Entrevista com António Cabrita

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
12 min readMar 14, 2020

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António Cabrita (1959), escritor português, residente em Maputo, uma cidade que o coronavírus ainda não sitiou, a pretexto do seu último livro de poesia, a Kodak faliu, também o dick, o cão da minha infância (Barco Bêbado, 2010), fala-nos do percurso acidentado que a recepção da sua poesia tem conhecido, das leituras que o alimentam e dos seus projectos futuros.

Este foi um ano de extraordinária produção escrita da tua parte, em várias frentes. Gostava de saber como concilias a tua vida profissional com a vida literária.

Achas? Eu acho-me um preguiçoso, um mole sem remissão. O que aconteceu é que tenho sempre cinco livros de avanço, na gaveta, em relação ao ritmo do que publico, e no fim do ano passado, como não publico numa só editora, coincidiu que várias editoras agendassem um livro meu para o mesmo período. E então saiu o romance, Fotografar contra o vento, na Exclamação, uma antologia alentada que fiz de poesia hispânica, As Causas Perdidas, na Maldoror, um piqueno livro de poesia, A Gazeta de Madagáscar e mais doze despedidas, na Nova Mymosa, a segunda edição de O Pastor de Ventos, uma saga infanto-juvenil, na EPM-celp/Exclamação (ou seja, este livro saiu simultaneamente em Portugal e em Moçambique), e, no mesmo período saiu, pela Maldoror, O Relatório de Cegos, do Ernesto Sabato, onde fiz um extenso posfácio. Mas de toda esta produção, só o romance estava em processo, inacabado, porque um romance só se acaba nas provas, o resto estava nas gavetas. Só tive de produzir o prefácio para As Causas Perdidas e o posfácio do Sabato, que são grandes e têm uma pulsão ensaística mas resultam de sedimentações magmáticas — foram rápidos na execução mas precedidos por uma incubação quase imemorial.

Contudo, editar muitas coisas não quer dizer que se note, pode até ter um efeito de saturação. Olha o que aconteceu com o romance, Fotografar Contra o Vento. Depois do alarde que a crítica fez em torno de A Paixão segundo João de Deus, um livro divertido mas menor, raia o absurdo o silêncio que se abateu sobre este romance, que tem outro fôlego e outra densidade estrutural. Preferia que dissessem mal.

Quanto à minha vida profissional é branda, quase residual. Neste momento, desde há dois anos, dou aulas de Dramaturgia na universidade a um ou dois alunos — o que me gasta uma tarde à semana — e tenho duas crónicas semanais, uma num semanário em Maputo, o Savana, e a outra no Hoje Macau, o que me arromba outro dia. O resto dedico a ler e escrever e a ouvir música. Como a vida social e cultural de Maputo é mais regrada, sobra-me o tempo para o ócio que premedita a criação. Acrescenta a isto uma insónia crescente e o facto de ser falho quanto a ambições materiais. Tenho uma vida ascética, não tenho carro, vivo de Mozart e de umas fitas, não tenho reforma, e, como escreveu uma repórter do Público, a minha casa tem um minguado conforto; nela só cabem livros, um piano, um violino e uma viola-de-arco. São escolhas. E, no final, continuo a ter os mesmos cinco livros de avanço. Como? O Diderot dizia que em tudo é preciso pôr um pouco de testículo, e falava evidentemente do desejo. Há uma energia que só o desejo transmite e que nos galvaniza quando temos um foco. Eu mantenho o desejo intacto mas como me tornei bastardamente monogâmico sublimo e escrevo. E repito, que pena não ser capaz de me ater à disciplina.

E estar em Moçambique, longe de Lisboa, reflecte-se na tua escrita?

