Entrevista com Matheus Rocha Pitta

Cláudio Oliveira*

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311

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O artista Matheus Rocha Pitta

É difícil dizer o que mais me convoca no trabalho de Matheus Rocha Pitta. São muitos os elementos que ali me chamam a atenção. Nele reencontro, de modo bastante enigmático, rastros de autores que foram minhas leituras recorrentes nos últimos anos (Marx, Benjamin, Agamben e, através deste último, Warburg) e muitas das minhas próprias questões relativas ao lugar da mercadoria na sociedade capitalista, ao valor de uso e de troca das mesmas, ao rito, à profanação, ao ato, ao gesto, à comida, ao alimento, à política, à arte, à imagem em sua deriva histórica, a uma certa relação entre imagem e gesto que nos lança numa relação com a imagem totalmente diferente daquela com a qual estamos acostumados, e para a qual apontam, a seu modo, Agamben e Warburg,.

Segundo Matheus, fui seu professor nos últimos anos do século passado, entre 1998 e 1999, enquanto ele era ainda aluno do curso de História da UFF, curso que veio a abandonar. Alguns anos depois, ele iniciou e mais uma vez abandonou o curso de filosofia da UERJ. Naqueles anos finais do século passado, em que fui seu professor, eu dava disciplinas introdutórias de filosofia para alunos de outros cursos, dentre os quais, os de história. Ainda não existia na UFF o curso de graduação em filosofia, que eu viria a criar em 2007 e cuja primeira turma teve início em 2008. Eu não me lembro de Matheus como meu aluno. Desde 1994, tive alguns milhares de alunos na UFF, e é difícil, para mim, lembrar-me de todos, sobretudo tratando-se de alunos que cursavam comigo apenas uma disciplina introdutória e depois desapareciam. Matheus desapareceu, como a maioria desses alunos, mas reapareceu, creio que em 2013, quando ele estava na Itália a caminho de Napoli, onde faria a exposição L’acordo, na Fondazione Morra Greco. Conversamos na época, talvez um pouco antes dessa exposição, mas somente algum tempo depois ele me disse que eu tinha sido seu professor. Temos aqui o caso de duas pessoas que se conheceram em momentos diferentes. Matheus me conheceu no século passado, eu o conheci apenas neste século. Na passagem de um século ao outro, ambos mudamos e nossos caminhos convergiram de novo, mas para um outro lugar: ele se tornou artista, eu me tornei um filósofo mais interessado pelo campo das artes visuais contemporâneas.

No ano passado, Matheus veio para Berlim, para fazer uma residência de um ano na Kunstlerhaus Bethanien. No início de janeiro deste ano, fui visitar amigos e participar de um seminário de psicanálise na cidade e aproveitei para encontrá-lo e conhecer o trabalho que ele estava desenvolvendo na residência. Conheci seu ateliê e fui até a oficina em que os primeiros trabalhos que estariam na futura exposição começavam a ser realizados. Vi um estágio já bastante avançado do trabalho. Fiquei de voltar para a abertura da exposição que concluiria a residência e à qual ele deu o título de Aos vencedores, as batatas, numa referência à frase de Machado de Assis, em Quincas Borba, a qual, em terras alemães, ganhou ressonâncias outras, já que, após ter vindo para Berlim, Matheus descobriu que as pessoas colocam batatas no túmulo do Frederico, O Grande, que foi quem trouxe a batata pela primeira vez para a Alemanha. É talvez difícil para nós nos darmos conta disso, mas as batatas são originárias das Américas.

Ao vencedor, as batatas é um trabalho que envolve escultura em cimento, colagem, instalação, sacos plásticos, batatas e também algo de uma dimensão performativa, já que o público da exposição é convidado a levar para casa as batatas que estão na exposição, caso queira.

A exposição também não se reduz ao espaço da galeria, pois Matheus ocupou duas vitrines de duas estações do metrô de Berlim: uma, na Gesundbrunnen, em que há estelas com colagens, e outra, na Hermannplatz, em que há troféus esculpidos com bolsas de plástico brancas e o título da exposição em várias línguas. A exposição acontece, portanto, na galeria e no metrô de Berlim.

Na galeria, há, antes de entrarmos no salão em que se encontram as batatas propriamente ditas, uma única estela, na qual vemos uma série de imagens recortadas de revistas e jornais nas quais o gesto de erguer e beijar o troféu, após a vitória, é modificado por Matheus, colocando-se, no lugar do troféu, a imagem de uma batata. Em geral, as imagens de batatas são retiradas de panfletos publicitários de produtos de supermercado. Na estela, há ainda, no alto, o título da exposição em português: “Aos vencedores, as batatas”, disposto em semi-círculo, e, embaixo do título, também em semi-círculo, as imagens dos troféus substituídos pelas batatas nas imagens que se encontram na parte inferior da estela, dispostas em forma triangular.

Estela # 19 (aos vencedores as batatas), Concreto, papel e batatas removidas
180 x 90 x 4 cm, 2016

Essa estela é iluminada por uma lâmpada fluorescente dentro de uma caixa que pende do teto. No interior no salão, temos uma instalação escultural, em cujo centro há uma mesa baixa retangular feita de tijolos de concreto e tampo de vidro, sobre o qual encontram-se esculturas na forma de troféus feitas com concreto e bolsas de plástico brancas. Em torno da mesa, dispostos de modo a formar uma elipse, sacos plásticos brancos no interior dos quais encontram-se as batatas que devem ser trocadas, a cada dois dias, por todo o período de duração da exposição.

Estela é um termo que Matheus extrai da arqueologia e que designa uma coluna ou placa de pedra em que os antigos faziam inscrições, geralmente funerárias, mas indica, em sentido geral, qualquer monumento monolítico feito em pedra vertical. As estelas se tornaram a “marca estilística” (para tomar de empréstimo a expressão de Kaira Cabañas) de Matheus. A ideia de “colar” imagens de jornal no cimento, no entanto, é anterior à descoberta das estelas por Matheus e tem uma origem quase anedótica. Na entrevista que fiz com ele no dia seguinte à abertura da exposição (e que temos o prazer de publicar agora na Revista Caliban, de Portugal), num parque criado pelos berlineneses após a desativação do aeroporto de Tempelhofer, o Temperlhofer Feld, pergunto a Matheus sobre a origem das estelas e do trabalho com o cimento e ele me conta a seguinte história:

