Eliane Moraes: «O erotismo é uma dimensão fundante da nossa humanidade»

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
12 min readMar 19, 2018

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A ensaísta e professora Eliane Robert Moraes

Eliane Robert Moraes é professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É Doutora em Filosofia pela USP, com pós doutorado na Université de Nanterre — Paris 10, atuou como professora visitante nas universidades da California em Los Angeles (UCLA — USA), de Perpignan Via Domitia (UPVD — FR), de Nanterre (Paris 10 — FR) e Nova de Lisboa (UNL — PT).

Realizou pesquisas sobre as relações entre estética e erótica; sobre o Marquês de Sade e a literatura libertina do século XVIII europeu; sobre Georges Bataille e o surrealismo francês; sobre o erotismo modernista na França e no Brasil; sobre a poesia erótica brasileira; sobre Mário de Andrade, Dalton Trevisan, Roberto Piva, Hilda Hilst e Reinaldo Moraes, entre outros. Atualmente se dedica a investigar figuras do excesso na prosa de ficção brasileira dos séculos XX e XXI.

Entre suas publicações destacam-se diversos ensaios literários e a tradução da História do Olho de Georges Bataille (Cosac & Naify, 2003). É autora, dentre outros, dos livros: Sade — A felicidade libertina (Imago, 1994 / Iluminuras, 2015), O Corpo impossível (Iluminuras/Fapesp, 2002 e 2016), Lições de Sade — Ensaios sobre a imaginação libertina (Iluminuras, 2006) e Perversos, Amantes e Outros Trágicos (Iluminuras, 2013). Também assina a organização e a apresentação da Antologia da poesia erótica brasileira (Ateliê, 2015 e Tinta da China, 2017).

Recentemente publicou Antologia de Poesia Erótica Brasileira na editora Tinta da China. Creio que é a primeira vez que se publica uma obra deste género em Portugal, não é?

A bem da verdade, a publicação dessa antologia, centrada na lírica erótica brasileira, foi uma iniciativa pioneira não só em Portugal, mas também no Brasil… Houve no passado uma ou duas seleções do género, focando períodos específicos, mas nada que atravessasse toda a nossa história literária.

A rigor, minha primeira fonte de inspiração foi uma publicação portuguesa, a notável Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica organizada pela Natália Correia, e lançada em 1966, em plena ditadura do Salazar. Logo depois, conheci a Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (séculos XVIII e XIX) compilada por Fernando Ribeiro de Mello em 1975. O contato com esses livros me precipitou uma pergunta: “Oras bolas, por que é que nunca fizemos algo semelhante no Brasil?”

Estava pensando nisso quando me caiu em mãos um esboço de prefácio a Macunaíma, escrito em 1926, no qual Mário de Andrade observava que, no Brasil, as literaturas populares eram frequentemente pornográficas, apesar da ausência de um erotismo literário sistematizado no país. Para justificar seu argumento, o autor evocava as produções eróticas de outros povos, como os gregos, os franceses ou os indianos, que souberam organizar suas expressões escritas em torno do sexo.

Mas essa tradição realmente não existia entre nós e o que me surpreendeu mais ainda é que, já no início do século XXI, a erótica literária brasileira continuava desconhecida, aguardando uma compilação.

Como você pode imaginar, as ponderações de Mário de Andrade estão na origem de meu trabalho, que veio a lume quase um século depois de suas palavras para dar testemunho não só da existência de uma lírica erótica do país, mas também de sua extraordinária riqueza. A quantidade e a qualidade da produção poética nela apresentada — sendo apenas parte de uma extensa pesquisa que levantou por volta de trezentos poetas e mais de mil poemas — não deixa dúvidas sobre a convicção de que, para se formar tal corpus, talvez só estivesse faltando um empenho de organização. Foi nessa brecha que eu entrei…

Curiosamente, há um movimento feminista forte no Brasil, provavelmente bem mais activista do que em Portugal, o que parece ser uma contradição pensar na «não-existência» de uma antologia erótica. Pensarmos que Natália Correia levou por diante a sua antologia, em pleno salazarismo, e que as autoras brasileiras não o tenham feito no Brasil parece estranho. O que acha sobre isso?

Você toca numa questão muito importante, e um tanto delicada. Antes de tudo porque ela nos coloca diante de outra pergunta, que é capital nos dias de hoje: que ordem de relações efetivamente existem entre feminismo e erotismo?