Reflectiu-se a vários títulos. A necessidade de dialogar com uma realidade em estado cru, esfolada, reaproximou-me do vivido e de uma poesia menos conceptual e livresca. Ademais, aqui não há um corte de temperatura entre o teu corpo e o exterior, o que te devolve à tripa, à esfera dos sentidos. Este lado de uma “rudeza fundacional” estava no primeiro livro que escrevi em Moçambique, o Piripiri Suite, mas ainda estava a tactear esse modo novo, aprendi depois a concretizar melhor a conciliação dos “impossíveis”, a tangência trágica do quotidiano vigente nestas bandas — que te empurra ao testemunho — com o resgate duma imaginação que só pode ser barroca, ou a melhor dosagem entre o erudito e o vernáculo. É o que se vai assistir no próximo volume que publicarei em Outubro, na Porto Editora, os Tristia, um calhamaço de 250 páginas e que reúne dois livros, As Feridas de Heitor e A Flor de Edo. Este é um longo poema, mais de situações e de um pontilhamento imagético do que narrativo, onde eu construo uma arca para escapar-me de Delagoa Bay (a baía de Maputo, nos séculos XVIII e XIX) na direcção de Edo, tal como se designava Tóquio, no século XVIII e que foi um viveiro de génios. E misturo o meu quotidiano em Maputo actual com essa efusão transhistórica… Por isso o livro oferece o grave e o leve, o trágico e o humor, em doses equilibradas. Acho que só o afastamento e o isolamento é que me deram as ferramentas para o uso deste jogo, que é um fruto da resiliência. Hoje seria um poeta diferente se tivesse ficado em Portugal. Não teria compreendido a dimensão magnificamente expressa pelo Echevarria, na sua última entrevista ao JL. À pergunta: E de que forma o passar do tempo foi marcando a sua poesia, responde: «A gradual passagem do tempo vai marcando alguns apeadeiros mais ou menos íntimos e até dolorosos. Essa maturação ensina-nos que tudo se sofre, mesmo a alegria.» Há um certo limiar da sageza que julgo inerente à distância; estou mutíssimo mais ponderado, sem — e este foi um aspecto importante — ter perdido a espontaneidade. E aprendi a paciência.

Acabas de publicar um livro de poesia ilustrado, «a Kodak faliu. Também o dick, o cão da minha infância». Queres explicar este título enigmático e com o seu quê de surrealista?

É um título desconcertante. Um título é uma consigna ou uma metáfora que condensa o que o livro oferece. Deu-me neste para ser descritivo, e concebi-o como um estilhaço que vai ao olho. Embora também se possa entrever nele a metáfora, chegada pela porta dos fundos. Repara que no fundo digo o que o budismo vaticina: nada é permanente. Que nos resta então? No breve texto de introdução assinalo, este é um «caderno de admirações», i.é: proponho: a memória que a admiração pode fundar. O que se respalda na fidelidade, como alcance ético. Metade dos poemas são inéditos, os demais só os publiquei em Moçambique e em Portugal ninguém os conhece. Tive uma sorte danada no meu encontro com o Emanuel Cameira, que fez uma edição maravilhosa. Este livro e os Tristia, com uma poesia diversa da que é de uso em Portugal e diferente também deste Kodak talvez resgatem a minha poesia ou a tragam à montra dos distraídos e dos curiosos.

E por falar em distracção, achas que os leitores portugueses andam distraídos da tua obra?

Queixo-me e não tenho razão. O leitor português não tem culpa da “maldição” que me perseguiu. Começou este processo na edição do livro Piripiri Suite, de 2007, o primeiro que escrevi em contacto com a erosão das terras africanas. Fora tal o meu choque que a minha propensão para a metáfora foi aplainada e o meu registo passou a ser mais directo e discursivo. Desloquei-me a Lisboa para o lançamento do livro, embora a editora tenha acabado no “dia seguinte” ao evento, pelo que o livro só esteve à venda em duas livrarias, uma em Lisboa e outra no Porto, ao sabor de encontros ocasionais. Do que evidentemente eu só tomei conhecimento depois. O meu segundo livro invisível chamava-se Bagagem não Reclamada, e seria supostamente editado pela Cosmorama, em 2008. Revi as segundas provas do livro e tenho o pdf, mas na véspera do lançamento a editora avisou-me que estava em dificuldades económicas e não havia condições para o colocar na tipografia. Pareceu-me correcto o procedimento, ainda que me fosse desagradável. Um ano depois, ganhei um prémio com o livro Bar La Fontaine, e segundo os estatutos do prémio a câmara apoiaria a edição. Voltei a propor à Cosmorama que eles editassem, dado o apoio. Recebi então as provas do livro e desloquei-me a Lisboa, convencido de que haveria lançamento do livro. Ao passar por cima do Atlas veio-me um nó na garganta, uma intuição. Pela primeira vez no historial do prémio, por causa da crise, a câmara não apoiou a edição, e a editora foi incapaz de me dar cavaco, o que me pareceu imoral.