Eu sempre recortei as coisas de que eu gostava, e eu guardava. E isso era uma coisa que eu fazia sem a menor seriedade. Mas isso foi ficando sério. Começou a ficar sério quando eu vi umas notícias de pessoas que eram para morrer, mas não morreram, por acaso. Por exemplo: um cara que era testemunha de um crime. Deram um tiro na cabeça dele, queima de arquivo, e o cara não morreu. E levantou. Botaram ele numa cova rasa. 13 horas depois ele levantou e foi para o hospital. (…) Eu estava meio fascinado com esse momento da morte que é adiado, o acaso adiando a morte. Aí eu comecei a refazer essas notícias, reconstituindo-as. Uma delas era em um cemitério. Eu estava morando em Belo Horizonte nessa época. Eu fui no cemitério fazer a foto e descobri que os túmulos mais pobres (quando você não tem dinheiro para ter um túmulo de granito ou de mármore), eles fazem de alvenaria. Com tijolo e cimento nas laterais, mas a tampa é uma laje de concreto. E essa laje é feita no cemitério, porque é muito mais barato você fazer no próprio cemitério do que fazer em outro lugar e transportar. Porque é um negócio pesado. E a forma como eles fazem a laje é assim: ela só tem as laterais, é uma moldura, não tem fundo. Então eles usam folhas de jornal para isolar do chão, e nelas eles jogam o concreto mole. O jornal continua ali, e a pessoa é enterrada com o jornal para ler. Eu fiquei meio fascinado com aquilo e emparedei aquelas notícias, as notícias que eu estava reconstituindo. Eu fiz uma lápide com elas. Isso foi em 2004, tem muito tempo. Daí, logo depois — deu super certo o trabalho, ficou lindo.

A ideia, portanto, de colar imagens extraídas de jornais no cimento vem dessa experiência do cemitério. É uma apropriação artística de um gesto que acontece em qualquer cemitério brasileiro. Antes de Matheus, os coveiros já jogavam cimento sobre jornal, para tampar os túmulos. A ideia de um defunto leitor, à qual Matheus se refere na entrevista, é ainda mais perturbadora que aquela, de um difunto escritor, que Machado introduz com Brás Cubas. De qualquer modo, é esse o start das estelas de Matheus. É só num tempo posterior que ele articula esse trabalho com as estelas propriamente ditas, que ele descobre em sua primeira viagem a Napoli. Na época, interessado no gesto do acordo, ele encontra estelas funerárias gregas que mostram o morto cumprimentando um deus. Essas representações de duas pessoas, oferecendo, uma à outra, a mão direita, são chamadas de dexiosis, do verbo grego dexiomai, “dar (a alguém) a (mão) direita”. A partir desse encontro, Matheus fez a exposição L’Accordo, na Fondazione Morra Greco, em Napoli, em 2013.

“aos vencedores as batatas”, plástico, vidro, concreto, tijolos e batatas, dimensões variáveis, 2017

Há, aqui, portanto, um cruzamento muito intrincado: o cimento, a laje, o túmulo, o cemitério, o leitor defunto, o cimento barato enquanto material banal, presente de forma exposta nas favelas cariocas e nas moradias pobres em geral, se encontra com as imagens das estelas antigas, e desse encontro surgem as estelas de Matheus Rocha Pitta. As imagens gravadas na pedra são substituídas por colagens de nóticias de jornais, de imagens de revistas e de material publicitário. Ao nos situarmos diante de uma estela de Matheus, há uma solenidade que o próprio formato e peso da peça traz, assim como as imagens em papel que, nelas, ele cola, mas há ao mesmo tempo um precariedade não escondida, ao contrário, explicitada, que dialoga com a realidade brasileira em sua precariedade arquitetônica. Esse encontro insólito é certamente um dos aspectos que mais me chama a atenção no seu trabalho.

As estelas e as lajes (as peças em concreto, maiores ou menores, respectivamente) se tornaram presentes em vários trabalhos de Matheus desde então. As estelas, em geral, cumprem, segundo o próprio Matheus, uma função de boas-vindas, de apresentação, dentro da exposição, como no caso de Aos vencedores, as batatas, a exposição em Berlim, mas também de Golpe de Graça, a exposição realizada na galeria Pivô, em São Paulo, em 2013. Mas elas também podem assumir outros lugares na exposição. Em Berlim, elas aparecem dispostas de modo inédito na vitrine da estação Hermannplatz, formando uma espécie de coluna, para que elas possam ser vistas de todos os lados da vitrine que fica no meio da estação de metrô.

As lajes, as peças de cimento menores, são colocadas encostadas nas paredes da sala de exposição e em geral têm a forma de catálogos dos gestos que são tematizados na exposição, como se fossem uma “falsa” coleção warburguiana de gestos, uma vez que, em vez de colecionar imagens de gestos extraídas da história da arte, Matheus coleciona imagens de gestos extraídas de suportes muito menos nobres como jornais, revistas e materiais publicitários, assim como é menos nobre o cimento em que essas imagens são coladas. Como se Matheus fosse um Warburg contemporâneo, lidando com fontes “menores”, estendendo o trânsito da Pathosformel a um domínio indefinido e ilimitado. Mas o motor do trabalho de Matheus é sem dúvida influenciado por esse impulso warburguiano, que ele pretende levar mais longe, até uma dimensão ainda enigmática, pois a transmissão de gestos e imagens está em toda parte, mesmo num panfleto com anúncios de supermercado.

Há, portanto, na exposição de Berlim, o uso das estelas enquanto algo que já caracteriza o trabalho de Matheus há alguns anos. Mas há também outros aspectos da exposição de Berlim que se repetem (no bom sentido da repetição, aquele freudiano-kierkegaardiano, da repetição como produtor da diferença) em trabalhos anteriores de Matheus, como o uso de alimentos e a referência a frases, expressões, ditados, narrativas, como detonadores de gestos. Em Berlim, esse detonador é a frase de Machado, no Quincas Borba, “Aos vencedores, as batatas”. O procedimento artístico que Matheus adota no tratamento desses elementos significantes é sempre muito surpreendente. Como se seu esforço fosse recuperar a dimensão mais concreta desses elementos discursivos. Em Aos vencedores, as batatas, trata-se simplesmente de substituir os troféus por batatas, e mostrar os vencedores beijando e erguendo, não troféus, mas batatas, na estela que se encontra na galeria e naquelas que se encontram na vitrine da estação de metrô, mas, ao mesmo tempo, as batatas são transformadas em material escultórico na instalação que constitui o centro da exposição.

Através desse procedimento, Matheus restitui a dimensão de gesto dos gestos do vencedores, ao levantar ou beijar a taça. Sem os troféus, com batatas, esses jestos aparecem deslocados de sua finalidade mais evidente: a ideia de que, ao receber o troféu, ao erguê-lo e beijá-lo, eles comemoram o recebimento do prêmio, aquilo pelo que lutaram. Sem o troféu, esses gestos aparecem como isso que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de “meios sem fins”, ou seja, os gestos são expostos em sua própria medialidade e não em sua finalidade. O mesmo procedimento acontece com outras intervenções produzidas por trabalhos anteriores de Matheus, como Primeira Pedra (2015) e Sopa de Pedra (2014). No primeiro, inspirado na cena em que Cristo impede o apedrejamento de uma mulher adúltera, Matheus permite que o público da exposição troque pedras que encontre na rua, e que preecham a sua mão, pelas pedras esculpidas e assinadas por ele e que se encontram na galeria. No segundo, uma sopa é feita e consumida num espaço público (os fundos do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, no Rio de Janeiro), utilizando legumes de verdade e legumes esculpidos em pedra sabão, em referência à história do viajante faminto que começa a fazer uma sopa de pedra à qual os outros vão acrescentando legumes de verdade. Aqui, é a palavra pedra que gera a pedra escultórica produzida pelo artista, no caso, a pedra-sabão. Em ambos os casos, a escultura surge não porque se trata de um artista escultor. Matheus, como bom artista contemporâneo, não pode ser definido por nenhum tipo de técnica artística a priori, não tendo inclusive se interessado jamais por cursar uma faculdade de Belas Artes. A escultura vem como uma consequência do trabalho com o discurso. São as palavras que o obrigam a ocupar-se de esculturas.

