Duas cartas de René Magritte a Michel Foucault

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
4 min readNov 24, 2017
René Magritte, The Philosophical Lamp , 1936 Óleo sobre tela, 46 x 55 cm.

23 de maio de 1966

Prezado Senhor,

O senhor fará o obséquio, espero, de considerar estas poucas reflexões relativas à leitura que faço de seu livro As palavras e as coisas

As palavras Semelhança e Similitude permitem ao senhor sugerir com força a presença — absolutamente estranha — do mundo e de nós próprios. Entretanto, creio que essas duas palavras não são muito diferenciadas, os dicionários não são muito edificantes no que as distingue.

Parece-me que, por exemplo, as ervilhas possuem relação de similitude entre si, ao mesmo tempo visível (sua cor, forma, dimensão) e invisível (sua natureza, sabor, peso). É a mesma coisa que concerne ao falso e ao autêntico etc. As “coisas” não possuem entre si semelhanças, elas têm ou não têm similitudes.

Só ao pensamento é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece, ele torna-se o que o mundo lhe oferece.

Ele é tão invisível quanto o prazer e a pena. Mas a pintura faz intervir uma dificuldade: há o pensamento que vê o que pode ser descrito visivelmente. As Damas de Honra[1] são a imagem visível do pensamento invisível de Velásquez. O invisível seria então, por vezes, visível? Só com a condição de que o pensamento seja constituído exclusivamente de figuras visíveis.

A esse respeito, é evidente que uma imagem pintada — que é intangível por sua natureza — não esconda nada, enquanto o visível tangível esconde sistematicamente um outro visível — se cremos em nossa experiência.

Existe, há algum tempo, uma curiosa primazia conferida ao “invisível” através de uma literatura confusa, cujo interesse desaparece se se observa que o visível pode ser escondido, mas que o invisível não esconde nada: pode ser conhecido ou ignorado, sem mais. Não cabe conferir ao invisível mais importância do que ao visível, ou inversamente.

O que não “falta” importância é ao mistério evocado de fato pelo visível e pelo invisível, e que pode ser evocado de direito pelo pensamento que une as “coisas” na ordem que o mistério evoca.

Permito-me apresentar a sua atenção as reproduções de quadros anexas, que pintei sem me preocupar com uma busca original no pintar[2].

Queira aceitar etc…

René Magritte

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Notas

[1] Também conhecido por Las meninas. (N. do T.)

[2] Entre essas reproduções havia “Isto não é um cachimbo”: no verso, Magritte escrevera: “o título não contradiz o desenho, ele o afirma de outro modo”.

René Magritte, Isto não é um cachimbo, 1929. Óleo sobre tela 23 x 31 cm.

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4 de junho de 1966

Prezado Senhor,

… Sua questão (a respeito do meu quadro Perspectiva. O Balcão de Manet) pergunta sobre o que ela própria já contém: o que me fez ver ataúdes onde Manet via figuras brancas é a imagem mostrada por meu quadro onde o cenário do Balcão convinha para situar os ataúdes.

O “mecanismo” que operou aqui pode ser objeto de uma explicação erudita, da qual sou incapaz. Essa explicação seria válida, talvez certa, mas continuaria sendo um mistério.

O primeiro quadro, intitulado Perspectiva, era um ataúde sentado sobre uma pedra, numa paisagem.

O Balcão é uma variante do precedente, houve outras anteriormente: Perspectiva. Madame Recamier de David e Perspectiva. Madame Recamier de Gérard. Uma variante com, por exemplo, o cenário e os personagens do Enterro em Ornans, de Coubert, teria o sentido de uma paródia.

Creio que se deve notar que esses quadros, chamados Perspectivas mostram um sentido que os dois sentidos da palavra Perspectiva não têm. Essa palavra, e as outras, tem um sentido preciso num contexto, mas o contexto — o senhor o demonstra melhor do que ninguém em As palavras e as coisas — pode dizer que nada é confuso salvo o espírito que imagina um mundo imaginário.

Agrada-me o fato de que o senhor reconheça uma semelhança entre Roussel e o que eu possa pensar que mereça ser pensado. O que ele imagina não evoca nada de imaginário, evoca a realidade do mundo que a experiência e a razão consideram confusamente.

Espero ter a oportunidade de encontrá-lo por ocasião da exposição que farei em Paris, na galeria Iolas, pelo fim do ano.

Aceite etc…

RENÉ MAGRITTE

Tradução: Jorge Coli

René Magritte, Madame Recamier de David, 1950. Óleo sobre tela 60 x 80 cm.
René Magritte, Perspectiva II, Balcão de Manet, 1950. Óleo sobre tela 81 x 60 cm.

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