O meu acto seguinte como Homem Invisível ocorreu com o livro Não se Emenda, a Chuva, escrito para celebrar os meus cinquenta anos e publicado pelos Livros de Hora, do Porto, em 2011. É um livro de plena maturidade, de que gosto bastante mas a sua tiragem foi de trezentos exemplares, e o livro teve escassa visibilidade. Em 2013 publiquei em Maputo, um livro de 190 sonetos, a que dei o nome do gorado Bagagem não Reclamada — prometeram que o distribuiriam em Portugal mas… não preciso de contar o que aconteceu. Tive um livro paginado na Abysmo durante cinco anos, o Harpo Marx na Jaula dos Leões, uma das razões que me fez sair da editora. Em 2017 publiquei o Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, pelo qual me foi atribuído o Prémio Pen, no ano seguinte, mas numa edição de 150 exemplares, pelo que suspeito que só o júri leu o livro, situação, confesso, que me divertiu. Em 2018 a Doudacorreria fez uma edição de Oitenta flechas para atrair a cotovia, um livro de cento e cinquenta páginas, da qual tirou cem exemplares… Todos estes episódios caricatos podem afigurar-se trágicos para quem se assume como escritor e não borda apenas ao sabor das marés. Junte-se a isto o relativo sucesso crítico que obtiveram nos últimos anos os meus livros de prosa, e sim, a minha poesia foi secundarizada e silenciada. Mas só eu tive culpa. Só este ano é que a minha poesia começará a ser editada como deve ser… Bom, este limbo deu-me o desapego e toda a minha poesia foi sendo burilada, uma e outra vez, calmamente; na generalidade preteri os brilhos à densidade e algum furor. Na verdade, um certo desaire esvaziou-me a ansiedade e adestrou-me quer no riso (face a este cenário, que mais restava?), quer no recuo que permite uma outra percepção dos poemas, tratá-los mais rapidamente como se tivessem escritos por outro — e o outro é sempre mais hábil do que nós a melhorar os materiais. Hoje não publico em livro (o fb às vezes serve-me de laboratório para as primeiras versões) nada que tenha menos de três anos, quatro — é uma enorme vantagem. Ainda agora, quando fixei a versão final dos Tristia, arredondei algumas arestas e acrescentei outras…

Identificas, na tua poesia, alguma linhagem?

Olha, cito o Jenaro Talens: «Formosa, a desordem do meu pensamento./ Que eu não sigo o exemplo dos mais antigos: busco o mesmo que buscavam.» Neste momento interessa-me menos as linhagens do que o que me alimenta. Eu tive duas felicidades na vida: privei com dinossauros excelentíssimos — o Levi Condinho, o Al Berto, a Maria Velho da Costa, o Seixas Santos, o José Amaro Dionísio, o Grabato Dias, o Herberto Helder, o Helder Moura Pereira, o Helder Macedo, isto sem falar da amizade com alguns poetas da minha geração — que confiaram em mim apesar das minhas inabilidades técnicas (foi-me sempre difícil a escrita), mas a inexplicável confiança que esses espíritos de eleição depositavam nas minhas capacidades criativas amaciaram as minhas inseguranças e permitiram-me crescer, lentamente; a segunda felicidade resulta precisamente de ter amadurecido tarde e disso me ter dado mais leveza e maior margem de experimentação. Hoje, aos sessenta anos, depois de vinte e tal livros publicados, sinto-me verdadeiramente a começar. A diferença é que começo com lastro e agora alimentam-me os que me são diferentes, por exemplo, se, como muitos da minha geração, comecei com os beat e os surrealistas (- para no fim me interessarem sobretudo os que lhes estão nas margens ou romperam com o surrealismo, por exemplo adoro o Michaux, o Alain Jouffroy ou o Hugo Claus mas aprecio pouco o Péret) agora vou passar os próximos meses de lupa assestada no Fernando Echevarria.