Há, portanto, nesses trabalhos, uma atualização do discurso que impõe, ao mesmo tempo, uma dimensão escultórica e uma dimensão performativa. Daí ser Austin, com seu How to do things with words, juntamente com Agamben e Warburg, também uma referência filosófica para Matheus, mesmo que ele tome, por um lado, ao pé da letra a própria frase-título de Austin. Como fazer coisas com palavras poderia ser um resumo de uma parte significativa do trabalho de Matheus, aquela que o empurra para a escultura. É impressionante como as palavras, as frases, as histórias de que ele parte se tornam, em um determinado momento, coisas. Imagens, colagens, cimento, papel, pedra, comida. Mas, por outro lado, o título do livro de Austin também nomeia uma outra dimensão, menos concreta, menos escultórica, e mais simbólica, que o trabalho de Matheus assume. Essas “coisas” concretas que as palavras geram e fazem aparecer no seu trabalho não aparecem nunca “sozinhas”. Elas surgem, e talvez este seja o elemento mais fundamental do seu trabalho, sempre amarradas a gestos. O gesto de atirar/não atirar a pedra, de buscar a pedra, de trocar a pedra pela pedra, o gesto de preparar a sopa de legumes/pedras, o gesto de erguer o/a troféu/batata, de ir a uma exposição de arte e de voltar pra casa com uma batata, como um vencedor.

Entrevista com Matheus Rocha Pitta

Temperhofer Feld, Berlim, 03 de março de 2017

Como você começou a trabalhar com cimento?

Foi o seguinte: eu sempre colecionei recortes de jornal. Eu já fui jornalista também. Quando eu tinha 15 anos de idade, eu trabalhei em um jornal em Petrópolis.

Tem isso no seu trabalho. Por exemplo, em No hay pan, você parece ter partido de uma uma referência de jornal, do The Guardian.

Sim, eu sempre recortei as coisas de que eu gostava, e eu guardava. E isso era uma coisa que eu fazia sem a menor seriedade. Mas isso foi ficando sério. Começou a ficar sério quando eu vi umas notícias de pessoas que eram para morrer, mas não morreram, por acaso. Por exemplo: um cara que era testemunha de um crime. Deram um tiro na cabeça dele, queima de arquivo, e o cara não morreu. E levantou. Botaram ele numa cova rasa. 13 horas depois ele levantou e foi para o hospital. Tem outra notícia de uma mulher que tomou um tiro de bala perdida, mas o silicone segurou a bala, então ela não morreu… [risos] São notícias um pouco engraçadas, são trágico-engraçadas. Eu estava meio fascinado com esse momento da morte que é adiado, o acaso adiando a morte. Aí eu comecei a refazer essas notícias, reconstituindo-as. Uma delas era em um cemitério. Eu estava morando em Belo Horizonte nessa época. Eu fui no cemitério fazer a foto e descobri que os túmulos mais pobres (quando você não tem dinheiro para ter um túmulo de granito ou de mármore), eles fazem de alvenaria. Com tijolo e cimento nas laterais, mas a tampa é uma laje de concreto. E essa laje é feita no cemitério, porque é muito mais barato você fazer no próprio cemitério do que fazer em outro lugar e transportar. Porque é um negócio pesado. E a forma como eles fazem a laje é assim: ela só tem as laterais, é uma moldura, não tem fundo. Então eles usam folhas de jornal para isolar do chão, e nelas eles jogam o concreto mole. O jornal continua ali, e a pessoa é enterrada com o jornal para ler. Eu fiquei meio fascinado com aquilo e emparedei aquelas notícias, as notícias que eu estava reconstituindo. Eu fiz uma lápide com elas. Isso foi em 2004, tem muito tempo. Daí, logo depois — deu super certo o trabalho, ficou lindo — mas logo depois, eu fiz um outro trabalho com esse mesmo processo, que ficou uma bosta.

Como é o nome desse trabalho?

Esse se chama Epitáfio. Mas três meses depois, eu fiz um que ficou muito ruim, deu super errado, e eu nunca mais usei essa técnica. Só dez anos depois, oito anos, não sei, em 2011, eu comecei a usar essa técnica de novo. Porque não é exatamente só uma técnica, é uma coisa que eu descobri, inventei, mas que tem um uso bastante preciso.

Mas a forma da lápide ficou.

Ficou. E esses trabalhos, eles têm, independente do tamanho deles, seja uma laje pequena ou uma laje grande, independente da escala deles, eles têm uma coisa meio monumental, no sentido de ser um registro histórico, o registro de algum evento… Acho que isso permanece. Porque uma lápide, um túmulo é um monumento também.

Você já usou isso em vários trabalhos, em vários exposições.

Sim, e as lajes sempre têm também uma certa função diagramática da exposição. Por exemplo, a laje dessa exposição aqui em Berlim é uma laje de boas vindas, digamos assim. É a primeira coisa que você vê. Digamos que ela te localiza dentro do trabalho. A instalação que está dentro da sala é autônoma, é sozinha, mas a laje dá, digamos, uma informada. Ela tem uma função de localizar o título da exposição, que está escrito na laje. Os troféus trocados por batatas estão nela. É como se fosse um resumo do trabalho, um desenho que diagrama.

Mas e as lajes que você colocou na estação de metrô?

Coluna # 1 (podio de batatas), concreto, papel, estrutura de ferro, feltro
altura: 130 cm, diâmetro : 72 cm, 2016–2017
vista da peça instalada em uma vitrine na estação de metrô Gesundbrunnen, Berlin, 2017

É, elas viraram uma coluna. É a primeira vez que eu fiz isso. Eu estou bastante animado, porque foi um passo técnico novo. Porque as lajes são sempre frontais. Essa coluna que eu fiz, ela perdeu essa frontalidade e ganhou um movimento. Tem um movimento centrípeto, em direção ao centro, muito grande. É um trabalho para você ver andando, rodando em torno dele. Isso foi uma coisa meio nova, que eu ainda estou entendendo direito. Por exemplo, a composição das lajes é sempre uma composição muito rígida, meio de escudo. É sempre um desenho que você consegue reconhecer de longe. Aí, de perto, você chega e entende: as composições são sempre simétricas, elas têm uma certa… A palavra não é “clássica”. Mas elas têm… É como um emblema, que é uma coisa para ser reconhecida meio rápido. E quando você chega perto, você entende o que é que está acontecendo.

