Entrevista com o poeta Edimilson de Almeida Pereira

Yasmin Nigri
Revista Caliban issn_0000311
6 min readMar 5, 2020

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Foto: Prisca Agustoni (2019)

Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em julho de 1963. É professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Publicou recentemente os livros Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na Literatura Brasileira (Azougue, 2017) e Poesia +antologia 1985–2019 (Editora 34, 2019).

Ao fim da entrevista segue uma seleta de poemas gentilmente enviada pelo autor.

Yasmin Nigri: Qual é a diferença entre preparar uma antologia e preparar um livro inédito?

Edimilson de Almeida Pereira: Uma antologia mantém relações evidentes com os livros de onde foram extraídos os poemas que a constituem. Essas relações, no entanto, não impedem que a antologia seja percebida como uma nova obra. Os poemas deslocados das edições anteriores estabelecem no espaço da antologia relações não previstas, que decorrem do confronto entre experiências poéticas fixadas em momentos diferentes. Ao organizar uma antologia, conhece-se os poemas “resolvidos”com os quais se pode articular uma obra cujos efeitos sobre os leitores continuarão a ser imprevisíveis. Quando se trata de um livro inédito, tem-se em mãos elementos fragmentados, que ainda não se resolveram como poemas. Nesse caso, a feição final do livro também é uma incógnita, mesmo no caso dos livros que são previamente planejados. Em síntese, dependendo do modo como se prepara uma antologia corre-se um risco: o de perder o melhor de uma obra tentando-se destacar justamente os seus pontos mais altos. No livro inédito, por sua vez, tudo é risco, nada é sequer um ponto que não possa ser esquecido.

YN: A 34 é uma editora de médio porte que vem apostando em publicações de poesia brasileira contemporânea; tendo essa abertura em vista, quais nomes você indicaria para quem está descobrindo a sua poesia tardiamente e quer conhecer as suas influências?

EAP: Indiquei em outras oportunidades alguns nomes de tradições e práticas culturais diferentes que desenham a constelação poética por onde passeiam meus pensamentos. Vou me referir aqui a algumas autorias do campo da poesia: Cruz e Souza, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Francis Ponge, Garcia Lorca, Nicolás Guillén, Derek Walcott, Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Arlindo Barbeitos, Dylan Thomas, Sylvia Plath e Seamus Heaney.

YN: A poesia assumiu alguma tarefa na sua vida ao longo dos anos de escrita?

EAP: Sim. A tarefa de traduzir em discurso minimamente compreensível minha perplexidade e indignação contra todas as formas de violência que produzimos como indivíduos e como sociedades.

YN: Seus filhos lêem e acompanham o seu trabalho? O que eles entendem por poesia?

EAP: Iara e Antonio acompanham mais ou menos minha escrita porque ela desenvolve nos intervalos de nossa vida em família e do meu trabalho no ensino. Iara participa quando leio para ela um poema ou comento sobre uma narrativa que pretendo escrever. Ela concorda, às vezes, outras vezes discorda das minhas ideias, argumenta bem e, não raro, rimos da teia fascinante que é o ato de pensar-escrever. Os dois gostam de ler os remetentes das correspondências que recebo. Ficam felizes quando chegam livros pelos correios e sabem quando são de poesia. Nessa hora percebo que a poesia faz parte da percepção que eles têm do mundo. Eles gostam de sequências inusitadas de imagens, do estranhamento dos sons e, de algum modo, sabem se interessar por sensações que se revelam como algo imprevisível. É cedo para dizer se isso é um entendimento da poesia, mas me parece que é uma vivência do poético em estado intenso, possível de ser também alegria.

YN: A velocidade com que você escreve e publica é impressionante, como surge a poesia na sua rotina?

EAP: Na verdade sou lento para escrever. O que acontece é que escrevo sempre que posso, há três décadas. Os textos foram sendo publicados ao longo de um tempo extenso. Por isso, vê-los, desde agora, é como se tivessem saído em ritmo acelerado. Outro fato é que escrevo simultaneamente poesia, ensaio e literatura infantojuvenil. As edições vêm à público, às vezes, em datas próximas umas das outras. Isso cria a sensação de muitas mãos tecendo um só tecido estético como faz Ananse. Porém, como demonstra Ananse, os pontos são tecidos um de cada vez, demoradamente.