A resposta é menos óbvia do que parece… Ainda que coloque a sexualidade em questão, no mais das vezes problematizando questões do género, o pensamento feminista tende a se concentrar nas relações de poder que envolvem o erotismo. Isso é importantíssimo, sem sombra de dúvida, mas não é tudo. Reduzir o erotismo às relações de poder significa limitar seus domínios, o que é, igualmente, perigoso!

O erotismo é uma dimensão fundante da nossa humanidade e nos implica a todos, sem exceção. Queiramos ou não, ele nos coloca diante do mistério da origem, da própria existência. É algo grande, incomensurável, maior que nós e por isso mesmo precipita sentimentos paradoxais dentro de nós. Atrai e gera repulsa. Provoca medo e júbilo. Daí que venha a mobilizar todo tipo de discurso, do mais sublime ao mais chulo, do mais poético ao mais estereotipado.

Creio que o olhar feminista nos faz um imenso trabalho quando denuncia as práticas e os discursos violentos, mas é preciso tomar muito cuidado para que tais denúncias não se transformem em uma patrulha que se julga no direito de pontificar o que é correto e errado em termos eróticos.

Pois erotismo é fantasia e, como tal, supõe liberdade de expressão. Creio que um dos maiores desafios da nossa contemporaneidade é conseguir combater os preconceitos e as violências, mas mantendo viva essa liberdade.

Voltando à pergunta inicial, que só consigo responder formulando outra: será que as “antologias eróticas feministas” (e há muitas, nos Estados Unidos, por exemplo) não estão sempre correndo o risco de impor um veto à imaginação? E, nesse caso, não estariam reeditando a censura que elas mesmo combatem?

Porquê este momento? Achas que há um diálogo entre o Brasil e Portugal neste momento em particular?

Sim, acho que se trata de um momento muito especial no que diz respeito às relações culturais entre os dois países. Estamos começando a nos descobrir…

Depois de muitas décadas de distância, Brasil e Portugal se aproximam e olham um ao outro com novas lentes. É um fenómeno bem atual e talvez ele decorra de um paralelo não evidente, mas marcante, entre os dois países, que diz respeito às nossas posições marginais diante dos grandes centros decisórios do Ocidente. A construção do nosso estar na contemporaneidade passa necessariamente por essa sensibilidade das margens, ainda que de formas muito distintas. Acho que hoje estamos descobrindo, aqui e aí, o extraordinário potencial criativo e transformador que decorre dessa posição. Daí que o intercâmbio intelectual e artístico entre os dois países esteja sendo incentivado lado a lado e comece agora a dar frutos. Bons frutos, ao que tudo indica.

Sim, esse intercâmbio, além de ser visível no trabalho editorial, em que editoras brasileiras tenham entrado no mercado editorial português, como a excelente OCA, de Sérgio Cohn e Raquel Menezes, também está presente nas pontes editoriais de editoras brasileiras que publicam no Brasil autores portugueses e isso é tudo muito recente. O Prémio Oceanos, recentemente introduzido em Portugal, veio reforçar esses laços entre autores, de um lado e de outro, não acha?

Sem dúvida. Fiz parte do júri inicial e do júri final do prémio Oceanos no ano passado, quando ele efetivamente passou a contar com mais edições de fora do Brasil. Foi uma experiência e tanto, repercutindo não só nas nossas leituras mas igualmente nas discussões entre os jurados. O fato de estarmos avaliando literaturas em língua portuguesa de diversas procedências cria uma situação nova que nos obriga a deslocamentos inesperados e a descobertas instigantes. E, obviamente, isso vale para as possibilidades mais gerais de leitura que esse movimento editorial entre os diversos países permite, como você mesma sugere. Tornamo-nos, assim, viajantes na nossa própria língua. Em tempos de tão baixa tolerância entre os povos como o que vivemos, é uma experiência para a gente reter, multiplicar e transmitir.

Talvez os leitores portugueses desconheçam a sua obra ensaística, nomeadamente os seus livros Sade — A felicidade libertina, Liçoes de Sade, e O Corpo Impossível. Eu tive a ventura de ouvir falar deles (e agora de os ler) através de um amigo comum, António Cabrita. O seu trabalho ensaístico anda muito em torno das questões do corpo e da sexualidade. Encontra afinidades com o trabalho ensaístico de José Gil?