Você chama essas peças de lajes?

Sim. Na verdade, tecnicamente, tem uma distinção entre lajes, que são as pequenas, e as estelas — que é um termo arqueológico -, que são as grandes.

De onde ver o termo estela?

É um termo quem vem da arqueologia. É o pedaço de qualquer pedra que serve para marcar algo. Ou é uma coisa comemorativa ou territorial ou funerária. Tem estela grega, tem estela maia, tem estela inca, tem estela romana… Porque as inscrições históricas não eram feitas em papel, eram feitas em pedra, e as estelas marcavam isso. E isso também virou estela funerária. Por exemplo, eu fiz um trabalho que eu chamei de Acordo, em que eu estava juntando imagens de acordo. E eu estava muito interessado no conceito de acordo, porque eu descobri, quando estive em Napoli pela primeira vez, que existiam essas estelas; que, em determinada época, na Grécia, era muito comum a estela funerária retratar a pessoa morta apertando a mão da divindade. Chama-se dexiosis. Eu pesquisei sobre isso, entendi o que significa, mas o mistério para mim continua. [risos] Continua muito misterioso para mim, nesse momento da morte, ter esse gesto do acordo. Isso me fascinou muito. Então eu fiz essa série de estelas grandes, todas só com imagens de gente fazendo acordo.

Obviamente que a questão do gesto é muito importante no teu trabalho, mas eu queria falar também de outros aspectos. Porque tem uma sobredeterminação. Quer dizer, o que é interessante no teu trabalho, como em todo trabalho em arte, é que ele tem muitos níveis. E o modo como esses níveis se encontram é muito curioso. Por exemplo, por que é que esses gestos vão se encontrar no cimento, na laje? Ou no plástico, como tem acontecido. Ainda quanto ao cimento: o fato de você chamar de laje. Tem duas coisas que eu vejo: o cimento por um lado é uma marca da arquitetura brasileira. Por outro lado, ele é uma marca de uma arquitetura espontânea que é a da favela, que é a da laje. E aí, com o seu trabalho, isso vem para as artes visuais. É como se criasse um terceiro lugar para o cimento, inédito. Mas isso começa com uma relação com esse material, com esse suporte. Quando você trabalha com o cimento, você pensa nessas relações também?

Penso, mas eu nunca quis tematizá-las.

Porque, na verdade, a origem é essa história que você contou, da lápide.

Sim, da lápide, em Belo Horizonte. Mas tem um aspecto que você observa e que você está coberto de razão, que é o seguinte: a minha relação com o cimento é absolutamente espontânea. Quando eu estava te contando o problema técnico que eu tive com o cimento aqui na Alemanha, tem a ver com isso: o cimento no Brasil é versátil, todo mundo sabe como fazer cimento no Brasil. [risos] A coisa da favela bonita é isto: você tem uma espontaneidade e uma liberdade que nasce de uma coisa precária. É muito interessante o fato de que as pessoas vão fazendo, vão construindo. Existe um elemento poético nisso muito interessante. E a minha relação com o cimento é um pouco essa, de uso. Eu não sou especialista em cimento, eu não quero me especializar nas qualidades do cimento e tal…

Mas esse encontro primeiro marcou. Ele deu o start dessa série, o encontro do cemitério.

Do cemitério, sim. O meu uso do cimento continua sendo esse. Tem um artista que eu conheço que faz esculturas com concreto, super complexas. Ele põe cor. O cara tem a manha, o domínio do material que, por exemplo, eu não estou interessado em ter.

Sim, claro, não é isso o que você está procurando.

Eu estou procurando mais esse uso espontâneo que às vezes é um pouco… A gente está muito acostumado a pensar no cimento como elemento da arquitetura brasileira moderna a partir do Niemeyer, a partir dos grandes nomes, nunca a partir dessa condição precária.

Sim, mas o fato de você chamar de laje…

Conecta com isso, é.

E, ao mesmo tempo, o fato de você chamar as outras peças maiores de “estelas” joga para essa outra dimensão, que é uma dimensão super forte no seu trabalho, que é a do gesto. Mas a questão do gesto no teu trabalho aponta para uma ritualização, para algo que tem que acontecer aqui e agora, a cada vez, mesmo que ela esteja sempre remetida a referências históricas, artísticas…

Sim, ela tem essa consistência própria do momento, mas se você quiser também entrar nessas referências, está totalmente correto… São esses níveis que você está dizendo, que vão aparecendo.

Porque de algum modo nas próprias estelas antigas já têm essa conexão com o gesto, que você descobriu.

Sim, sim.

E o plástico? O plástico surgiu pela primeira vez na exposição da Pivô?

Não, o plástico, deixa eu lembrar… A primeira vez que eu usei plástico foi um trabalho que eu comecei a fazer em Londres, chamado Figuras de conversão. Não, não, antes eu tinha feito BO, e tinha plástico também. Vou te explicar: eu comecei fazendo só fotografia. E depois comecei a fazer vídeo, e aí, aos poucos, eu fui adquirindo… Fui perdendo o medo de mexer com material e fazer escultura. Mas eu sempre escolhi coisas que estão disponíveis. Que nem a história com o cimento. Eu uso cimento porque o cimento está ali. No Rio de Janeiro, você desce e em qualquer esquina tem uma lojinha de material de construção pequena que vai ter um básico. Você vai comprar cimento a granel, que é uma coisa que na Europa é imcompreensível [risos]. As pessoas vão ter um chilique se souberem que você consegue comprar só um quilo de cimento, um saquinho. Eu comecei a desenvolver uma relação com esses materiais que estão disponíveis, que são coisas do cotidiano, porque eu não queria um material que fosse nobre. Pelo contrário. Eu estava mais interessado e estou mais interessado em coisas que são absolutamente comuns, que estão ali, que eu posso pegar e mexer sem muita responsabilidade.

Sim. Mas, no caso da exposição No hay pan, o trabalho é apresentado logo de cara com uma referência a duas obras de arte do Renascimento italiano. Essas imagens que você depois fixa no cimento, elas têm um diálogo com essas imagens produzidas pela pintura, historicamente datadas. Mesmo que, por outro lado, elas também são extraídas de jornais, de revistas, de coisas acessíveis…

Aí é que está: todos os materiais que eu uso são absolutamente profanos, são totalmente banais, da vida comum. O jeito como eu faço isso remete a esse passado, mas o que eu acho interessante é que é mais para apontar para a sobrevivência desse passado do que para venerá-lo. Por exemplo, a série do Acordo: as imagens têm um lado pop muito forte, as imagens são muito comuns. Tem que estar todo mundo lá, não tinha hierarquia de personagens. Eu não escolhi: qualquer aperto de mão, qualquer abracinho era um trabalho. Então é mais uma maneira de apontar para a sobrevivência dessas coisas antigas no mundo de hoje do que para fazer um elogio. Pelo contrário, às vezes eu tomo muito cuidado. Por exemplo, com a coisa do gesto: teve uma série que eu fiz que todos os gestos foram tirados de publicidade. E teve gente que achou que eu tinha pintado aquilo. É uma coisa que eu jamais faria, eu não sei desenhar, eu sou péssimo nisso.

