Entrevista com Carla Diacov

Yasmin Nigri
Revista Caliban issn_0000311
7 min readAug 22, 2017

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Carla Diacov nasceu em São Bernardo do Campo, SP, Brasil, 1975. Formada em Teatro. Estreia em livro, além da participação em algumas antologias, com Amanhã Alguém Morre no Samba, (Douda Correria, Portugal, 2015). Tem participação em diversas revistas on-line e impressas.

Se atraca com as plásticas o tempo inteiro, movimento que a serve a construir em conjunto de matérias ou que a traz de volta às letras somando algo da extração da borracha. Gosta de abordar o sangue. Tende a ser serial.

Em Agosto de 2016, publicou A metáfora mais Gentil do Mundo Gentil, (Macondo Edições, Juiz de fora).

Em 22 de Setembro, foi publicado o primeiro volume de Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse (Douda Correria, Portugal, 2016).

Em Agosto de 2017, pelo selo da revista portuguesa Enfermaria 6, lançou o livro online bater bater no yuri. No mesmo ano, o livro dois pontos pescoço x sobreviventes (poesia) será lançado no Brasil pela Editora Urutau.

Também em 2017, as Edições Macondo (Brasil) reeditam Amanhã Alguém Morre no Samba e Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse I e II.

Por ocasião de seu último livro, bater bater no yuri, Carla gentilmente me concedeu essa entrevista. O resultado final vocês acompanham abaixo, seguido de alguns poemas do livro novo e, obviamente, alguns de seus primorosos desenhos.

Carla, vivemos em uma sociedade misógina e patriarcal que tolhe e silencia constantemente as mulheres. Não bastasse isso, o mercado editorial e o meio literário são comumente bastante cruéis com as escritoras e os escritores, obrigando muitos a pagarem para ver seus livros editados; além disso, boa parte do que é editado não resulta em críticas e/ou desdobramentos. Você está constantemente sendo prestigiada com convites, tem vários projetos em andamento e uma trajetória de reconhecimento bastante consistente. Quais dicas você daria pra quem está começando e qual foi o fator determinante pro seu sucesso?

Acho que não temos muito espaço pra muita gente, especialmente para poetas mulheres e, claro, me incluo nisso. Minha produção é praticamente diária e faço isso ser notado no meu perfil do fb. Não sei se isso responde exatamente aos convites que recebo. Certamente não responde a falta de abertura que existe sim, no nosso meio e muito mais gritante em relação às mulheres, às mulheres negras, às mulheres lésbicas… Honestamente não vejo minha trajetória. Me sei começando algo e sou feliz em ter os contatos que tenho, em ter sido convidada pelo Nuno Moura (Douda Correria) a fazer meu primeiro e então meu segundo livro e então um livro com a Macondo (Juiz de Fora) e agora esse livro online com a Enfermaria 6. Tudo isso é produção independente e sinto que as pequenas editoras estão fermentando a poesia aqui e em Portugal. Mas em questão de trajeto, vejo um projeto que tem “funcionado” muito bem. Gosto de estar onde estou. Hoje, mais que isso me assustaria, porque me sei a caminho. Penso que estar biologicamente ligada ao que se escreve, saber a produção junto do corpo que produz é essencial na conquista do espaço que se deseja para a produção em si. Tenho mais dois livros para lançar esse ano. Talvez depois disso eu veja algum focinho traçando uma trajetória! Gosto muito de me sentir a caminho.

Você é uma artista que não se restringe apenas à escrita como meio de expressão. Você atua, dirige, desenha, escreve, etc; tudo isso surgiu ao mesmo tempo na sua vida ou teve alguma ordem? Como funciona a escolha do suporte e das ferramentas que irão dar forma às suas ideias?

Atuei, dirigi.

Com certeza a partir dos exercícios (atriz, figurinista, cenógrafa e diretora) do teatro, não sei exatamente em que ordem, comecei a desenhar e a escrever com maior vontade de que o desenho e a escrita fossem artes à parte, mas me enganei bem aí, porque a arte, pelo menos pra mim, é muito mais atraente, intrigante quando sugere opções de vias. Claro que um poema pode ser só um poema e ser um maravilhoso poema e só, o que já é lindo!

Os meios de expressão presencial ficaram lá atrás.

Eu sou repetitiva em dizer minhas fobias, porque acho importante que me saibam assim e também porque hoje essa condição em si é um canal de formas de expressão e daí tiro algumas das ferramentas atuais.

Não tenho escolha em estar em outro lugar físico, então faço meus caminhos em estar aqui e ali de outras maneiras. Meus rituais, meditar, girar e mesmo os ritos do TOC são minhas fontes principais. O TOC deixou de ser torturante quando vi nos rituais possibilidades para a poesia. Ainda sinto que o mundo pode explodir se eu não bater meu dedal 33 vezes numa plaquinha de mármore, mas agora também tiro vantagens disso.