Você menciona dois intelectuais portugueses contemporâneos por quem tenho grande admiração. Gosto muito da literatura do António Cabrita e, de forma geral, os textos dele são iluminadores. Ele é um criador de surpresas e sempre se vale de um ângulo de abordagem completamente inesperado.

Vale o mesmo para o José Gil, que não conheço pessoalmente, mas de quem sou leitora entusiasta e — como direi? — interlocutora de bases subterrâneas… Seus ensaios em torno de questões sucitadas pelo corpo, pelo desejo ou pelos monstros são realmente inspiradores. Sem falar que ele é referência fundamental de alguns dos intelectuais brasileiros que mais admiro, como Peter Pal Pelbart e Ana Kiffer.

O que quer dizer com este conceito de Corpo Impossível? Falamos de fragmentação, mas o que está em causa nesta ideia? Um conceito alegórico do corpo, a ruptura de uma visão sobre o corpo?

Acho que a noção de “corpo impossível” fica a meio caminho entre um conceito e uma imagem, se é que posso assim dizer… Dentro do meu trabalho ela opera uma função importante, que é a de designar um corpo que resiste à sua reificação e à possibilidade de se fixar a uma só imagem.

Comecei a pensar nisso ao estudar o imaginário modernista francês, em particular o surrealista. O ponto de partida dessa noção foi, para mim, a figura de um acéfalo criada por Georges Bataille e André Masson em 1936 para a revista Acéphale. A figura representava uma consciência aguda das ilusões de um humanismo que havia perdido por completo seu sentido, esboçando uma das críticas mais veementes da modernidade. Segundo Bataille, o estranho acéfalo vivo vinha confirmar, no seu corpo mutilado e vivo, a “possibilidade eterna e indefinida da coisa humana”, ainda que ela se anunciasse num tempo de maré alta do assassinato, em meio às mais concretas ameaças da morte.

Era, pois, uma figura paradoxal, já que anunciava o informe sem jamais dobrar-se ao absoluto que repousa no seu horizonte, ou seja, à morte. Assim concebido, o decapitado batailliano provocava um confronto do ser humano com tudo aquilo que não se conformava à sua imagem idealizada, incitando-o a ser justamente o que ele não é. Por isso mesmo, o acéfalo não se oferecia como um retrato do ser humano: antes, ele era e permanece sendo a impossibilidade desse retrato.

Tomo a liberdade de citar uma passagem do meu livro, que resume essa disposição: “Negar o possível para imaginar o impossível: o projeto de Georges Bataille, ao mesmo tempo em que remete aos fundamentos da liberdade da imaginação, resume o sentido último de seu antropomorfismo dilacerado, insistindo em repensar o homem a partir do nada. Assim, lançando a figura humana aos seus pontos de fuga, onde se esboça um horizonte indefinível, o acéfalo mantém a indefinição que constitui a sua própria figura. Ao ostentar precisamente aquilo que lhe falta, tal qual um teatro vazio, o corpo sem cabeça resta como um corpo impossível.”

Esse modo de operar com conceitos que têm a sua raiz no surrealismo, sobretudo os movimentos franceses, tem algum equivalente no surrealismo português? É que a Eliane também esteve recentemente em Portugal a falar sobre os surrealismos. Penso no surrealismo de Cesariny, por exemplo, e na sua visão tão transgressora do corpo e da sexualidade. Como olha para o surrealismo português, desse ponto de vista?

Não fico muito à vontade para te responder, pois não sou uma estudiosa do surrealismo português, embora admire muito tudo o que conheço dele. Mas ainda tenho muito a aprender! Aliás, estou a ler no momento o ótimo ensaio de Rui Sousa intitulado A presença do abjeto no surrealismo português, que saiu recentemente pela Editora do Caos.

Ocorre com o surrealismo algo de que gosto muito. Embora tenha se iniciado com extremo vigor na França, ele logo se tornou um movimento internacional, espalhando-se por boa parte da Europa e pelas Américas. E nessa ampliação, o surrealismo teve uma capacidade notável de se “afrouxar” e de se abrir às cores locais. Há, portanto, muitos surrealismos, e não um só. Digo isso porque, para um brasileiro, o contato com o surrealismo português sempre surpreende.