És um leitor omnívoro e indisciplinado?

Sim, mas interesso-me por demasiadas coisas e disperso-me, saltito com demasiada facilidade, tenho de fazer um esforço para disciplinar-me mais.

Achas que o facto de traduzires poesia (e de tantos autores) te influencia a escrita?

Adoro estar sob influência porque aos sessenta anos é-se como uma esponja, incorporo tudo sem perder o pé da minha identidade. Só me enriquece. E, enfim, estou naquela fase em que o que me interessa nos que me interessam são os processos, no fundo traduzo “o que quero adquirir”. Os próximos poetas que gostaria de “traduzir”, um volume de cada um, são o José Hierro, o Hugo Claus (terei de ter a cumplicidade de quem saiba flamengo, para cotejarmos, pois só tenho edições em espanhol, francês e inglês), que tem a desgraça de só ser conhecido como narrador, o Bonnefoy (um poeta que julgo que só se aprecia devidamente coma idade, a não ser que se tenha nascido velho) e o Charles Olson. São trabalhos no espaldar que faço apaixonadamente (o único exercício físico a que me atrevo), para alargar a caixa torácica. Na América do Sul, voltarei ao Rojas e ao Juan Gelman.

Pode-se dizer que a tua obra também convive com o ensaio. És um leitor de ensaio, também?

Sou, embora as minhas leituras mais recorrentes nada coincidam com as do costume. Na filosofia, por exemplo, sou um fã descabelado do Eugenio Trias, de quem quase tenho a obra completa, o grande filósofo espanhol, depois do Ortega y Gasset, e que, inexplicavelmente, em Portugal não vejo ninguém ler e citar quando, a meu ver, ele é muito mais vital do que os franceses e italianos do costume. Para a Estética, também há a Chantal Maillard (que também é uma magnífica poeta), ou o Rafael Argullol, que leio e releio, desacompanhado; na hermenêutica, idem, e para além dos habituais Ricoeur ou Gadamer, descobri o Emilio Lledó, excelente, que mais uma vez não vejo referido. Ou o José António Marina… Deve ser por isso que o Real Madrid ganha tantos campeonatos europeus: ninguém acredita que os espanhóis sejam capazes e eles “tufa-lhes”! Sempre tive leituras ao lado, estive sempre fora dos carris… O Manuel de Freitas, que não compreendeu nada do meu ensaio poético, Respiro, interrogava abismado: mas quem são estes senhores que o autor cita? Sim, quem se identifica como leitor assíduo do Hans Ulrich Brecht ou do Safranski? Poucos… E prefiro os autores multidisciplinares, que fazem navegações de través, tipo Michel Serres… Neste momento ando mais focado em leituras sobre Estética e/ou Filosofia da Arte, pois alinho lentamente (letrinha a letrinha) um livrinho a propósito. Pretensões desta juvenília da senectude e de quem aprendeu tarde a andar de bicicleta…

Como olhas para a poesia actual que se faz em Portugal? Consegues acompanhar, de Maputo?

É impossível em Maputo acompanhar a poesia portuguesa actual, ou de qualquer latitude. Como não existe um mercado, só cá chegam bestsellers ou livros técnicos. Bom, Maputo ainda tem seis livrarias, Luanda nem tem livraria, os livros vendem-se num ou noutro hipermercado, com as escolhas próprias a esse género de retalho. E por isso quando vou a Lisboa guarneço-me mais de ensaio ou de poesia internacional. Quanto à poesia portuguesa acabo desgraçadamente por estar confinado às amizades, o que me reduz a perspectiva. Conheço alguma coisa, mas não extensamente. Os livros não chegam e os correios funcionam mal. Do meu livro Não se Emenda, a Chuva, não recebi nenhum exemplar, foram desviados para os vendedores de rua. O João Paulo Borges Coelho é que me trouxe um livro do Porto.

E projectos futuros? O que tens na manga?

Acabei um livro sobre a minha infância, penso finalmente em dar algum arrumo na gaveta para onde atiro os ensaios ou as minhas notas de leitura, e ando a preparar uma peça de teatro, que me foi encomendada pela Maria João Luís. São as minhas tarefas até Junho.

Leia aqui a recensão ao livro de António Cabrita.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.