Aparentemente aperfeiçoei meus dias para uma recepção melhor de eventos que passariam batidos. Um exemplo disso eu comentei contigo outro dia!: Me senti absurdamente feliz em assistir um filme com uma intrigante maneira de explorar a narrativa! Foi um acidente de percurso, apertei algo errado no controle e por dias endeusei o diretor de ALLIED, porque afinal aquilo era genial! Escancarar a narrativa, o roteiro (e isso é bem da paixão pela leitura da dramaturgia) NO filme! Brilhante! Repensei e exercitei a narrativa de todas as maneiras que pude e foi incrível. Produzi muito nesses dias de êxtase. Descobrir que foi um “acidente”, que o acidente chama-se áudio descrição nem me decepcionou tanto, porque eu já estava com o “milagre” em pauta.

Então minha gripe, meus sonhos, a música irritante da vizinha, desconstruir um poema (meu ou não), música ou filme (compasso, frases, sentidos, tempo, voz), estar receptiva aos incidentes em soma aos rituais e exercícios é o que eu tenho.

A sua curiosidade, combinada a uma forte energia criativa, resulta numa produção ampla. Sabemos que, infelizmente, estamos vivendo um momento histórico sombrio cuja característica é o retorno de uma forte onda conservadora. De que modo a sua poesia dialoga com o presente? Como você entende essa relação entre arte e política?

Eu fujo do conservadorismo desde a escola. Sou extremamente tímida e vejo que isso me inclinou a abrir um caminho à parte. Estou dizendo isso e pensando nas aulas de educação física, em como eu estava e não estava, nos meu medos e então nas minhas maneiras de estar no mundo. Isso tudo tem imenso peso sobre o que veio a seguir. Me forcei a fazer teatro, fiz bom uso da tortura que era estar diante de pessoas, forcei a transformação dessa energia, que de torturante passou a ser desafiante, experimental, criativa.

Depois da escola de teatro passei a trabalhar com uma pessoa maravilhosa e tive o privilégio de criar o meu teatro, o nosso teatro (também um espaço físico em Londrina) onde era permitido experimentar sem regra alguma. Essa fase foi libertadora e sou muito grata a essa época, sou grata a Camila Fontes, com quem trabalhei por anos(a Camila segue um trabalho próprio e maravilhoso em Londrina).

Espantosa e ocasionalmente me sinto absolutamente próxima do teatro, no sentido de que estou a processar e ou direcionar energias, estou a criar modos de ser a energia pelo corpo que também é o corpo do poema.

Estar a criar foi, antes de tudo, um processo de defesa, de não me deixar ser tocada pelo conservadorismo. Dito isso, dialogar com o que se passa hoje é muito mais fluxo, muito mais orgânico do que planificado.

Atualmente, quase tudo que escrevo é bem próximo da voz daquela tortura transformadora.

O que motivou você a se tornar uma artista? A sua motivação permanece a mesma ou a sua ideia do que seja a arte e a função da artista foi sendo ressignificada com o tempo?

Não planejei me tornar uma artista. Como eu disse, a princípio a arte veio como defesa e depois me pareceu muito mais que natural seguir o caminho que, entre outras coisas, me liberta ou me afasta das convenções. O signo disso segue se alimentando. Não consigo (ou não por muito tempo) dialogar com qualquer aspecto da vida de outra forma.

régua ampulheta metrônomo

agradável é esticar primaveras

yuri tornou a régua
o grande golpe sobre o tempo atende por yuri
transporta contigo yuri os dedos daqueles dias yuri
o fim de todos os dedos
o couro da intermitente incursão

medir medir a poça descomunal

nunca mais vou bater o coração no yuri

diversão

pelo vidro brincar com a morte
a abelha que irá trombar com ideia verde

que tipo de anjo poliniza a memória?

pelo vidro o pombo batido
o nome batido
brincar brincar com a morte
despenteada cair do sonho

sob a mesa outra estação em interferências
absurdas:
estamos aqui e essa pode ser uma resposta
que também pergunta

yuri! yuri yuri!
vem ver que barco estranho!

rápido

fatalidade
ganhei da fatalidade um rosto parecido com
o teu yuri
com proporções descabidas
três luas uma para
cada olho uma para
equilibrar o nariz
e mantenho acesa a boca com os gases da magnólia
metida entre as tetas

daisies along the road

a forma tendida de digerir

a primeira vez que yuri voltou
foi pelas mãos de um jardineiro

assenta assenta o dedo na terra
contra o batuque do giro do fuso
assenta a semente assenta adubo assenta água

pensar pesar estradas de me fazer distâncias
pesar pensar postes de me fazer estadas

yuri vem ver a margarida que deu fruto forasteiro

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