A começar pelo fato de que a adesão ao movimento foi bem mais intensa em Portugal do que no Brasil. Não por acaso, vocês tiveram uma vertente mais radical do ponto de vista político, como foi o abjeccionismo, que é riquíssima. Não tivemos nada parecido entre nós. Tampouco tivemos uma figura catalizadora desse espírito como foi aí o Cesariny, um transgressivo em período integral. O surrealismo brasileiro, eu diria, foi bem mais comportado, mais bon enfant… Não por acaso, poetas como Murilo Mendes ou pintores como Ismael Nery, que eram entusiastas simpatizantes do movimento, também foram católicos declarados e fervorosos!

O seu estudo magnífico sobre Sade também mereceria a atenção dos portugueses. Creio que há poucos livros (que não sejam sobretudo trabalhos académicos e pouco conhecidos) sobre o autor em Portugal e sobre a sua herança, na literatura erótica contemporânea…

É verdade. Não deixa de me surpreender essa ausência de estudos sobre Sade no Portugal contemporâneo. Até porque esse interesse existiu no passado, como se sabe, passando por gente do quilate de Herberto Helder, Luís Pacheco, Fernando Ribeiro de Mello, Aníbal Fernandes e tantos mais. O que dizer das extraordinárias edições da Afrodite? E aquelas da Etc.?

Penso que a sociedade portuguesa passou por um processo de retradicionalização depois da revolução dos Cravos. Aquela velha história de “não confundir liberdade com libertinagem”, que também ocorreu no Brasil em momentos delicados, que nos obrigaram a enfrentar o conservadorismo moral das esquerdas que apoiávamos…

Mas talvez essas já sejam águas do passado. Vejo muitos indícios de mudanças no que se refere à erótica literária em Portugal, e a própria publicação da Antologia da poesia erótica brasileira dá sinal disso, não é? Sem falar de outros autores brasileiros do gênero, como é o caso do Reinaldo Moraes, que já publicou aí, recentemente, o notável Pornopopéia e o delicioso Cheirinho de Amor. Ou o livro Obscénicas, com textos pornográficos da Hilda Hilst e desenhos incríveis do André da Loba, que saiu pela Orfeu Negro em 2014. Também adoro a coleção de textos obscenos da Tinta-da-China, coordenada por António Ventura, que tem títulos incríveis. Temos que ficar de olhos abertos: tem muita coisa interessante “pipocando” por aí, como se diz no Brasil.

Acompanho esse novo movimento editorial com grande interesse. Há ainda reedições importantíssimas como o livro Portugal em Sade, Sade em Portugal seguido de “O affaire Sade” de Lisboa, organizado por Aníbal Fernandes e Pedro Piedade Marques. Saiu pela Montag no ano passado, numa edição muito caprichada. E o que dizer do último número de A Ideia — Revista de cultura libertária, lançado em 2016, com quatro dossiês de peso, que passam pelo abjecionismo, pelo surrealismo, por Bocage, Sade e muito mais? Isso tudo vai mudando a paisagem sensível e — por que não? — abrindo caminho para que autores como Sade reapareçam com nova força na cena cultural lusitana.

Eliane, como vês o futuro do Brasil, do ponto de vista político e social, nesta hora difícil que vocês estão a passar? Com optimismo?

É difícil transformar a indignação em otimismo. E, nos últimos anos, a indignação só fez crescer na maior parte da população de um país em que a justiça está se tornando cada vez mais uma palavra sem lastro. Com o golpe desastroso que resultou no impeachmente da Dilma e na consequente posse do Temer, o Brasil vem andando para trás a largos passos: para dar um só exemplo, ao menos 36 vereadores foram assassinados no país depois disso, ou seja, de 2016 a hoje. O último foi a vereadora carioca Marielle Franco, defensora dos negros, das mulheres e dos pobres, executada no último 14 de março por denunciar a violência policial nas favelas. Como não se indignar nesse Brasil onde, a cada 21 minutos, um jovem afrodescendente é morto? Como ser otimista diante disso?

Não sei. No dia do assassinato da Marielle, segui para a faculdade e, ao chegar em classe, a única frase que consegui dizer aos meus alunos foi: “Temos que ir para a rua e exigir justiça. Só assim é que poderemos retornar à sala de aula e retomar nossos textos, sem ter vergonha de estudar literatura”. À noite, na manifestação, nos reencontramos, e a soma difusa e potente das indignações parecia desenhar um gesto de esperança.

Leia o texto de António Cabrita sobre a Antologia

Leia alguns poemas da Antologia aqui.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.