José Maria Vieira Mendes

Ensaio Geral

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
5 min readSep 4, 2016

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@Hugo Pinto Santos

Arroios instaura um regime inquieto do diário. Não é bem uma questionação o que ele proclama, mas o subentendido de uma vivência, pelo texto, da irrequietude. Uma incapacidade de aceitar um molde fixo e determinante. O diário será, ao longo de Arroios, procurado como uma espécie de arquétipo. Até lá chegar, ao limite dos géneros — promontório em que se mesclam, precipitando-se num declive acentuado onde o seu colapso os deixa sem decisões à vista –, o autor ensaia aproximações, detendo-se sempre que se aproxima demasiadamente do género diarístico. Miragem e fantasma, objecto de desejo e tensão da clausura, o diário é um confim, miragem e máscara de ferro que o texto se nega a envergar, quanto mais a busca. O texto vai sempre acumulando modos e registos de outros géneros, como — sem surpresas — o dramático, com algumas fórmulas a surgirem volvidas quase indicações de cena. Chamar a Arroios um «ensaio» de diário é demasiado tentador para não o correr esse risco. É, no fundo, de ensaiar que se trata. Tentar o formato, acercar-se do género em relação ao qual se sente próximo, mas sem querer — ou sem poder — praticá-lo em pleno. Como se lhe faltasse um mínimo de terreno sólido. Um tablado? Em vez disso, a entidade em construção parece afundar-se nas areias movediças que lhe servem de palco. É a própria noção de (id)entidade que se afunda e se dissolve. Talvez por isso, o registo que, por excelência, daria expressão ao «eu» — o diarístico — de tal forma se torne progressivamente ínvio. Tanto mais que, ao colapso iminente do género diarístico, corresponde a crise do «eu» que lhe forneceria o sustento. O primo do protagonista é, por momentos, um seu duplo, ou a possibilidade de o ser. Antes de se esfumar nas atmosferas carregadas das operações que minam a estabilidade genológica, a personagem do primo Gustavo configura uma emanação do «eu» central em Arroios. Expressão das possibilidades goradas de um «eu» que se inquire sem tréguas. Uma imagem eloquente da perturbação identitária que está em movimento gradualmente acelerado neste livro — «Estou a curar-me. Só falta descobrir de qual doença.» (p.34)

A desmontagem dos esquemas típicos de cada modalidade de escrita é feita com mestria, porque essa operação decorre de modo orgânico. Isto é, o corpo do texto não deixa transparecer essas operações de sabotagem feitas sobre os protocolos textuais. As interrupções, mesmo os intervalos — «“Passa-me a manteiga, primo. Parto amanhã. E o café, por favor.” Pausa.» (p.38) –, disseminam-se quase imperceptivelmente ao longo de Arroios, e o «eu» — o protagonista — é uma entidade em metamorfose, que se vai (in)definindo e (des)organizando o que está em seu redor, à medida que, alegadamente, anota o seu dia-a-dia.

Cada quadro possui a plausibilidade que lhe dá o cuidado com os dados concretos e a atenção ao pormenor menos conspícuo. Mas é como se a junção das partes concorresse para uma totalidade outra. Como se o protagonista coligisse material para uma didascália em potência, ao agarrar-se aos objectos, móveis de casa, peças de roupa — ou até ao pão, essencial na sua dieta. Trata-se, portanto, de uma verosimilhança, por assim dizer, dinâmica, uma vez que cria a sua solidez caso a caso. Mesmo quando denega o resultado das suas construções prévias — «Tudo invenção. Como o próprio primo. Nada disto existe.» (p.37) É o próprio decurso do texto a revolver tudo e a tornar cada transição um desafio aos géneros — entre o diário e o dramático, entre a afirmação «confessional» e a reflexão. O domínio do dramático chega, inclusive, a ser «exorcizado» de forma explícita — «Reparei que nas ruas se abusa da tinta na cara. A maquilhagem faz parte do figurino.» (p.38) (itálico meu) Os materiais, as ferramentas próprias da linguagem dramática, vão fazendo a sua aparição, como necessidade de um texto que se desagrega do género matricial, mas que, menos que matriz, é espectro abandonado — «Precisava tanto de um diálogo.» (p.42) O diário, voz do «eu», lugar da introspecção, está aqui em constante cessação. A intromissão do(s) outro(s), a entrada «em cena» do mundo — restrito à geografia traçada pelo próprio título –, como que forçam o crescimento dessa presença que afasta o texto do registo confessional para o levar até brenhas mais inóspitas, onde o conforto dá lugar ao confronto. É mesmo possível que o próprio tipo escolhido, a mancha tipográfica, aludam à gramática do guionismo. O que seria secundado pelas indicações tipográficas que preenchem a margem das páginas de Arroios. Uma sombra de alteridade, de alternativa, a pairar sobre a concretude do texto. Um reforço da noção de que os géneros existem, neste livro, para serem questionados, abalados.

Repare-se como uma indicação temporal responde a uma inquietação do espaço, que, por sua vez, é uma trepidação do próprio «eu» — «Já não sei onde estou. Tirando o facto de ser hoje.» (p.23). E, dado que a informação da pessoa gramatical, que se desprende da forma verbal «estou», é tão importante como a questionação introduzida por «onde», qualquer uma delas conflitua com a resposta (?). Esta constitui um desvio, uma desconversa. Forma de nunca mais responder a uma dúvida que vai manter-se até ao fim. Mais do que «quem sou?», «o que sou?» Mas nem as indicações temporais, que simulam (seríamos levados a dizer), mais do que outra coisa, os pactos diarísticos, calam a dúvida, o questionar. A tal ponto que, a certa altura, o diário se autonomiza — «Hoje sou um diário.» (p.30) –, não já como discurso, mas como entidade individuada — «“Qual morte! A morte não é para os diários. Isso é coisa de romances e histórias. Eu não sou nenhuma história. Eu não tenho fim. Sou um princípio sem fim. Desafio a autoridade.”» (p.76) Personagem, enfim, e ser do seu próprio destino: vogar alheio a fronteiras encerradas.

Arroios só numa orla da sua própria criação é um diário. A forma por si engendrada como que teoriza o género diarístico, nas marcas traçadas pelas suas entradas, nas indicações temporais, na aproximação ao quotidiano. No entanto, não o põe integralmente em prática. Porque o esgota e, por conseguinte, procede noutras direcções. No sentido da reflexão sobre os limites da escrita sobre o quotidiano. Nesse processo, acabará por fazer do discurso sobre si um discurso sobre o outro e o diálogo potencial entre ambas as instâncias. A dramaturgia devém uma consequência do escrutínio a que se submete o diário. Sem, realmente se concretizar, também, o género dramático queda-se num limiar tenso. Num último ensaio. Ensaio geral.

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