Para mim, às vezes, dá a impressão de que você recortou de reproduções de obras de arte, de pinturas renascentistas, de pinturas antigas…

Mas, na verdade, toda essa memória dessas imagens está no mundo… Porque isso é uma decisão que eu tomei, de viver no presente.

Sim, mas isso é uma coisa warburguiana também.

É.

Isso é uma coisa muito warburguiana.

É, mas dois anos atrás eu fui lá no Instituto e eu fiquei um pouco decepcionado. [risos]

Essa coisa da sobrevivência dos gestos e das imagens, do trânsito que eles vão fazendo, da transmissão que eles vão sofrendo e que é uma coisa incontrolável…

Exatamente, incontrolável. E o que é muito interessante nele é o fato de ele libertar a história da arte de qualquer coisa estética. Que é uma coisa muito chata. Com ele a história da arte ganha uma dimensão muito política mesmo. A coisa do gesto é meio complicada. Mas eu vou te explicar a minha decepção com o Warburg. Quando eu fui lá no arquivo dele, foi na época que eu estava fazendo Acordo. Então eu fui lá e a primeira coisa que eu fui ver foi se ele tinha a pastinha do Acordo. Ele não tinha uma pastinha do Acordo, ele tinha uma pastinha de Aperto de mão. Não sei se foi ele ou se foi o Instituto que arquivou todas aquelas fotos… É muito legal, porque eles deixam você mexer em tudo. Você entra lá, ninguém te enche o saco, você pode passar o dia inteiro mexendo em tudo. Você abre gaveta, tira pasta com foto, é o maior barato. Mas as categorias do arquivo dele eram muito anatômicas. Enquanto que os gestos com os quais eu trabalho são gestos muito mais ligados a… São todos gestos feitos com o corpo, mas eles não estão presos a uma situação anatômica, digamos assim: “o joelho dobrado”… São coisas mais como A primeira pedra: sair na rua e pegar a primeira pedra que você encontrar. Você faz isso com a sua mão, mas é uma outra situação.

Essa coisa de A primeira pedra, como também de No hay pan… Tem uma atualização também de algumas referências que são referências religiosas. Como é que isso entra no teu trabalho? Por que é que você se interessou por isso? Como é que isso começou a aparecer? Porque tem uma coisa também, às vezes, de ditados…

Sim. Eu acho que começou com a Sopa de pedra, porque “sopa de pedra” é uma história que o meu pai me contava quando eu era criança. E foi um trabalho que eu fiz sob encomenda. Foi, talvez, a primeira vez também que eu comecei a dar importância a isso, quer dizer, a essa coisa do ditado, da expressão. Eu nem estou falando dos materiais banais. Eu comecei a perceber que eles são ricos também, que eles também são coisas de uso cotidiano. É uma parte da linguagem que é super rica, mas que não é erudita. É uma coisa que todo mundo entende. Se você parar para olhar para elas com um certo carinho, elas têm muito o que dizer. Mas eu vou te explicar mais ou menos, por exemplo, como é que A primeira pedra surgiu. Ela surgiu quando eu estava fazendo a Sopa de pedra. Eu estava com a casa cheia de legumes de pedra. Estava montando a edição. Estava curando as pedras. Lá em casa, o ateliê explodiu para a cozinha, para a sala. Para onde quer que você olhasse, estava cheio de pedras. Eu comecei a olhar aquilo… [risos] Achei que fosse um exército, sabe? Que eu estava espalhando pelo mundo. Comecei a achar aquilo legal. E a coisa de A primeira pedra me ocorreu nesse primeiro momento. Eu comecei a viajar que, na hora que Jesus fala para a galera: “não atire a primeira pedra”, você está com a pedra na mão! Você está pronto para jogar a pedra na cabeça da pessoa. E o seu gesto é um gesto que depõe a violência. Mas a mão está ali, segurando o negócio. Você está pronto para atacar. Mas é um não gesto, digamos assim, é um gesto negativo talvez. Você não realiza o gesto, mas você continua com a pedra na mão…

Sim, mas então o que te interessa é que ali também tem um gesto.

Ali tem um gesto. E o que eu consegui, o que eu acho que deu muito certo no trabalho, foi disponibilizar esse gesto. Eu tinha as primeiras pedras, que eram esculturas, que você poderia ter. Era uma escultura muito simples. Era um cubo de concreto que estava assinado. Não tinha nada de inocente nisso, eu estava consciente… Todo mundo quer ter um trabalho do Matheus? Então para você ter A primeira pedra você tinha que sair na rua, encontrar a primeira pedra que enchesse a sua mão e trazer para a galeria. E você trocava. Esse trânsito de sair da galeria e ir para a rua, isso é uma performance. Só que é uma performance que você faz para você mesmo. É essa coisa do gesto que eu acho bonito, porque quando eu falo em disponibilizar um gesto, eu peço para o público fazer um gesto que ele faz para si mesmo. Não tem mais a coisa da audiência. A performance está muito presa a esse modelo teatral. Essa coisa de você sair na rua, achar a primeira pedra (uma pedra que pode ser uma arma), carregá-la de volta para a galeria… Nesse momento, várias coisas podem acontecer. Porque quando você sai na rua carregando uma pedra, é uma arma. As pessoas olham para você…

“Por que essa pessoa está carregando essa pedra?” [risos]

“Vai fazer o que com essa pedra?” [risos] Exatamente. O gesto tem essa duração. Esse tempo, esse momento em que as coisas podem acontecer. Muita coisa pode vir a acontecer, enquanto você efetua esse gesto. E é uma coisa que acontece com o pão também, que eu peço para abrir… A ideia é que você abra o pão…

Sim, é lindo esse gesto.

E deixe a areia cair…

E como é que esse gesto te ocorreu? Porque ele não é um gesto óbvio… Quando você pensou em colocar a areia dentro do pão, você já pensou nesse gesto?

Já. Eu já tinha pensado, porque esse gesto de partir o pão é um gesto muito simbólico.

Eucarístico, né?

Eucarístico mas também… Para você comer uma coisa grande, você tem que parti-la. Também é um gesto de…

Repartir.

De repartir. Ninguém pega um pão, mesmo se você estiver comendo sozinho, ninguém pega um pão sozinho e come. [risos]

Um pão daquele tamanho, não.

Talvez um alemão. [risos] É como se fosse mais ou menos uma ampulheta. Quando você abre, cai a areia. E na verdade você não está partilhando mais nada. Acaba. É como se o objeto sumisse. E quando as pessoas abriram o pão, as reações que elas tiveram foram muito incríveis, muito variadas. Mas existe o sentido de uma certa liberação também. É meio bruxaria, esse trabalho do pão. Ele não é tão transparente como A primeira pedra. Ele tem um lado bastante obscuro também.

