, a fotografia de Renato Roque nos dá a ouvir (mais do que a ver), tornando-o tangível: o crepitar das pedras no lume dos fornos; o som do martelo despedaçando a rocha; o rumor das vozes na casa de família desabitada; o ruído da ventoinha abandonada no quarto; o frémito das águas pantanosas da lagoa; o zumbido do vento nos pinhais; o batimento de asas das aves cujas patas ficaram tatuadas na areia; os estalidos da casa de adobe em ruínas; o eco do poço; o grito da pedra esventrada; o silêncio fossilizado no tempo da amonite. E é essa poética do silêncio que faz deste Escrito com Cal e com Luz não apenas um livro mágico, envolvente para o leitor, mas também um guia de leitura seguro, doravante indispensável para todos aqueles que ousarem aventurar-se nos passos poéticos do escritor da Gândara ou redescobrir a sua escrita a partir desta caligrafia de luz, de cal e de silêncio.

Dizer o silêncio, escrever o silêncio, pressupõe um trabalho de (re)invenção da linguagem capaz de nos devolver à intimidade do mundo. Ou como prefere dizer o poeta, retomando uma frase de Camus, de (re)invenção de uma linguagem capaz de nos devolver à “terna indiferença do mundo”, à indiferenciação não-hierarquizada, isto é, à simplicidade de nele e com ele co-existirmos. Escrever com cal (e sobretudo com luz) significa assim encontrar uma linguagem decantada, nua e árida como a terra gandaresa, fabricada a partir da reciclagem de materiais dispersos: “a secura, a aridez desta linguagem fabrico-a e fabrica-se em parte de materiais vindos de longe: saibros, cal, árvores, musgo. E gente numa grande solidão de areia. A paisagem da infância que não é nenhum paraíso perdido mas a pobreza, a nudez, a carência de quase tudo” (“Micropaisagem.”AF).

A aridez de uma linguagem que nos fala do mundo e dos homens, de paisagem e de povoamento, de uma arquitectura de terra e de uma escrita da memória onde tudo se interliga e indiferencia: “objectos, paisagens, o homem” (“A Viagem”. AF), os elementos físicos, sociais e humanos. E onde a cal funciona como a argamassa que liga os materiais compósitos, a “maranha” (no dizer do escritor) de imagens e de objectos de que é feita esta escrita, a “floresta” emaranhada que a lente de Renato Roque percorre, convertendo-se no fio de ariadne que guiará o leitor ao longo da leitura (já agora, talvez não por acaso Herberto Helder tenha chamado à mistura compósita de narrativas cosmogónicas que a sua escrita põe em marcha, a “máquina de emaranhar paisagens”).

Convocando a leitura e a decifração, esta escrita coloca o leitor (e o fotógrafo, seu cúmplice) no lugar de Ângela, companheira de toda a vida do escritor (transmudada em Gelnaa no seu universo poético), aquela a quem ele se refere masculina e carinhosamente como “o meu criptógrafo” (“Na floresta”. AF). A caligrafia é assim uma criptografia e a imagem perceptiva uma máscara, como as fotografias tornam patente ao iluminar e dar a ver o oculto de um rosto, os interstícios, as sombras e as penumbras, o invisível e o indizível que só o silêncio pode dizer.

Sendo certo que a escrita de Carlos de Oliveira (como a de Renato Roque) constitui um retrato sociológico, antropológico, etnográfico e cultural do país pré-industrial dos anos 20 a 40 do século passado, não é menos verdade que o olhar do autor de Casa na Duna afirmou, de forma assertiva, ser o seu um enfoque literário por não saber ter outro. O mesmo se poderia dizer do modo de olhar do fotógrafo: se as fotografias deste livro são memória de um tempo e de um país anterior à democracia e à abertura à modernização europeia, elas são igualmente testemunho de um olhar artístico, literário, pelo diálogo íntimo que estabelecem com a obra de Carlos de Oliveira, pela interpretação que convocam e sobretudo pelo silêncio eloquente que as atravessa. Silêncio que a rasura da figuração humana adensa. E faz ranger.

Uma breve nota para destacar na série da casa de família do escritor a “janela do avô”, janela que o escritor confessa transportar consigo para onde quer que vá, a janela mágica da escrita capaz de acender e transformar o real: “Trago a janela de muito longe, da casa do meu avô, e abro-a nesta parede cega virada a poente. (…) Consigo assim a mesma mancha de sol, as mesmas nuvens coloridas de então” (“Janela acesa”. AF). Essa janela móvel que faz florir a pedra da casa migra de foto para foto, deixando entrever (e escutar) a criança que se inicia na escrita, escrita de cal, de giz, no quadro negro do tempo. Uma janela nómada que assume a forma de uma vaga mancha de luz, de ausência numa parede cega, de um caixilho-moldura improvisado com fita-cola no papel florido de parede do quarto ou de moldura do espelho que deixa entrever as figuras ausentes (o dono do chapéu pousado sobre a tábua de passar a ferro, a mulher que engoma a roupa). Janela que, à semelhança da pintura barroca, dá a ver a ficção dentro da ficção, a irrealidade da luz ou a realidade outra que é afinal a de toda a escrita literária.

Não é apenas, porém, a janela dourada da infância através do qual o escritor vê o mundo que este ensaio fotográfico dá a ver, mas também a escrita da terra e do tempo patente na amonite, lugar de encerramento desta viagem. Escrita in-scrita na pedra, tatuada na pedra. Uma escrita anónima, vinda da noite dos tempos, das narrativas orais, do romanceiro que Carlos de Oliveira tão bem conheceu, recolheu e recriou. A escrita sem rosto que o autor quis fosse a sua.

O poema “Fóssil” que acompanha esta imagem dá-nos conta do sonho fossilizado de uma estrela do mar que ousou imaginar a espuma e o vento. E do poeta que se descobre estrela na pedra do poema, retrato anunciado, assinatura fossilizada que o tempo há-de tornar visível. Todavia, a fotografia de Renato Roque confronta-nos com uma diferença: não é uma estrela que esta fotografia nos dá a ver, mas um fóssil de amonite. Um fóssil que mais parece um globo ocular do que o pó de pedra de um molusco ancestral. Um olho sem íris. O que resta ou o rasto de um olhar.

Talvez o olho ou a lente fossilizada de uma câmara fotográfica. Retrato e assinatura do fotógrafo que neste ensaio se revela e dá a conhecer.

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