Diante das palavras em estado de imagem e poesia

Ney Ferraz Paiva
Revista Caliban issn_0000311
6 min readOct 8, 2023

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Por Cleide Simões

Advertência:

Este é um livro para se ler com o corpo inteiro, pois as emoções estão no arrepio da pele do texto e se conectam, sem resistência, aos sentidos e ao intelecto. Aos olhos são oferecidos, como um anterrosto, imagens da cidade, da poeta, de homens que se ergueram para a cena flagrada e filtrada pelas lentes e discursos macros, em remissões intertextuais ao cinema, à fotografia, às obras de afins e afetos, às literaturas de origem e tardas, laborando, assim, um imenso diálogo de uma só voz escrita com volúpia interrogativa.

Da inconsistência da palavra:

Em algum momento de seu discurso, calí boreaz adverte: “por isso, não quero iludir-te que isto que te escrevo sejam palavras — isto não são palavras, à semelhança do cachimbo de René. talvez isto seja uma dança falada.” O incômodo sobre a insuficiência da palavra para encarnar o imaterial e o imponderável é uma condição clássica, pois tornou-se o mundo vasto, geográfico, epitelial e movente, mas não menos fluido e maleável aos acontecimentos, o que lhe proporcionou um ritmo, escapista nos arranjos semânticos, sinuoso, enovelado numa música personalíssima. Aglutina-se no texto a alma diletante e finge, apenas finge, decalcar-se na prosa e nos versos. O drama da representação continua a incomodar a poesia, lembra-nos Drummond, como que diante da voz da esfinge: “Trouxeste a chave?”

Metapoesia:

Para se ler como se medisse a velocidade das ondas: em poesia ou na prosa arraigada neste chão de areia, onde a metáfora desloca o ponto de vista para o familiar, mas sob o espanto silencioso de uma alma viajante. As metonímias abundam também e enganam os distraídos, pois se iludem eles que captam objetos sólidos, carrinhos de pipoca, luar, corcovado, passeantes, e não se apercebem que o calçadão e a cidade foram capturados por uma escrita que tem como destino falar daquilo que os dedos não apontam. O ritmo da imagem é ato superior ao entendimento: a poesia e a neblina oceânica, ainda assim, insistem nesse toque erotizado.

Uma alma em forte comoção passeia por Copacabana, tem olhos para ver com palavras sussurrantes, mas evita se apegar às estações doutrinárias da sintaxe. No entanto, a poesia não se sente lesada, experimenta-se no esforço de originalidade, na caminhada noturna, exercita a “piscadela” (ato secreto de comunicação para os sentidos), revelando heroica resistência contra os efeitos de enfraquecimento e torpor da obviedade dos sentidos. Tudo é atraído para o discurso lítero, num ato de remissão ininterrupto entre o banal e a poética do mundo.

a cadeira continuará ali sendo cadeira. mesmo que todas as línguas em uníssono se explodam, no momento seguinte ainda poderemos nela sentar, com total confiança no que ela é — sem lhe recordar um sentido, só por experimentá-la com os sentidos.”

Copacabana:

Uns versos percorridos com certa ânsia em comunicar pertinências, as imagens iscam bem a atmosfera do território mítico de uma “cidade maravilhosa”. “Copacabana é uma respiração”. Fotografias, instantâneos da vida comum, ao ponto de estontear as imagens. Elas vibram e oscilam, mas são amparadas pela vertigem do texto, hipertexto, numa “tela finalmente escura”. Como em negativo, fotográfica, as ruas e suas personagens se confundem nela, na poeta, onde se (ins)creve a poeta, roteiriza a letra atos incongruentes ou excepcionais, laureados no discurso que anseia pela origem e sentido de tudo, na filtragem proprioceptiva reelaborada no vertiginoso ato migratório para a poesia.

belo é atravessar a cidade a pé depois encontro das três palavras mais entranhas e, alastrando-me sob a lua quase-cheia, ser apanhada pelo futuro do silêncio do nada. entro numa livraria chamada janela, abro ao acaso as portadas de um livro e me atiro do parapeito szymborska”

Os amores difíceis:

O corpo resiste à voragem pandêmica: Laurelena é a âncora em meio às vertigens de uma tempestade inexorável, é biográfica e sensualíssima metáfora de amores amantes, resgatada nos registros prosaicos da poeta em formas, palavras, odores, companheira de uma inusitada viagem, captadas no enquadramento de grandes janelas como molduras para os fragmentos femininos nas pinceladas de Picasso. Corpos febris num momento, agora, enfim, entidades arraigadas às estruturas cubistas e plásticas, desenhadas em lâminas de luz, ampliadas na memória de uma paixão (meta)física.

continuo a receber as tuas mensagens escritas e faladas. não compreendes por que não respondo. é porque estou a falar longamente contigo por aqui. é certo que não sei se vou mesmo enviar-te esta carta, se não estou mais a tentar ecoar em mim mesma. até porque, vejo agora, a morrinha oblíqua, mesmo através dos losangos, já dissolveu algumas das palavras. curiosamente: nunca, porém, a palavra Laurelena.”

As fotografias:

É um mundo humano que nelas se entremostram e se esconde da ânsia postal: mensagem secreta e revolucionária: acredite no que vejo e acreditarei no que sentes. O roteiro imagético de uma alma poética e estrangeira inaugura sentidos e relevâncias, dando aos comuns e a si própria a coragem de sacar do privado uma paixão pública, tomando-nos pela mão para uma expansão, operando a literatura com novos materiais, embora, em momento algum, haja qualquer desavença com as palavras. A imagem, como a palavra, é um rastro.

o futuro passa por aqui”, diz-me a minha rua — gosto das mensagens aparecidas nas fotografias, só vistas muito depois. é o que venho fazer aqui: passar, como um futuro qualquer.”

A geografia poética:

Acredito, sem lastro de dúvidas, que uma obra literária é, em si, uma biblioteca. As referências e remissões, proposital e involuntariamente, abundam, herdeiros que somos de um passado vastíssimo de experiências psíquicas e linguísticas; pela palavra poética tornamo-nos herdeiros de experiências incomuns de toda a humanidade. Em tudo há um ato de nomeação impulsionado pelas angústias de conhecer a si e ao mundo, um alargamento de margens: “quando a poesia da geografia encontra a geografia da poesia, cidades podem caber noutras cidades, estações podem caber noutras estações, e nomes podem caber noutros nomes. o mundo arrisca-se a ficar realmente maior”. Não foi por menos que, em meio à escuridão da cegueira, Borges anunciou que o paraíso devia ser como uma biblioteca. A geografia faz do espaço um território de sons, ritmos, imagens e sentimentos: a tela fina da escuridão.

Repositório:

a ti entrego meus flancos, os pontos cegos, o peito intacto de tantas fendas mudas — eu me khalo. te olho devagar porque é como os longos rios entram nos largos mares. porque o espanto é tão lento quanto de repente. e é assim que deus calibra o tempo do amor. [para todo o silêncio há uma febre de palavras. as minhas estão aqui]”

calí boreaz oferece-nos desconcertantes imersões na contemporaneidade poética, com diversificado manejo dos gêneros, da linguagem e poética, inserindo o corpo como metáfora e ritmo das experiências mundanas e íntimas, o que enseja a uma reinauguração do sentido da dor e dos atritos com impassibilidade do outro diante do inexorável, da vida em sua rotina desnorteante.

Cada parte, em sua proposta estética, afirma-se como manancial de linguagem para entender-se e desentender-se no mundo, negando-se a roteirizar e subordinar o discurso à própria coisa. A inquietude gera, em muitos momentos, uma experiência incomum, como um misticismo às avessas, pois o corpo, os sentidos, todos eles, eclodem uma relação de espanto e mistério com o mundo, revelando segredos apenas suspeitados, colocando em suspensão o fluxo ordinário da vida. A “febre das palavras”, para qual não há panaceias, expõe um espírito inflamado pelo desejo de alcançar a primariedade das coisas, para, depois, se amalgamarem na linguagem.

A tela finalmente escura é um livro com uma visceralidade incomum. O planeta poesia, enfim, foi habitado. Se fosse possível, tomaria para mim os versos: “sorrio então e prossigo desladrilhando o tempo”.

Cleide Simões, professora de literatura e crítica literária, no inverno de 2023, em Belo Horizonte.

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