Sim, porque o gesto de repartir o pão é um gesto que todo mundo conhece, é um gesto que já tem um significado. Mas que, nesse momento, caia essa areia, isso é alguma coisa de absolutamente não esperado e, ao mesmo tempo, enigmático. O que é que exatamente isso? A Kaira Cabañas diz uma coisa interessante sobre esse teu trabalho. Ela diz que você traz o deserto para dentro do pão.

É. Dentro do esquema de composição do trabalho, era isso mesmo, essa inversão. Ao invés de você ter o pão no deserto, é o deserto que está dentro do pão. Se a gente for pensar a lenda do maná e pensá-la nesses termos, é muito interessante. O que eu acho legal da história do maná… Se for para falar de religião, como você perguntou, o jeito que eu olho para a religião é muito cru. Os judeus que estavam fugindo do Egito, eles eram refugiados. Eles estavam saindo em direção a uma certa liberdade, eles eram escravos. Eles ficaram 40 anos de propósito no deserto, porque Deus queria que chegasse uma nova geração à Terra Prometida. Esses 40 anos são o tempo para a geração que estava fugindo morrer e a geração que nasceu no deserto fundar Israel. Quando você tem essa inversão, um dos caminhos para esse enigma do trabalho do pão é entender que o deserto, esse espaço de renovação, está dentro do pão, não está fora.

E esse é outro elemento que também fica insistindo no seu trabalho, que é a coisa do alimento. Em mais de um trabalho. E agora, de algum modo, de novo, com a batata.

Minha relação com a comida passa por uma questão do valor. Um dos problemas da arte, hoje em dia, é que ela virou dinheiro. Está completamente financeirizada, digamos assim. E é um valor muito abstrato. O valor do dinheiro é uma coisa meio abstrata. Não é do mundo real. Quando você faz uma crítica do dinheiro, é uma crítica meio inefetiva também, porque como esse valor é abstrato, você está falando de uma coisa que meio que não existe. Com comida não. Por exemplo: se eu gasto cinco mil dólares com mármore para fazer uma escultura, isso é visto como uma coisa absolutamente normal. Se eu gasto o mesmo dinheiro com leite, e esse leite não vai ser consumido, isso já é um problema. Porque a comida tem que ser usada. Todo mundo tem uma atitude moral com a comida, imediata: a comida não pode ser jogada fora. Isso é muito interessante. Quando você começa a usar comida para falar de valor, a comida conecta as pessoas. Diferente do dinheiro, que é uma coisa abstrata, a comida é uma coisa que todo mundo come, todo dia. Você imediatamente implica o público quando usa comida. E eu comecei a perceber isso. E comecei a usar a comida para tentar fazer um pouco dessa crítica de valor, de trazer um pouco desse valor de uso para a esfera da arte. E acho que, nessa palavra “uso”, a coisa do gesto está junto, porque o gesto é como você usa as coisas. E a comida tem essa coisa de ser do dia a dia, da vida normal, cotidiana. Eu não estou falando de abstrações. E a partir da batata, eu consigo falar de uma coisa totalmente maluca (de guerra, não sei o que lá e tal), mas usando uma coisa muito comum. Tem o outro lado também, que eu adoro comida. [risos] Mas, por exemplo, eu não gosto de gastronomia. O jeito que eu lido com a comida não é um jeito gastronômico. Eu trato a comida como comida, as batatas estão na exposição como batatas, elas não estão representando… Por exemplo, geralmente eu não cozinho nos trabalhos. Quando eu fiz a Sopa de pedra era a coisa mais simples do mundo. Enfim, eu uso a comida como comida.

Qual foi o primeiro trabalho em que a comida apareceu, o alimento? Porque na verdade não é exatamente comida, é aquilo com o que você faz a comida, é mais o alimento mesmo

É, é mais o alimento… A primeira vez foi em 2010, eu fiz dois trabalhos que tinham comida: o BO, que eram uns produtos de supermercado com fundo falso, e um outro trabalho que eu fiz em Londres. Eu descobri uma fábrica abandonada… Abandonada não, fechada. Tinha alguém morando lá, mas era um lugar que não estava sendo usado há muito tempo. Eu descobri que tinha um estoque de sopa de tomate e café com leite enlatado, em latinha, que nem latinha de Coca-Cola, um produto que nunca entrou em circulação. Uma coisa que eles fizeram e que talvez tenha dado errado e que estava lá havia seis anos, com a validade expirada. E o trabalho que eu fiz foi entrar na fábrica e usar aquilo tudo. Comecei a abrir aquilo e a fazer um tanto de coisas com aquilo. Essa foi a primeira vez que eu comecei a usar comida. Depois a comida apareceu com mais protagonismo, digamos assim, quando fiz o Juízo final, que era com leite, a Sopa de pedraA sopa de pedra foi um trabalho que realmente abriu muito espaço, porque ela exigia essa coisa de servir a sopa, ela exigia esse momento que existe na história original, que todo mundo toma sopa junto. A Sopa de pedra também tem a coisa do gesto… O gesto junta com a escultura e quando você faz esse nó, essa amarração de gesto e escultura, comida e valor, está tudo ali…

A pedra era feita como?

Pedra-sabão. [risos]

Ah, claro, é isso mesmo. Eu lembro que quando eu vi, eu pensei, “ah, meu Deus, coisa de mineiro”… Claro, com certeza!

A minha alma mineira ficou orgulhosíssima de conseguir fazer arte contemporânea com pedra sabão.

Claro, com certeza. É perfeito.

E, por exemplo, agora, esse ano, eu vou fazer Leite de pedra.

Ah, maravilhoso, incrível.

Porque aí eu comecei a levar a sério a história de tirar leite de pedra. Tirar leite de pedra é fazer o impossível.

É isso que eu acho super interessante no seu trabalho: na verdade, o que te leva, a cada vez, a um material é um start que não é material: é uma frase, é um ditado… Mas aí essa frase, esse ditado, ele mesmo impõe um material. Não é isso? Por exemplo, você não fazia escultura, e você foi para a escultura não por um interesse pela materialidade. Ao contrário, você foi obrigado a encarar a materialidade por causa das palavras. Isso é interessante.

Exatamente, foi uma exigência…

Que é a própria ideia impôs.

É, eu nunca tinha pensado nesses termos, é verdade. Eu fui desenvolvendo uma coisa e em um determinado momento eu tive que encarar isso, mas não foi um interesse formal, material…

Mas isso é impressionante, porque a partir daí a escultura ganhou um lugar muito forte no seu trabalho.

Sim, tem uma coisa da escultura que eu gosto, que é essa coisa de que eu estou falando, essa concretude. A gente vive em um regime de imagem muito grande, hoje em dia. As imagens são sempre muito espectrais. A escultura, ela é mais real, ela é mais… É uma outra ética. Na hora que você vai lidar com escultura, você tem que ter muito mais responsabilidade. Você pode fazer escultura imagética também. Mas sei lá, esse negócio de batata… Aquilo ali são batatas, não estão representando batatas.