A experiência do poético é uma linha fundamental do tecido a que me referi acima e eu me agarro a ela como uma presença terna e vigorosa;como uma maneira de recusar a brutalidade que permeia o nosso tempo. Digo experiência do poético porque antes de escrever, o que penso e sinto sobre essa experiência ainda não é poesia.É algo importante, mas para o qual ainda não encontrei a forma de expressão. Estou disponível para a experiência do poético em qualquer circunstância, mas para escrever os seus efeitos, nem sempre. Preciso encontrar o tempo para trabalhar com essa experiência, entre outras demandas da rotina. Um jeito para não perdê-la é fazer anotações nos meus “cadernos de sonhos”. O que se desdobra depois, na escrita, certamente é outra experiência do poético porque eu também serei outro, nessa hora.

POEMAS SELECIONADOS PELO AUTOR

UMA FRUTA

que rola da caixa para a boca
não resolve o dia de quem
a come. Antes, abre o desejo
de investigar outros pomares.
Se a polpa da fruta alimenta,
seu movimento inquieta.
Como um fio de cabelo que
tiramos e acaso sentimos de
novo. A fruta se desperdiça
se a mão a detém tempo
demais. O que seria repasto
de um não sustenta a família.
Rola então o conflito, cada
um endurecendo por dentro.

ALARDE

O corpo busca afago entre as coisas.
Não está a serviço de quem figura amar,
não se dá ao jogo depois de ferido.
O sangue mancha o rio, não há piso
alheio a sua rede. Quem brandiu a faca?
havia uma? Chegamos à hora íngreme
e não intuímos os meios como a ação
se desenrolou. Mas um fio de cabelo
nunca se desprende todo, como aquele
que Cortázar fingiu perder para delírio
familiar na calle Humboldt. Cresce
e se instala à espera da captura. Talvez
o nojo nos impeça de reavê-lo, talvez
a fome não aprecie luvas ante o desejo.
Ao fim, a mão afiada sai em férias,
o corpo não sabe se frutifica ou morreu.

TEAR
A Nancy Pierce

A filha tem as espáduas da mãe e não se repetem. O trabalho e o parto tentam, em vão, prendê-las sob uma concha. Embora juntas, nem o canto põe suas vozes na mesma pauta. Mãe e filha rabiscam o vazio entre os ossos e nada garante o fio que as sustenta. O que cosem, se não é suas vidas, vai sendo a nossa. Por isso, nos dão as costas gravando ruídos na noite. O amor merece esse nome depois que o coração deu uma volta. Enquanto está virando não basta para ver quem ajeita o xale nas espáduas.

CONVIDADOS

O oceano escreve cartas,
mãos tocam os dias.
Na mesa o cristal.
A música dos garfos
nos empurra a mudar o país.
Nenhuma carícia
crime ou sobrenome
reacende o silêncio.
Os graves, os honestos,
a bílis são os amotinados
saindo da fábrica.
Cala-se o som no vidro.
Não o dessa tarde
em paisagem descoberta.
A vida sobe a relva
como diploma na parede.
Já não se pode feri-la
com estiletes ou quilhas.
O que fica é palpável,
desfrutamos sua presença.
Impossível morrer sem
ruflar a carne, o mais é
afinação de relógios e galos.

CABECEIRA

O mundo se bate por uma variável
língua, e não nos entendemos.
Aros na estiagem são o fonema
que faliu sem gerar comunicação.
Não houve tempo, nem vontade
para coser o pacto? Era preciso,
sob pena de se exaurir o homem.
Esperamos em vão o repasto,
tarde o centeio explodiu em pão.
Que fazer? A relva onde os cavalos
crisparam se apagou, arreios cospem
a lição de pedra. Como não ver
o golpe que vitimou a todos?
Testemunhamos o cós armado
do inimigo, a pira onde a liberdade
expirou, os prazos insondáveis.
Nós, tão confortados pela certeza
de que o passado era um bazar.
E que entre rubis, enxovais,
nenhuma traça fiava às avessas.
Idéias, no entanto, forçam as paredes.
Entre o que fizemos, e não,
algo se revela necessário ainda.

COLHEITA

Deparei com a maçã em
estado resoluto, na altura
da janela ao alcance da boca.
Não é isso o que exaspera:
diferente do homem, o fruto
vive a partilha. Era a incisão
no vento. Como transportá-la
dali a outro campo? menos,
parir um poema sem que a
maçã fosse afetada? A tal ponto
o fruto explode para dentro.

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