Esses trabalhos te obrigam a construir uma trama de vários registros simultâneos: você tem a coisa escultural, você tem que lidar com o material que você escolhe, mas, ao mesmo tempo, você está trabalhando com alimento, que é uma outra coisa; tem a dimensão do gesto, tem a dimensão performática; continua tendo o trabalho com a imagem, porque o gesto também está articulado com a imagem… É isso que eu estava falando, essa sobredeterminação, essa sobreposição, do fato de um trabalho ter muitas camadas que vão se ligando de um modo meio metonímico…

Sim. É uma coisa que as pessoas às vezes reclamam, porque sentem falta de explicação. Mas eu acho que você tem que ter a calma para lidar com o trabalho e deixar ele vir. Se deixar ele vir, ele vem. Aí esses níveis vão se desdobrando e você vai entendendo que eles não aparecem de uma vez só, eles vão aparecendo aos poucos.

Sim, porque, por exemplo, no caso do plástico, nesse trabalho, ele vem também por causa da batata.

Vem.

Porque é o recipiente…

É, o recipiente é o saco plástico.

Só que aí o saco plástico assume uma dimensão escultural. Você descobriu essa coisa do gesto, ao mesmo tempo que você já estava lendo o Agamben?

Foi… Não.

Teu contato com o Agamben, tua descoberta do Agamben, foi como?

O primeiro livro que eu li foi Homo Sacer. Isso foi em 2000 e…?

Foi publicado no Brasil em 2003.

É, mas eu li bem depois. Porque a coisa do Agamben veio junto com a Itália. Foi tipo 2011, 2012.

Você foi fazer um trabalho lá…

Eu fui fazer um trabalho em Napoli, esse do Acordo. Quando eu li as coisas do Agamben, eu já estava… O encontro com o Agamben foi muito importante por causa disso, porque não foi uma coisa que… As coisas que ele estava falando, eu já estava fazendo.

Foi um encontro com alguém que estava pensando a questão que você já estava pensando.

É, como uma questão que eu também já estava pensando, e o jeito como ele estava pensando. Aquilo de que eu sou mais devedor do Agamben, para mim, é o método, o jeito como, para tratar de problemas absolutamente contemporâneos, ele dá um pulo lá na puta que o pariu do passado para falar de uma coisa de agora, para ver como é essa sobrevivência de questões muito antigas.

Ele diz: a arqueologia é o único modo de acesso ao presente.

É, exatamente. Porque eu tenho uma tendência natural, nostálgica, mineira. Nasci em uma cidade barroca, morei em Petrópolis, eu estudei história… Esse olhar para o passado já é uma coisa que está na minha vida, na minha infância. Mas teve um momento no trabalho que eu tomei essa decisão de dizer: não, por pior que seja o presente, por pior que seja este momento que a gente está vivendo, que a cada ano parece que piora, é o único tempo que a gente está vivendo e o único tempo que nós temos, então é esse tempo. Então, não reclame [risos].

É tentar descobrir esse tempo.

É tentar descobrir esse tempo. E aí então o passado fica mais interessante… Essa relação com o passado deixa de ser escapista para ser uma relação…

Não de fuga do presente, mas ao contrário.

De encontro. Esse método dele, eu comecei a aplicar no meu trabalho, a refinar o meu método a partir do método filosófico dele. E é claro que tem coisas que, quando eu fui para a Itália, quando eu vi as coisas do Renascimento, também isso foi uma coisa muito chocante para mim. Em Roma, também tem isso, da arte estar no mundo. Tem uma coisa que a minha amiga Gisele fala: a arte contemporânea não está no mundo, ela está escondida. E é muito verdade isso. A arte contemporânea está totalmente enclausurada. A maioria das coisas está na casa das pessoas ou em depósito…

Arquivadas.

Está tudo arquivado. O que está no mundo é a publicidade.

E você usa muito a publicidade como fonte, como material.

Sim. No mundo antigo, a arte como religião, era tudo junto. Existia um uso social da coisa que é muito interessante, que hoje em dia se perdeu. A arte moderna rompeu com isso. O preço a se pagar foi uma certa irrelevância social, digamos assim. O valor da arte, para mim, tem a ver com um valor social, porque tem que ter um reconhecimento social. Se a arte não é compartilhada, se não é socialmente aceita… Se ela não é um fator social, ela vai morrer.

Daí você trabalhar com essas referências e esses materiais que são materiais e referências acessíveis a todo mundo, que pertencem ao mundo de todo mundo.

É. Eu posso estar pegando uma referência de Machado de Assis, que na Alemanha ninguém conhece, mas eu consegui transmitir alguma coisa, independente das referências particulares, muito a partir de usar esse vocabulário meio pop, meio comum, do nosso tempo. Você tem tanto esse movimento de buscar coisas do passado e desenterrá-las, como também o movimento de pegar as coisas do presente e, digamos, dar um fundo para elas.

Eu acho que o Agamben, quando ele fala da arqueologia, mesmo que ele faça uma referência muito forte ao Foucault, eu acho que a referência dele mais forte é o Warburg.

É, eu também acho.

Ela é mais fundamental para ele. Você descobriu o Warburg antes de ler o Agamben ou depois de tê-lo lido?

Depois. Eu na verdade li muito pouco do Warburg. Eu li dois livros só, e aí fui lá no Instituto. Mas eu acho que o Warburg ainda não foi… Ele ainda não foi entendido direito, ele está muito na moda agora, mas acho que o passo que ele deu foi muito grande, ainda vai demorar um pouco para ele ser entendido…

O Agamben fala isso. Eu acho que ele sente isso em relação ao Warburg, por exemplo, quando ele diz que o que o Warburg fez é tão novo, tão diferente, que até hoje não tem nome para o que ele fez. Ele insiste sobre esse fato, de que a ciência do Warburg é uma ciência sem nome. Exatamente por isso, porque há uma dificuldade muito grande, dentro do quadro nosso, atual, de localizar o que é aquilo.

É.

Mas você não disse o que é que te decepcionou no Instituto Warburg.

Eu fiquei decepcionado porque os gestos eram categorizados muito anatomicamente. Na verdade eu gostei também. Porque aí eu falei, “ah…” [risos]

Claro, porque aí você pode dizer algo que não está lá.

Na verdade eu gostei. Eu pensei: ah, pode fazer os seus trabalhos, tranquilamente, porque está faltando esse arquivo aqui… [Está faltando] entender a figuração para além da anatomia.

Eu estou congelando de frio [risos]. Mas vamos fazer uma pergunta para fechar. Quando você abandona os estudos de História e de Filosofia e vai para as artes visuais, você entende isso como uma interrupção ou como um desdobramento desse caminho?

Eu na verdade nunca abandonei esses estudos. Eu abandonei a faculdade.

E como é que você entende essa transição?

Eu não quis estudar arte. Eu também nunca quis ser historiador nem nunca quis ser filósofo. Eu preferi estudar história porque eu achei que eu fosse aprender a alguma coisa que na faculdade de artes eu não ia aprender. Porque a faculdade de artes também está muito ligada a uma questão técnica, de você aprender a desenhar etc. E, realmente, naquele momento, eu estava fotografando. Eu estava mais interessado em coisas que eu sabia que eu não ia encontrar na faculdade. E eu tenho muita preguiça desse modelo de artista do século XIX…

De belas artes.

Sim, de belas artes. Eu não me reconheço ali, eu sou uma pessoa que, desde que eu comecei, que eu decidi ser artista, eu sempre tive no meu horizonte que a qualquer momento eu posso parar também. Não é uma coisa da minha identidade, digamos assim.

Do mesmo modo como, quando você estava estudando História e Filosofia, também não era a sua identidade.

Sim, não era uma coisa que eu estava assumindo como “eu preciso ser isso”. Não.

É um espaço de busca.

É um espaço de busca, exatamente. Então, na verdade, não tem interrupção. Na verdade, eu acho legal ter esse trânsito, de ser artista e não ter formação de artista, e de ter estudado história e filosofia e não ser nem…

Nem historiador, nem filósofo.

Então eu consegui ter um trânsito nessas disciplinas, com a liberdade, não de amador, mas uma liberdade de não-profissional, digamos.

Mas você reconhece no teu trabalho, no que você fez depois, de algum modo, a sobrevivência de questões que você foi buscar na história ou que você foi buscar na filosofia…

Sim, totalmente. Inclusive a partir do método de pesquisa. Está muito relacionado à coisa da história. Muito particularmente uma coisa arqueológica. Aquela coisa do Benjamin, que eu acho muito incrível, de que o passado, ele não está acessível: ele aparece de acordo com o presente. É uma coisa meio bergsoniana também. O passado não é uma coisa pronta. Em um determinado momento de perigo, ele aparece.

Mas, quando você está começando um trabalho, quando você tem uma ideia para um trabalho, você se lança em um processo de pesquisa. Esse processo de pesquisa, às vezes, ele tem aspectos de história, ele tem aspectos de pesquisa filosófica… Você se vê pesquisando para começar a pensar em um trabalho…

É. Mas tem uma coisa que eu faço quase todo dia que é recortar jornal. Eu tenho um arquivo de imagens muito grande que, às vezes, vira trabalho, às vezes não. Por exemplo, Ao vencedor, as batatas começou com as fotos do pessoal beijando troféu. Eu via aquilo e pensava: “gente, que coisa esquisita”. Sempre achei aquilo muito estranho. Aí comecei a guardar aquilo, sem a menor pretensão de fazer nada.

Tinha a dimensão do gesto que te encantava ali, provavelmente.

Sim. Que é um gesto muito maluco. Beijar a taça. E é um gesto que é performado, porque ele é feito para fazer a foto. Que nem o Acordo. Tem aquele negócio daquele linguista, o Austin, How to do things with words. Isto é uma coisa bonita da performance: não é que você está denotando uma realidade. Não: com a linguagem, você funda uma realidade. E aí a relação com o real fica muito mais complicada, muito mais maluca. Esse é o meu jeito cotidiano de trabalhar. Tem muitas coisas que eu faço que não viram trabalho.

Nesse caso, apareceu primeiro essa sua atração por essas imagens, das taças…

Sim, essa frase, eu já tinha na minha cabeça há algum tempo…

Ah, você já tinha a frase antes?

Já, eu achava que “aos vencedores, as batatas” era uma expressão popular. Eu não sabia que era do Machado. Quando eu comecei a pesquisar é que eu descobri que era do Machado, que eu li o livro… É incrível porque é uma frase que sai da boca de um filósofo moribundo. Eu adoro a tradução em inglês, é muito boa. A tradução do Quincas Borba em inglês é Philosopher or dog? Porque o Quincas Borba é o cachorro e o filósofo.

Sim, claro.

Eu descobri no Quincas Borba uma coisa que me é muito cara, que é isso de você ter mundos que se encontram completamente… O livro é muito irônico por causa disso, porque você tem as altas esferas e as baixas trocando de lugar o tempo todo.

Mas quando é que você conectou uma coisa com a outra? As imagens dos troféus e as batatas?

Foi quando eu já estava aqui, mas eu não lembro direito. Teve um momento em que eu falei: tem que fazer esse trabalho aqui. Foi quando eu descobri que as pessoas põem batatas no túmulo do Frederico, O Grande , lá em Potsdam, que é aqui do lado. Foi o cara que trouxe a batata para a Alemanha.

Mas quando você descobriu isso você já estava ligado na frase do Machado?

Já estava ligado na frase do Machado. Mas quando eu vi que esse negócio existia, eu falei: eu tenho que fazer esse trabalho aqui. Foi uma coisa que foi boa também, que me ligou no contexto local, porque eu consegui falar de alguma coisa daqui, mas com a minha referência brasileira. Quer dizer, um ponto onde as minhas referências brasileiras se encontram com referências que são deles, alemãs, porque eu não queria fazer nada… Sei lá, a coisa mais imediata a ser feita aqui seria fazer um trabalho sobre o muro de Berlim. Enfim, é uma coisa que tem a ver com o meu trabalho, mas eu quis me afastar disso porque não é o meu problema. Não é arrogância, mas eu acho um pouco de inocência eu querer tratar de uma coisa que eu não vivi. E eu estou muito feliz com esse trabalho aqui em Berlim, porque eu consegui fazer uma ponte de diálogo entre a cultura alemã e a brasileira.

E ao mesmo tempo também tocou em uma coisa que é universal, que é essa coisa do troféu, da vitória…

Da guerra… É. Porque o negócio do troféu também foi assim: eu descobri que troféu vem do grego tropein, que era quando um exército ganhava do outro. O tropein era o turning point. Era quando você consegue dar uma volta, dar uma banda, e aí você vence. O troféu tem esse sentido originário de ser um ponto de virada. E os primeiros troféus eram feitos com as armas dos vencidos. O campo de batalha era aqui, em Tempelhoff. Eles pegavam e juntavam todas as armas, faziam uma pilha e aquilo era considerado sacro e ninguém podia encostar a mão. Aí isso evoluiu para uma coisa arquitetônica e depois isso foi para a cidade. E só 200 anos atrás o troféu entrou para o mundo do esporte. Porque até então você ganhava o louro, desde a olimpíada na Grécia até o século XV, XVI, você ganhava um buquê de flor e um louro, acabou. Não tinha esse negócio de ganhar o troféu. E isso foi uma coisa que me informou muito aqui também, porque eu quis fazer um troféu de batata, mas com esse sentido originário do troféu, não com o sentido da forma do troféu. Mas com esse sentido originário ser uma coisa feita com os materiais dos vencidos.

Ok. Eu estou congelando.

*Claudio Oliveira é Professor na UFF (Universidade Federal Fluminense).

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